Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um lead para Heloísa Helena

Não há dúvida. A grande imprensa entrou firme na campanha eleitoral. As pautas não comportam qualquer investigação contra supostas irregularidades cometidas pelo candidato tucano ou seus aliados. Quem se dispuser a um exercício de comparação que leia as folhas em 2002. Àquela época, por fracionamentos conjunturais que não cabem neste artigo, tivemos, talvez, a melhor cobertura de uma eleição presidencial no país. O que assistimos, agora, é a retomada do padrão usual dos pleitos de 1989, 94 e 98.

A novidade é a clareza da aliança dos grandes veículos. Ou quem sabe sua amplitude. Deixando de lado eventuais divergências, a coligação Folha-Globo-Estado de S.Paulo- Jornal do Brasil dá ao analista atento a certeza de que o jornalismo é uma atividade secundária, quando não ocasional, nos grandes conglomerados de mídia. A desconstrução da imagem do governo é tarefa imperativa. Nunca a hegemonia de classe se fez tão nítida no interior do campo jornalístico. A informação é um penduricalho tático, nada mais.

É nesse marco que se dá uma operação interessante. A blindagem do bloco liberal-conservador vem acompanhada de um destaque inusual a uma candidata que, supostamente, representaria a nova esquerda. Ambos se complementam em seus fins últimos. Heloísa Helena dá à imprensa a fachada de um falso pluralismo. Em troca, recebe um recorte simbólico que a torna palatável a expressivos setores de classe média. É o que podemos chamar de legitimação recíproca. Os dividendos são imediatos para as duas partes.

Esquerda desejável

Há quem veja autenticidade em simulações estudadas. Firmeza de convicções em ataques pessoais. E diferencial ético em linguagem vulgar. Para estes, a grande novidade nas próximas eleições é a candidata do PSOL à presidência da República. Apresentada como alternativa à polarização entre PT e PSDB, a senadora tem mostrado uma determinação invejável. O manifesto da Frente de Esquerda (PSOL-PSTU-PCB) é taxativo:

‘O povo brasileiro não pode ser condenado a escolher entre Lula e Alckmin, dois candidatos que defendem o mesmo programa neoliberal, a mesma prática política marcada pela corrupção que impera no Congresso Nacional e no Governo. A candidatura de Heloísa Helena é uma alternativa real para o povo brasileiro contra estes dois candidatos apoiados pelos banqueiros. A Frente de Esquerda quer libertar o país das garras do capital financeiro e do imperialismo.’

São palavras fortes, de indiscutível contundência ideológica, e que sinalizam para uma candidatura capaz de aglutinar os descontentes com os rumos da política brasileira. É o que supostamente restou de ético de uma esquerda carcomida. O que sobrou incólume após o desmoronamento de uma estrutura de compra de parlamentares e solapamento das instituições do Estado. Distintos cidadãos, parece dizer o documento, o sonho não acabou. Ele ressurge desde o Quilombo dos Palmares anunciando que ‘é preciso ousar, é preciso criar o novo, o novo é a frente de esquerda’. Será? Ou estaremos vislumbrando uma farsa diversionista, docemente embalada por articulistas conservadores e lideranças políticas de direita?

O comportamento errático da imprensa já não deixa dúvidas. Os principais colunistas de O Globo, Folha de S. Paulo, Estadão e JB ‘adotaram’ HH como referencial de uma esquerda desejável. O padrão operacional parece se repetir em todos os veículos. Abrem-se espaços para a grita moralista da candidata ao preço de desqualificar o conteúdo programático do partido. Um pacto faustiano que une o esquerdismo inconseqüente a uma mídia em campanha.

Ideologia de autoridade

Os cálculos políticos de candidatos estão na matriz narrativa que elaboram. O universo simbólico do eleitorado deve estar em consonância perfeita com o discurso. Clivagens de renda e ocupação sempre são levadas em conta. Peculiaridades socioculturais não são ignoradas. A maior ou menor importância atribuída pelos eleitores aos partidos políticos é vital para a estratégia discursiva adotada. Sendo assim, para quem fala Heloísa Helena? O que prevalece em suas intervenções? A marcação de diferença entre sua candidatura e a de Lula, por exemplo, é construída a partir de quê? De um debate ideológico de fundo ou de considerações meramente moralistas?

No primeiro caso temos uma ação pedagógica no campo democrático-popular. No segundo, apesar das intenções da Frente de Esquerda, há uma recorrência discursiva bem ao gosto da direita. E dos editores da pluralidade.

Quando questões políticas são redutíveis a qualidades pessoais ou deformações de caráter a grande beneficiária é a direita. Como destacou Flávio Aguiar, o eterno moralismo que divide a cena política em ‘bons’ e ‘maus’ administradores, e assim ‘naturaliza’ as diferenças políticas dos projetos, trabalha sempre a favor daqueles que nada querem mudar.

Nesse caso, Heloísa Helena fala principalmente aos que ‘no vale-tudo são capazes, de matar, mentir, caluniar’. Fala à parcela moralista e autoritária da classe média urbana brasileira. Aos que oscilam entre a dominação arcaica e o anseio pelo moderno. Aos que procuram ocultar a ideologia de autoridade que norteia sua práxis pela modernidade de alguns engajamentos. Provavelmente, quando jovens, participaram de lutas feministas, movimentos contra o regime militar e manifestações contra o racismo. Isso, no entanto, não elimina os traços ideológicos mais fortes que marcam esse extrato: a recusa da cidadania plena, a incapacidade de distinguir entre o público e o privado e a crença no recurso à força como garantidor da ordem.

Despolitização deplorável

Destaque-se, aqui, que isso perpassa, mas não condiciona, sua opção partidária. Tanto pode jogar com o PSDB como apostar no PSOL. O imperativo é que a semântica da Casa Grande permaneça hegemônica. E isso a senadora alagoana assegura com destemperos calculados. O ranço autoritário e preconceituoso nada de braçada em suas declarações:

‘Tenho muitos defeitos para que ele precise usar da mentira para me atingir. Mas não vou bater boca com os empregadinhos ministros do presidente Lula, prefiro esperar para bater boca com o patrão deles.

‘Tarso não tem o que fazer porque o governo é incompetente. Não vou bater boca com moleque de recado do presidente. Ele que vá arranjar um trabalho para fazer e me tirar da cabeça dele porque está com idéia fixa com Heloisinha.’

De fato, tais afirmações, extraídas da Folha de S. Paulo, mas publicadas por toda a grande imprensa, soam como música para os segmentos mais reacionários da sociedade brasileira. Poucas vezes o exotismo pueril se apresentou com tanta radicalidade. O que Heloísa teme é o debate programático. Sabe que se for explícita poderá perder parte da direita que lhe dá sustentação. Irônico o destino de um partido que serve como linha-auxiliar da direita. Mal nasceu e o PSOl precisa ser eclipsado por sua candidata. Propala a vontade de debater na televisão por saber que o tempo da mídia não permite aprofundamento de idéias. Está certa quando antevê que será poupada por Alckmin (PSDB) e Buarque (PDT). Sabe que sua peroração udenista não sofrerá apartes. Saberá utilizar, sempre que necessário, recursos de gênero.

Há algum tempo, a senadora Ideli Salvatti (PT-SC) já havia alertado para o lado cênico de HH. ‘Acho que tudo o que faz é milimetricamente estudado. Das roupinhas simplesinhas a postergar seus discursos para aparecer ao vivo na hora dos jornais noturnos e até levar uma sobrinha para ficar desenhando no plenário.’

De fato, a senadora já aprendeu métodos de representação. Criou o personagem, montou o figurino e produziu o cabelo. Vive enclausurada num roteiro em que não cabe falar em classes, movimentos sociais e projetos políticos. A estrutura de dominação só comporta, em sua narrativa, categorias como ‘patifes’, ‘ordinários’ e ‘inescrupulosos’. É uma estratégia discursiva que lhe traz dividendos eleitorais, mas ao preço de uma despolitização deplorável. Os mais jovens devem ficar atentos. Há farsas que custam caro. E todas elas são avalizadas pelos jornalões.

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Professor de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro