Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

“Que bobos! Eles pensam que os jornalistas escrevem com as mãos”

Foto: Arquivo

Homem dos sete instrumentos. Bom de copo e de garfo. Desprovido de qualquer cerimônia. Dos amigos, solicitava o possível e as coisas mais inusitadas. Aracy de Almeida, amiga inconteste, foi uma das vítimas. Ao ser convidada a ajudá-lo, certa vez, com um supositório, ouviu espantada: “Já tentei todas as posições e não consegui nada”. Vinícius de Moraes, outro amigo e parceiro, muitas vezes “sofria” por tabela as investidas daquele que acreditava em dois estados de lucidez: o dos bêbados e dos poetas. Um belo dia, quando tentavam cumprir um compromisso inadiável diante de tantos assumidos, que era o de produzir um jingle para o lançamento de um regulador feminino, a inspiração não chegava. Foram então pedir ajuda a Aracy. Ela, sem pensar muito e achando que os dois estavam aprontando, tomou emprestada a melodia de “O orvalho vem caindo”, de Noel, e atacou de pronto: “O ovário vem caindo…”.

Sua versatilidade era tanta que o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony disse uma vez que se Maria fosse mandado para cobrir a posse do papa, voltaria cardeal. Convidado, no começo de outubro de 1964, pelo compositor Miguel Gustavo para ser seu parceiro na produção de um programa de televisão, respondeu com um bilhete nos seguintes termos: “Nome – Antônio, simples. Telefone: 36-1255, mas só até o dia 14, porque saio do ar…”

Cronista, jornalista, radialista esportivo, o pernambucano Antônio Maria Araújo de Morais fez de tudo. Até desdenhar de suas próprias limitações, já que possuía uma cardiopatia congênita, manifestada desde a infância. Se auto intitulava “cardisplicente”, uma mistura de cardíaco com displicente. Fez da alegria sua vida. Deixou saudade — “a mim não envergonha sentir saudade. Saudades, sim, no plural, é imbecil. O que eu não gosto é da palavra. Tão estalada e inexpressiva que não existe nas outras línguas” —, há 57 anos, que permanece: completaria cem anos neste dia 17/3. Se estivesse vivo e, instado a vacinar, certamente perguntaria a quem fosse aplicar: “Você acha que, com as coisas como estão, este Governo aguenta até o fim do ano?”

Apaixonado pela boemia, virava noites rindo e brincando. Dizia que o Brasil era um país sem caricatura. Por isso, um país triste. “A caricatura é mais importante que o retrato”. Passou a incorporar nas suas crônicas a linguagem do povo, enriquecendo os dicionários, e ilustrá-las, com a ave Ivanov e o gato Profumo. A um leitor que estranhou seu procedimento, cunhou: “Entrei para o rol dos caricaturistas para iniciar um grande movimento nacional pela caricatura. Não a que eu faço. Mas a caricatura que você faz, que outros fazem… sempre sem vez”. José Aparecido de Oliveira disse uma vez: “Maria era cronista do homem da rua. Criou expressões inesquecíveis, como as mal amadas. Ele mesmo fazendo a letra, discutindo a música, às vezes escrevendo notas na pauta. Um artista completo.”

Sua trajetória profissional competente possibilitou que conquistasse o salário mais alto do rádio num determinado período. Mas nunca o afastou de uma postura crítica da profissão. Muito menos do bom humor: “O jornalismo, bem administrado, é tão bom negócio quanto a especulação imobiliária e o jogo da bolsa. Querendo, a gente vende bem aquilo que publica e, melhor ainda, aquilo que não publica”.

Durante mais de 15 anos escreveu crônicas diárias. Assinou, até 1955, as colunas “A noite é grande” e “O Jornal de Antônio Maria”. No jornal O Globo manteve, por pouco tempo (início de 1959), a coluna “Mesa de Pista”, depois foi para a Última Hora. Ali voltou a assinar “O Jornal de Antônio Maria” e “Romance Policial de Copacabana”, esta última com crônicas e reportagens.

Na televisão, o programa “Preto no Branco”, de Oswaldo Sargentelli, deu o que falar na época. E em parte pelas “perguntas de Antônio Maria, da produção do programa”. Costumava deixar os convidados numa situação embaraçosa. Em 1957, produziu com Ary Barroso, um programa de sucesso: “Rio, Eu Gosto de Você”, na TV Rio.

O Maria compositor produziu muito. Entretanto, apenas 62 de suas canções foram gravadas. Duas, na voz de Nora Ney, se transformaram em grande sucesso na programação das rádios brasileiras: Menino Grande e Ninguém me ama. Outras grandes intérpretes de suas composições foram Maysa e Dolores Duran. As duas cidades do seu coração, transformadas em músicas, tornaram-se clássicas — um frevo para o Recife e uma valsa para o Rio. Fez parte do rol dos compositores que retrataram com perfeição o estilo de vida da famosa boemia carioca dos anos 1960: a paixão pela noite e pela bebida e as dores-de-cotovelo afogadas numa mesa de bar. Parte da trajetória de Antônio Maria foi retratada pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos em “Benditas sejam as moças: As crônicas de Antônio Maria”, “O diário de Antônio Maria” e “Antônio Maria: noites de Copacabana”. Os dois primeiros lançados pela Civilização Brasileira e o último pela Relume Dumará, na coleção Perfis do Rio. Da jornalista Alexandra Bertola, também um belo trabalho: “Com vocês, Antônio Maria” da Editora Paz e Terra.

Uma de suas frases marcantes: “Se você me encontrar dormindo, deixe; morto, acorde”. Não foi possível mais acordá-lo em 15 de outubro de 1964. Partiu, mas não sem antes escrever a tão famosa frase: “Com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria, brasileiro, cansado, 43 anos, cardisplicente (isto é: desdenha o próprio coração). Profissão: esperança”. Como diria o Abelardo Barbosa, adorado Chacrinha, que foi seu companheiro de moradia: “O homem vai para o trono ou não vai?”. Foi e está ao lado de Deus, rindo e provocando eternamente aqueles que não acreditam no potencial da profissão: “Que bobos! Eles pensam que os jornalistas escrevem com as mãos”.

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Boanerges Lopes é jornalista e professor titular da UFJF-MG. Autor de livros e colaborador do OI.