Saturday, 12 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Primeiro-ministro brinca com fogo

Na atualidade européia, quando o terrorismo parece ter desembarcado no continente como uma realidade terrivelmente palpável, a mídia francesa continua a se interrogar qual é o seu papel diante das ameaças de novos ataques: revelar a existência da ameaça, partido tomado pelo jornal La Dépêche du Midi no início de março (veja remissão abaixo), ou manter o silêncio, como fizeram os jornais Le Parisien e Le Monde? Na semana passada, a França viu relançado nas primeiras páginas dos jornais o debate em torno da divulgação ou não de ameaças terroristas em território francês.

Na primeira semana de março, a opinião pública francesa tomou conhecimento da existência de um certo grupo AZF, que enviara diversas cartas ao governo (palácio presidencial e ministério do Interior) ameaçando explodir trens. No fim do ano passado, o caso era de conhecimento apenas das autoridades. Houve vazamento e os principais jornais do país, antes de publicar a notícia, tentavam apurar o caso junto aos órgãos de segurança. Até que, em 3 de março, o segredo de Estado foi divulgado pelo jornal La Dépêche du Midi. No dia seguinte, o assunto foi a manchete de todos os jornais franceses. O ministro do Interior, encarregado do caso, criticou o jornal que o divulgou e acusou La Dépêche du Midi de comprometer o sucesso da investigação.

Na semana passada, cinco dias depois do atentado de Madri, os personagens eram outros mas estruturalmente o debate era o mesmo: quando se deve revelar uma ameaça terrorista? Desta vez, a pergunta era dirigida pelos principais jornais ao governo francês.

Ao tomar a iniciativa de revelar publicamente uma ameaça que pesava sobre o país, o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin foi acusado de querer desempenhar o papel de ‘anti-Aznar’. Ele alegou querer apenas agir na mais absoluta ‘transparência’. Mas estaria, de fato, preocupado com as eleições regionais – cujo primeiro turno ocorreu neste domingo (21/3). Na realidade, essa suposta necessidade de ‘transparência’ revelou-se vã: a direita deve perder o governo de muitas das regiões francesas, caso o segundo turno siga a tendência de espetacular crescimento da esquerda observada no primeiro turno.

Essa curva ascendente da esquerda foi lida pelos analistas políticos como uma bofetada do povo no governo de direita dirigido por Raffarin. Seu governo foi responsável por cortes no seguro-desemprego, por uma reforma impopular da Previdência Social e pela supressão de uma série de conquistas sociais, além do crescimento do desemprego. O resultado das eleições regionais pode levar à reestruturação do governo com a substituição do primeiro-ministro.

A ameaça dos ‘servidores de Alá’

A segunda ameaça terrorista divulgada poucos dias antes das eleições regionais estava contida em cartas recebidas pelos jornais Le Monde e Le Parisien. Dada a gravidade do momento que vive a Europa depois do atentado de 11 de março, em Madri, ambos os jornais encaminharam as cartas às autoridades responsáveis pela luta antiterrorista. Agiram com responsabilidade e não informaram seus leitores da existência da ameaça de um grupo islâmico, que se apresentava como ‘Comando Mosvar Barayev’.

Com uma letra trocada, esse grupo se batizara com o nome do chefe checheno que liderou o atentado a um teatro em Moscou, em outubro de 2002, quando foram mortos todos os militantes responsáveis pelo ataque, inclusive o próprio Movsar Barayev.

Ao revelar à imprensa a existência da carta – divulgada, analisada e comentada à exaustão por jornalistas e especialistas em terrorismo –, Raffarin agia por necessidade de transparência, como alegou, ou por calculada vontade de parecer ético, sobretudo para marcar a diferença dos métodos de Aznar, que tentou manipular a informação em todos os níveis, inclusive com telefonemas aos diretores de jornais? Depois de confirmada a pista de al-Qaeda e não a do grupo ETA, José Maria Aznar deixou a política pela porta dos fundos.

‘Todos os que tentam usar a fraude em relação ao terrorismo islâmico assumem o risco de ser impiedosamente punidos. As pequenas cozinhas eleitorais à la Aznar ou as grandes construções ideológicas à la Bush constituem obstáculos maiores à segurança das democracias ameaçadas por esses grupos de fascistas religiosos. (…) A luta contra o terrorismo é uma coisa séria demais para ser utilizada em função de interesses particulares’, escreveu o diretor de redação Serge July, num editorial de Libération (18/3).

A reportagem do Libération, sob o título ‘Terrorismo: Raffarin brinca com fogo’, dizia que o primeiro-ministro estava sendo acusado de querer explorar o caso da ameaça terrorista do grupo islâmico, que se apresentava como ‘servidores de Alá’ e se dirigia aos ‘servidores da República francesa’. Segundo a matéria, assessores do ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, não escondiam a opinião do ministro: ele achava a divulgação das cartas no mínimo apressada.

A assessoria do primeiro-ministro justificou-se dizendo que muitas pessoas já tinham conhecimento do assunto para que ele pudesse ser mantido mais de algumas horas em segredo. Por isso, Raffarin assumira pessoalmente a divulgação.

Na edição do Le Monde de 18 de março, um pequeno editorial intitulado ‘Transparência e imprudência’, assinado pelo diretor da redação Edwy Plenel, enfatizava que tanto o Monde quanto o Le Parisien tinham recebido a mesma carta, mas ambos souberam guardar silêncio sobre a ameaça. Plenel assinala que o Monde cumpriu seu papel ao encaminhar às autoridades a mensagem do grupo islâmico, sobretudo depois que o grupo terrorista AZF foi investigado pelas autoridades sob total silêncio da mídia até que La Dépêche du Midi resolvesse assumir o que entendia ser sua responsabilidade, isto é, a divulgação do caso.

No novo caso, assinala Plenel, quem resolveu divulgar a ameaça foi o próprio primeiro-ministro. O diretor do Le Monde termina seu texto afirmando:

‘Depois do episódio espanhol, marcado pela opacidade e pela mentira, essa preocupação de transparência é compreensível. Mas, como ilustra a atitude contrária do governo no enigmático caso AZF – no qual a discrição total é perseguida – é preciso ter cuidado para não cair na precipitação imprudente. A mediatização do medo é exatamente o que buscam os terroristas ou aqueles que os inspiram’.