Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um repórter sem-par que toma partido

Robert Fisk é um cruzado.


Se ele lesse essa frase, provavelmente descarregaria sobre o autor uma porção substancial de suas inesgotáveis reservas de vitríolo – antes mesmo, quem sabe, de ver o que ele quis dizer com isso. Porque poucas coisas, além daquela palavra de triste história, haverão de enfurecer tanto esse extraordinário repórter, que conhece talvez mais do que qualquer colega ocidental o mundo árabe-muçulmano – a sua praia desde 1976, quando deixou de cobrir regularmente outra sangueira, a Irlanda do Norte, para o Times de Londres.


Mas Fisk é um cruzado – um jornalista que acha que reportar os fatos com o perfeccionismo que é a marca registrada de suas matérias é pouco para mostrar a verdadeira dimensão das tragédias de que dá testemunho.


Ele gosta de citar a jornalista israelense Amira Hass, para quem a razão de ser do ofício, muito mais do que perseguir a meta impossível da objetividade, é vigiar o poder e os centros de poder.


Fisk não só é um vigia apaixonadamente engajado – os Estados Unidos e Israel são os seus alvos por excelência, embora escrevesse com desprezo de Yasser Arafat e com abominação de Saddam Hussein – como também domina admiravelmente a arte do insulto de que falava (e com que se comprazia) o famoso crítico americano H.L. Mencken (1880-1956).


O grande repórter, o cruzado do antiimperialismo no Oriente Médio e o cáustico autor que cobre de impropérios os que divergem dele – e que retribuem na mesma moeda, mas raras vezes com o mesmo talento – compõem um personagem único na cena jornalística internacional.


Às vésperas dos 60 anos, baseado em Beirute, casado com uma americana e falando árabe fluentemente – o que decerto o ajudou a entrevistar Osama bin Laden três vezes entre 1993 e 1997 – o inglês Fisk é tido como o mais premiado correspondente estrangeiro da atualidade. Pudera: acumula nada menos de sete prêmios Jornalista Internacional do Ano, concedidos pelos profissionais britânicos.


No Independent desde 1987 – talvez por se identificar com o nome do jornal – cobriu a guerra Irã-Iraque, a guerra do Golfo, a intifada palestina e a invasão do Iraque, isso depois de ter coberto, para o seu primeiro empregador, a Revolução dos Cravos, a Revolução Iraniana e a invasão soviética do Afeganistão.


Ira insopitável e julgamentos sumários


Agora ele é notícia. Acabou de publicar um tarugo de 1.283 páginas, intitulado The great war for civilisation: the conquest of the Middle East [A grande guerra pela civilização: a conquista do Oriente Médio] que os críticos consideram indigesto pelo tamanho e pela desordem do conteúdo.


A revista The Economist aconselha, como se fosse possível: ‘Pule as análises, mas leia com atenção até o fim; como repórter, Robert Fisk é sem-par’.


O também inglês Geoffrey Wheatcroft escreveu no New York Times de domingo (11/12) que o livro, segundo ele o ‘testamento’ de Fisk, só teria a ganhar se reduzido à metade ou mesmo a um terço. Deve ter razão. Ainda assim o resenhista não põe em dúvida a honestidade profissional do autor. O que ele lastima – e não terá sido o primeiro, nem o último a fazê-lo – é o ‘indignado partidarismo’ de Fisk.


‘A sua ira insopitável pode ser um crédito para o seu coração’, avalia Wheatcroft, ‘mas não serve como história satisfatória.’ Para ele, ‘os julgamentos de Fisk e o seu tom de voz são tão sumários que prejudicam a sua própria causa’.


Previsivelmente, já que a mídia americana começou a se ocupar de seu livro [o NYTimes não foi o primeiro], ele passou a se ocupar, mais uma vez, é o caso de dizer, da mídia americana. Com a argúcia e o espírito brigão de sempre.


Vejam só como ele começou o artigo America slowly confronts the truth [Lentamente, a América encara a verdade], publicado no Independent em 3/12. [Para baixar o texto é preciso pagar £ 1]




‘Observar o patético, velho, submisso labrador da mídia americana metamorfosear-se da noite para o dia em um perverso rottweiler é um dos eternos prazeres da sociedade nos Estados Unidos. Tenho experimentado esse fenômeno nas últimas duas semanas, seja como vítima, seja como beneficiário.’


Inicialmente, conta, a sua condenação da presidência americana e da ininterrupta construção de assentamentos israelenses na Cisjordânia foi tratada em Nova York e Los Angeles ‘com o desdém que todos os grandes jornais reservam para aqueles que ousam pôr em dúvida projetos nobres e democráticos’.


E aí parte para o embate direto com o ‘antigo luminar’ do New York Times, Ethan Bonner, que o desancou por ele ter atacado jornalistas americanos que, segundo Fisk, e Bonner fez questão de citar, ‘cobrem o Oriente Médio de modo tão pusilânime, com tanto medo de serem criticados pelos israelenses, que transformam assassinatos em ‘ataques dirigidos’ e assentamentos ilegais em ‘vizinhanças judaicas’.’


Escrevendo com soco-inglês


Bonner, investe Fisk, está tão distante de seus leitores que não sabia que ‘pusilânime’ é exatamente a palavra com que muitos americanos designam os seus acovardados jornais – muito provavelmente, acrescenta, uma das razões por que a sua circulação está caindo de forma tão desastrosa.


Isso parece dar uma boa idéia do soco-inglês que Fisk usa para escrever – sem que, por isso, ele queira nocautear a verdade dos fatos.


Ele soube captar, por exemplo, o momento em que ‘o velho cachorro da mídia farejou o ar, percebeu que o poder estava se afastando da Casa Branca e começou a babar’. Foi quando o respeitado congressista democrata, e veterano do Vietnã, John Murtha ousou sugerir que a guerra no Iraque estava perdida e que as tropas deviam voltar já. Os republicanos, a começar do vice Dick Cheney, só faltaram apedrejar o deputado diante do Capitólio – ‘uma resposta tão brutal’, comenta Fisk, ‘que eles tiveram de renegá-la’.


O jornalista se convenceu de que o vento mudara definitivamente de direção quando, apesar da fama de antiamericano, pôde atacar a loucura dos Estados Unidos no Iraque, numa entrevista ao vivo numa TV de São Francisco – sem ser interrompido.


Enquanto isso, na revista New Yorker, Seymour Hersh – ‘essa bênção para o jornalismo americano’ que revelou a tortura na prisão de Abu Ghraib – ‘tirou outro coelho negro de sua cartola iraquiana’, com a informação de que comandantes americanos no Iraque acreditam que a insurgência ficou fora de controle.


Hollywood pega o espírito da coisa


A indústria cultural americana também percebeu a virada – pelo visto, antes dos jornais, se se levar em conta o tempo de maturação de seus produtos – e aderiu. Fisk cita dois filmes que em hipótese alguma seriam feitos e muito menos exibidos em circuito comercial, há dois ou três anos.


Um é Jarhead [Soldado anônimo, na versão brasileira], de Sam Mendes, sobre um fuzileiro brutal e traumatizado na Guerra do Golfo de 1991. Outro é Good night, and good luck [sem título em português, exibido em outubro, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo], de George Clooney, sobre a luta do legendário correspondente de guerra Ed Murrow para desmascarar o senador Joseph McCarthy e o seu infame Comitê de Atividades Antiamericanas, em 1950.


[A grande sacada cinematográfica de Clooney foi usar um ator para o papel de Murrow, mas apenas imagens reais da época para McCarthy. Numa pré-estréia, espectadores acharam que o ‘ator’ que fazia McCarthy ‘exagerava’.]


Mas uma coisa continua tabu na América, ressalta Fisk: criticar Israel. O jornalista lembra, oportunamente, que o em geral implacável Fahrenheit 9/11 de Michael Moore ‘não menciona Israel nenhuma vez’.


Fisk diz – mas não prova, o que no caso de um repórter de seu calibre é um pecado e tanto – que ‘os americanos estão prontos para discutir o relacionamento dos Estados Unidos com Israel e as injustiças da América aos árabes’.


Fica, no entanto, a sua conclusão – ou wishful thinking – para o tempo julgar:




‘Como sempre, os americanos comuns estão muito à frente de sua imprensa e dos seus repórteres de TV igualmente domesticados. Agora é esperar para ver se os meninos e meninas da mídia conseguirão recuperar o atraso em relação ao seu próprio povo.’


Robert Fisk é mesmo ‘um jornalista com redação própria’. Tomara que não seja uma espécie em extinção.


[Texto fechado às 21h30 de 11/12]