
(Foto: Hitesh Choudhary/Unsplash)
Em meio às diversas reflexões que têm sido compartilhadas sobre o impacto da IA generativa no Jornalismo, um tema que tem ganhado força é a discussão sobre modelos de negócio. E, no dia 25 de novembro, acredito que ganhamos uma das contribuições mais importantes para o debate e que me reforçou uma convicção pessoal: os veículos jornalísticos não vão sobreviver à era da IA se mantiverem seus modelos de negócio atuais.
O catalisador dessa reflexão, e deste artigo, é o texto recente Beyond the Artifact: The Brutal Economics of Liquid Content escrito por Shuwei Fang, diretora-associada da Open Society Foundation na área de Mídia e Desinformação e pesquisadora na Universidade de Harvard, em sua newsletter Radically Informed.
Fang é economista de formação, o que fornece uma lente interessante, e ainda pouco explorada no mundo jornalístico, para avaliar a situação atual da área.
A autora parte de um cenário “B2A2C”, em que o fluxo informacional começa em uma empresa (B), passa por uma ferramenta de IA generativa (A) e chega ao consumidor (C). Esse fluxo já existia com as plataformas digitais de busca ou redes sociais e seus algoritmos, mas ganhou um novo patamar após o surgimento do ChatGPT.
Na prática, o público tem feito cada vez menos o “caminho inverso” e voltando ao “B” dessa equação para ter acesso ao conteúdo. Se antes a inteligência artificial “meramente” selecionava e organizava conteúdos, agora ela é capaz de resumi-los, agrupá-los, transformá-los em áudios, vídeos e imagens e apresentá-los de forma personalizada ao usuário. Por causa disso, é cada vez mais comum que a jornada do usuário pare no “A”.
Os efeitos para o jornalismo já tem sido profundos, com quedas de audiência em veículos que chegam à casa dos 60%, principalmente pelas mudanças do Google. O problema é que a maior parte dos veículos construiu modelos de negócio alicerçados exatamente na audiência proveniente de plataformas. Sem elas, a sustentabilidade financeira dessas empresas tende a ruir de forma acelerada.
Fang pontua que, em geral, as empresas têm seguido dois caminhos para combater esse cenário. O primeiro é realizar inovações incrementais, incorporando a própria IA generativa nos seus fluxos de trabalho e produtos em busca de redução de custos e ganho de eficiência. Ou seja, fazer mais com menos sem ter uma perda significativa de qualidade.
O segundo é a proteção de conteúdo, travando batalhas com as empresas de tecnologia para a proteção de direitos autorais. A estratégia é variável, indo desde acordos comerciais com essas empresas até bloqueio de acesso a sites e processos judiciais para compensação.
Mas a autora é categórica: essas medidas não são suficientes. Como Fang corretamente aponta, as últimas décadas foram marcadas por uma comodificação do conteúdo jornalístico, derrubando seu valor. Ora, usar a IA para produzir mais apenas vai acelerar esse processo. E pior: quanto mais as ferramentas de IA tornam-se a fonte informativa do público, mais as suas donas centralizam o valor obtido nesse processo, raramente repassando-o para os veículos ou, se forçadas, transferindo um valor insuficiente para a sobrevivência dos mesmos.
Como resume Fang, os veículos “estão alimentando a besta que os devora enquanto correm para levar os preços ao fundo do poço”. E ela alerta que outro caminho possível, a formação de comunidades menores e mais leais para distribuição direta, traz outro risco: a concentração de informação de qualidade para os poucos com disposição e recursos para pagar por ela.
O cenário, portanto, é extremamente adverso. Mas a própria autora apresenta caminhos que considero particularmente interessantes. Basicamente, Fang centra-se no histórico de estudos econômicos para apontar que a solução pode passar pela criação de uma nova proposta de valor para o jornalismo. Afinal, a cadeia atual de valor da área tem se mostrado incapaz de cumprir sua função (dar dinheiro e sustentar os veículos e a atividade jornalística).
Essa nova proposta pode passar por um paradoxo fundamental da era contemporânea destacado por Fang: o avanço da IA torna processos jornalísticos (apuração, verificação etc.) cada vez mais valorizados, enquanto os produtos jornalísticos têm um valor percebido cada vez menor. O caminho pode estar, portanto, em encontrar novos modelos centrados nesses processos, com estratégias de monetização correspondentes.
A autora ressalta que esse paradoxo também abre espaço para pensarmos novas formas de compartilhar com o público aquilo que ele mais valoriza: “A ironia é que as coisas que o jornalismo faz de melhor – construir confiança, verificar a verdade, dar sentido à complexidade – são exatamente o que um mundo da informação saturado de IA mais precisa”.
Entretanto, “essas capacidades sempre estiveram agrupadas em artigos, com seu valor oculto no produto final ao invés de ser reconhecido como um recurso independente. O setor precisa parar de confundir o formato com o conteúdo e começar a encontrar maneiras de aproveitar esses ativos intangíveis”.
É claro que nada da proposta de Fang é simples de ser incorporado. Mas o mercado jornalístico já vem de anos de atraso na percepção de como criar modelos de negócio adequados à era digital, sem dependência extrema de plataformas.
Agora que muitos estavam avançando nessa jornada, a IA virou o cenário de ponta cabeça e exige reinvenções. Manter estratégias, mentalidades, produtos e modelos não será suficiente. É hora de aceitar o inevitável e ser ousado nas experimentações. Ou pagar o preço.
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João Pedro Malar é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, onde também se formou como bacharel em Jornalismo. Atualmente, integra o grupo de pesquisa COM+, dedicando-se ao estudo do Jornalismo Digital, relações entre veículos e plataformas digitais e modelos de negócio no Jornalismo.
