Wednesday, 11 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Carlos Heitor Cony

‘No episódio cômico que envolveu um jornal, um jornalista e o presidente da República, duas pessoas se destacaram como mediadores, salvando o governo do vexame totalitário: o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, e o assessor de imprensa, Ricardo Kotscho. Ficaram leais ao presidente, afundariam com ele se o caso tivesse maiores complicações, mas mantiveram suas posições pessoais contrárias à expulsão do jornalista norte-americano.

Tudo terminou bem, apenas com mais um rombo na imagem do presidente Da Silva, afinal, não é de agora que a sua preferência por bebidas destiladas é comentada nos botecos e velórios -para lembrar citação do Nelson Rodrigues.

Quanto à retratação em si, ela não diz nada, a não ser o óbvio: o jornalista não teve a ‘intenção’ de ofender o presidente. Nem haveria motivos para isso, não consta que eles sejam inimigos pessoais nem que entre os dois tenha havido aquilo que os italianos chamam de ‘fatto di sangue o di onore’.

Ele registrou comentários de suas fontes -o que qualquer jornalista faz-, tendo o cuidado de invocar o direito do sigilo das ditas fontes, que muitas vezes são inventadas. O representante do ‘NYT’ citou três fontes, que foram consideradas, unilateralmente, sem credibilidade, o que não vem ao caso. Até hoje, no escândalo do Watergate, discute-se a credibilidade da principal fonte, escondida num pseudônimo pornô, Garganta Profunda, que provocaria a renúncia de Nixon.

Qualquer jornalista processado, na primeira audiência, é indagado pelo juiz se tinha intenção de ofender o autor da ação. Todos respondem que não. Quando fui processado pelo ministro da Guerra, em 1964, foi essa a minha resposta. Julgava-o um gorila, mas apreciava seus óculos escuros, que ele copiava do ator Marcello Mastroianni em ‘A Doce Vida’. No fim da audiência, o general veio apertar cordialmente a minha mão -mas não me livrou da prisão.’

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‘Assunto único’, copyright Folha de S. Paulo, 13/05/04

‘Pensamento único é uma droga, mas pior mesmo é o assunto único. Contudo é impossível escapar dele. Não se trata de um sentimento corporativo da classe jornalística, muito menos de pinimba especifica contra um governo que, depois de se mostrar desorientado, começa a se mostrar desastrado.

A expulsão do jornalista do jornal ‘The New York Times’, sem dúvida um profissional também desastrado, coloca o Brasil do PT na mesma situação de países ridículos, geralmente em vigência de regimes totalitários. Para todos os efeitos, a atitude do governo passou recibo da suspeita que todos tínhamos e que ficou explicitada na reportagem publicada pelo jornal nova-iorquino.

O caminho natural para punir o jornal e o jornalista seria o processo, que, nos Estados Unidos, é levado a sério e, como subproduto, funcionaria como um petardo na vestalidade daquele jornal, que não faz muito foi obrigado a se desculpar pelas gafes que cometeu. Volta e meia pratica um tipo de imprensa marrom, mas não perde a pose de árbitro mundial, decretando o que é bom e o que é mau, dando nome às coisas, como um novo e autonomeado Adão.

Os juristas consultados pelo governo e que aconselharam a expulsão do jornalista sofrem da doença infantil que ataca o PT toda vez que o partido enfrenta um ataque -não importa se justo ou injusto: expulsam o dissidente ou o contraditório.

Não é de agora que se comenta a tendência do presidente Da Silva pelas bebidas consideradas fortes. Durante a campanha eleitoral, em pelo menos um episódio que se tornou público, o comportamento de Da Silva mereceria o teste do bafômetro, pela atitude impensada que tomou, abandonando um almoço intempestivamente.

A expulsão do jornalista do ‘NYT’ -perdoem o clichê- foi um tiro no próprio pé. Lá fora, será considerado bom de copo -o que não chega a denegrir nem o Brasil nem a ele próprio. Mas, aqui dentro, perderá um naco importante de sua credibilidade pessoal.’



Otavio Frias Filho

‘Inacreditável’, copyright Folha de S. Paulo, 13/05/04

‘A decisão de expulsar o correspondente do jornal americano ‘The New York Times’ no Rio, por causa de reportagem sobre hábitos etílicos do presidente Lula, é um despropósito. O governo deve confessar que errou e voltar atrás. No mínimo, deveria fazer uso de alguma filigrana jurídica para que a pretendida expulsão não tenha efeito.

Do ângulo conceitual, a decisão é errada. A contrapartida da liberdade de expressão é a possibilidade de eventuais ofendidos obterem reparação na Justiça. Expulsar um jornalista não passa de tentativa desastrada de intimidar a imprensa. É absurdo, aliás, que uma legislação de 1980 (época da ditadura militar) confira poder tão abusivo ao ministro da Justiça.

Do ângulo político, a decisão é cretina. Levados por senso de justiça, por patriotada ou por suscetibilidade profissional ferida, todos os observadores locais estavam solidários com Lula. Até a oposição apoiou o presidente no episódio. Com um gesto emocional, tolo, Lula conseguiu inverter essa situação num passe de mágica, colhendo uma condenação que agora vem em uníssono de todos os quadrantes.

Do ângulo internacional, a decisão é patética. Ela propicia que a imagem do Brasil seja injustamente confundida com a de países que praticam a expulsão de jornalistas, geralmente sociedades rudimentares, dirigidas por algum ditador sanguinário ou corrupto. O empenho do governo Lula de se mostrar civilizado vai por água abaixo por causa de um incidente menor.

Do ângulo doméstico, a decisão é prejudicial ao próprio governo. Ela acrescenta mais um elemento de ridículo à imagem de um presidente que vem se deixando folclorizar. Um dos ônus da função pública é ter de suportar críticas infundadas. Esse ônus compensa, em parte, o enorme poder concentrado nas mãos de um presidente. Com ou sem razão, a imagem de Lula ficará associada a alcoolismo.

Desde o caso Waldomiro, vem ficando cada vez mais patente que o governo não sabe como se comportar em situações de pressão. Falta-lhe discernimento, senso de proporção, experiência no manejo de crises e habilidade para contornar obstáculos. Para cúmulo da ironia, desta vez o ‘fogo amigo’ não proveio de seus estabanados auxiliares, mas do próprio presidente da República…

É notório que o presidente Lula bebe. Bebe mais do que seria aceitável? Depende do ponto de vista, que no caso varia muito de pessoa a pessoa. Tem permitido que sua imagem fique ligada ao consumo de álcool? Certamente sim -tanto quanto a churrascos, charutos, manicure e outras concessões que agridem a expectativa de que um líder popular deveria dar exemplo de austeridade.

Mas não existem nem indícios de que a bebida esteja a afetar o seu desempenho como presidente nem evidências comprovadas de consumo exagerado, por mais fluidos -passe o trocadilho- que sejam tais limites. Por isso o assunto não havia aparecido ainda na imprensa brasileira. Veio à tona na reportagem rarefeita, leviana do jornal americano.

O texto pode ser condenável, não o direito do jornalista de escrevê-lo e de responder na Justiça por ele. Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.’



André Singer

‘Uma reação à altura’, copyright Folha de S. Paulo, 13/05/04

‘O governo brasileiro não poderia ficar inerte diante das ofensas à honra e à autoridade do presidente da República. Mas a decisão de cancelar o visto temporário de um correspondente do ‘New York Times’ no Brasil não constitui nenhuma tentativa de cerceamento à liberdade de imprensa. Tanto é assim, que o jornal norte-americano está autorizado a enviar ao país, tão logo queira, o jornalista que bem entender para substituir o correspondente que teve seu visto cancelado.

Esse eventual substituto, junto com o outro correspondente do ‘New York Times’, que permanece no Brasil, encontrará aqui, garantida pela Constituição Federal, a mais irrestrita liberdade de trabalho e de expressão, equivalente àquela que é assegurada aos jornalistas brasileiros.

Como se sabe, o Brasil é hoje um dos países mais livres do mundo no que diz respeito à liberdade de imprensa, e este governo tem um compromisso inarredável com essa conquista da humanidade, que é o direito de expressar o pensamento. As críticas mais duras, as revelações mais chocantes ou as brincadeiras apimentadas não sofrem nem sofrerão censura de nenhum tipo no Brasil.

Mais do que isso, as forças políticas que elegeram o governo Lula têm orgulho de haver participado ativamente das lutas dos anos 1970 e 1980, que nos permitiram chegar ao elevado grau de liberdade de imprensa existente no país. O credo democrático, que implica o respeito absoluto à liberdade de expressão, está na biografia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, bem como na sua presente ação governamental.

O que está em jogo aqui não é a liberdade de imprensa, e sim a responsabilidade necessária na utilização de um instrumento poderoso como é a divulgação de informações em um veículo de repercussão mundial. Do mesmo modo que a liberdade de exercer a medicina não pode impedir que se proíba de clinicar a um médico que deliberadamente mata seus pacientes, a liberdade de imprensa não pode servir de pretexto para ser leniente com quem difama, injuria e calunia. É por isso que os jornalistas, de acordo com a legislação brasileira, têm que responder na Justiça quando acusados de cometer um desses três tipos de crime.

A decisão do governo foi tomada de forma refletida e ponderada. Ao ter conhecimento da notícia, no sábado, 8 de maio, o governo aguardou quase 24 horas para ter noção exata do conteúdo do texto e da forma da publicação. Tratava-se de uma longa reportagem, que ocupava toda a metade superior de uma página dominical do ‘New York Times’, acompanhada por foto do presidente na Oktoberfest.

O conteúdo era, em resumo, o seguinte: haveria um problema de governabilidade no Brasil, em decorrência do abuso de álcool pelo presidente da República. Em apoio a essa tese, eram apresentadas frases e piadas pinçadas aqui e ali, emitidas por fontes sem nenhuma confiabilidade para o caso. Além desses excertos, havia referências a improvisos do presidente, a suas relações familiares e a ‘histórias’ supostamente ‘contadas’ em Brasília. Enfim, um misto de invencionice, leviandade e má-fé apropriado a um obscuro tablóide sensacionalista, não ao ‘New York Times’. Convém assinalar que nenhum veículo da grande imprensa brasileira acolheria texto daquele teor.

Mesmo quando constatado que a reportagem, publicada em um jornal de vasta repercussão e credibilidade internacional, trazia graves danos à imagem do Brasil e do presidente da República, com óbvios prejuízos para a política externa do país e para as nossas instituições, o governo decidiu aguardar antes de tomar uma medida. Determinou-se ao embaixador do Brasil em Washington que procurasse a direção do ‘New York Times’, com vistas a alertar o jornal para a gravidade do erro de ter editado um texto incompatível com qualquer publicação séria. Esperava-se assim que, uma vez percebido o erro cometido, o jornal publicasse uma retratação que reparasse o dano infligido. Essa retratação poderia nos proteger de futuros ataques irresponsáveis à honra do presidente e do país.

Apenas quando ficou clara a indiferença do jornal norte-americano pelos danos produzidos ao Brasil, decidiu-se, 72 horas depois de a notícia ter começado a circular, pelo cancelamento do visto temporário do autor da referida reportagem. Se o jornal tivesse reparado o erro cometido, o governo teria aceitado as desculpas, ainda que elas dificilmente anulassem os prejuízos já causados. Diante da simples reiteração das calúnias publicadas, já que a porta-voz do ‘New York Times’ considerou a reportagem ‘correta’, tornou-se necessário tomar as medidas cabíveis.

A referida reportagem foi produzida por um estrangeiro e publicada fora do Brasil, longe, portanto, da competência da Justiça brasileira. Sendo assim, a alternativa compatível com a gravidade do caso foi a de suspender o visto do correspondente para restaurar um ambiente de responsabilidade e respeito no trato dos assuntos públicos brasileiros.

A liberdade de imprensa é um valor inquestionável para o governo Lula. Ao lado dela, também é dever do governo garantir o respeito ao Brasil e a suas instituições. André Singer, 46, jornalista, doutor em ciência política pela USP, é o porta-voz da Presidência da República. Foi secretário de Redação da Folha (1986-88).’



Taís Gasparian

‘A privacidade do presidente’, copyright Folha de S. Paulo, 13/05/04

‘Depois que a Folha e ‘O Estado de S. Paulo’, dois dos principais jornais do país, estamparam em suas primeiras páginas, na edição do último domingo, 9/5, a notícia da publicação, no jornal ‘The New York Times’, de um artigo relacionando o presidente Lula ao consumo excessivo de álcool, parece que todo o establishment, a oposição e a própria imprensa só falam disso. O Planalto reagiu com tamanha agressividade, que, não satisfeito em classificar a notícia como caluniosa e cogitar de processar o jornal, ainda tomou a iniciativa de expulsar o jornalista do país. O mais espantoso é que um artigo que nem mereceria tanto destaque se transforme em estopim de um incidente diplomático.

Apesar do forte viés provocador e do tom de mexerico do artigo, a eleição do assunto abordado pelo ‘New York Times’ se presta a reflexões sobre a sua propriedade, a saber: pode um veículo de comunicação divulgar um fato que diz respeito à privacidade do presidente da República? Poderia o presidente adotar a sugestão de seu secretário e processar o ‘NYT’ pela notícia? Porque aquilo que uma pessoa bebe ou come, ou suas preferências pessoais por esta ou aquela bebida, ainda que alcoólica, diz respeito à sua vida particular. Tratando-se de um ato pessoal ou privado, pode um jornal divulgá-lo sem que com isso cometa uma invasão de privacidade contra a autoridade máxima do país?

O presidente Lula assumiu, desde o dia 1º de janeiro de 2003, o mais importante cargo público do país. Como homem público, sua esfera de privacidade é reduzida, pois seus atos importam à nação. Milhões de brasileiros confiaram a ele parcela importante do destino do país.

A liberdade de informação e o direito à privacidade são princípios constitucionais que possuem a mesma escala valorativa. Mas há alguns pressupostos que fazem com que, diante de determinada situação concreta, seja lícito que um princípio se sobreponha ao outro. Um deles é o interesse público. Se o fato fosse atribuído a uma pessoa qualquer, sua divulgação poderia ser encarada como uma violação de intimidade, pois isso não diz respeito a ninguém, faltando-lhe o atributo principal referente à liberdade de imprensa, que é o interesse que a notícia desperta.

Outro pressuposto é o fato de o retratado ser uma pessoa que ocupa um cargo público, devendo portanto satisfação à sociedade. Sobre isso, os tribunais do país, já há algum tempo, têm decidido que a esfera de privacidade de uma pessoa de renome, com vida pública ou destaque social, é menor, em razão do interesse que sua intimidade desperta. Se isso vale para um artista, um jogador de futebol ou um político, o que dizer se a notícia se referir ao presidente da República?

O terceiro pressuposto é o de que o direito à informação afeta a todos os cidadãos, enquanto o direito à privacidade diz respeito a uma só pessoa ou a poucos, de tal sorte que, de modo geral, quando confrontados os princípios, e estando presente o interesse comum pela notícia, opta-se pela primazia do interesse público.

Se há rumores de que o presidente tem bebido exageradamente, é legítimo que veículos de informação divulguem tal fato, já que é de interesse comum a informação sobre a saúde do presidente. Não há nenhuma invasão de privacidade. Aliás, como menciona o artigo do ‘NYT’, não é de hoje que a imprensa brasileira tem feito alusão, embora de forma oblíqua, a esse assunto. Como se não bastasse, o presidente tem se deixado fotografar com copo de bebida na mão, o que, de certa forma, tira a questão do âmbito estritamente privado. E o fato de a informação ter alcançado o hemisfério Norte torna legítima a sua divulgação por um jornal estrangeiro.

Se fosse uma gripe, uma pneumonia ou um tumor, ninguém discordaria de que os jornais estariam autorizados a fazer todo tipo de especulação. O assunto escolhido pelo jornal estrangeiro não se refere a um aspecto pessoal da vida do presidente que não tenha interferência com o exercício da função pública. O álcool tem influência direta sobre a capacidade de discernimento e sobre a capacidade de decisão de quem o bebe. Diferentemente do cigarro, por exemplo, o álcool afeta as atitudes de quem o consome e tem um efeito nocivo não só para a pessoa, mas para todos os que com ela se relacionam.

Certamente interessa aos cidadãos ter mais informações sobre o assunto, tal como saber se se trata de consumo moderado, normal, ou se há algo mais. Até que se tenha um diagnóstico definitivo sobre a questão, é direito e mesmo dever dos jornais a busca pela informação verdadeira e a sua divulgação.

O jornalista do ‘NYT’, por mais que se possa criticá-lo, não cometeu nenhuma calúnia. Calúnia seria se o presidente tivesse sido acusado injustamente da prática de um crime. Mas não se trata de crime. Na pior hipótese, se confirmados eventuais excessos, trata-se de uma doença. Taís Gasparian, 45, advogada, é mestre pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP. Foi chefe-de-gabinete do ministro da Justiça (2002).’



Carlos Chaparro

‘Das intenções de Rohter aos ideários de Lula’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 14/05/04

‘O XIS DA QUESTÃO – Como já muito se escreveu e discutiu sobre a contenda ‘Rohter X Lula’, o assunto será outro, o das seduções da linguagem jornalística, que levam milhões de pessoas à compra diária dos mesmos jornais e a se manterem fiéis aos seus telejornais. Entretanto, vale a pena perguntar: 1) Onde Larry Rohter quis chegar, com as sinuosidades intencionais da sua reportagem? 2) Em que ideário Lula se inspirou quando decidiu expulsar Rohter e ao dizer que o caso deveria ‘servir de exemplo’ aos outros correspondentes estrangeiros?

1. Destrambelhos

O assunto da semana, claro, é o festival de disparates em que se transformou a contenda entre a molecagem ‘jornalística’ de Larry Rohter e o destempero autoritário do presidente da República. Rohter publicou no New York Times uma reportagem irresponsável, com precariedades técnicas e sinuosidades de intenção que a tornam injuriosa. Agrediu a imagem pública do chefe do Estado brasileiro, e de forma leviana, na medida em que sugeriu, sem provas e sem fontes confiáveis, que o Brasil tem um presidente beberrão.

As fragilidades técnicas da reportagem e as duvidosas intenções do autor condenavam a matéria a vida curta e a insignificante repercussão internacional. Mas a destrambelhada reação de Lula (com um ato de governo e declarações que constituem ameaça à liberdade de expressão e ao direito à informação) criou, para o presidente e para o país, um problema bem maior do que a publicação da reportagem.

Como, porém, sobre tais disparates, no mundo e aqui no Comunique-se, já muito se escreveu e discutiu, peço licença para sair do assunto. Assim, até para dar uma certa continuidade ao texto da semana passada, proponho uma conversa sobre as seduções da linguagem jornalística. Com liberdades, claro, para cada um fazer conexões possíveis ou apropriadas com os disparates da semana.

2. Linguagem de sucesso

Poucas linguagens superam a do jornalismo, na aptidão para o sucesso. O sucesso, por exemplo, de diariamente lançar ao mundo jornais, telejornais e radiojornais fielmente consumidos por milhões de pessoas, que neles acreditam. E se considerarmos que o desafio vital colocado à linguagem jornalística não é simplesmente o de alcançar sucesso, mas o de que o sucesso terá de ser imediato (o jornal de hoje logo se tornará papel reciclável…), é provável que nenhuma outra linguagem supere a do jornalismo naquilo a que chamei de aptidão para o sucesso.

O que levará milhões de pessoas à compra diária dos mesmos jornais e a retornarem aos mesmos telejornais? Que estranhas seduções são essas que dão ao relato jornalístico o poder de interferir de imediato na ordem das coisas e na realidade de pessoas e instituições?

Sem dúvida, muitas são as seduções da linguagem jornalística, a começar pela estratégia narrativa própria do jornalismo, a de assumir, como determinante, o interesse e as expectativas do público. Mas a sedução fundamental, aquela que dá identidade e tronco à própria natureza da linguagem jornalística, é a sua capacidade de asseverar veracidade ao que difunde. Aí está o fundamento do seu sucesso de linguagem.

Das convicções que regem a dinâmica do jornalismo, elaboradas pelos mecanismos culturais ao longo dos últimos 150 anos, uma se sobrepõe a todas – esta: só há notícia se a informação for veraz. E porque assim está estabelecido, e para que assim seja, a linguagem jornalística desenvolveu técnicas e comportamentos tributários da veracidade. Por exemplo, as técnicas e/ou comportamentos de apuração rigorosa, aferição honesta, valoração ética e depuração criteriosa. Em favor da capacidade de se fazer acreditar, a linguagem jornalística dá nome às coisas e pessoas, identifica fontes, localiza os fatos no espaço e no tempo, e os relata com técnicas próprias de clareza e precisão.

E porque assim está estabelecido, e assim deverá ser, as instituições e as pessoas movem-se, em seu dia-a-dia, apoiadas no pressuposto da credibilidade da informação jornalística. Ninguém compra jornal em que não acredite ou assista a telejornal de confiabilidade duvidosa.

No plano do conceito, não há, pois, notícia mentirosa; quando o jornalista mente ou viabiliza a mentira, o que existe é a fraude da notícia.

A sociedade, como as pessoas, repudia a fraude, qualquer que seja. E na linguagem jornalística, a fraude da notícia é o caminho mais curto para o fracasso.

3. Trilogia sedutora

A sedução da veracidade integra uma trilogia solidária, completada por mais duas seduções: a estética do conflito, que dá ordem e arte à expressão jornalística; e a perspectiva ética, obrigatória, como fonte de razões e critérios para escolhas e decisões editoriais.

O conflito é a alma da notícia e explode em títulos e imagens. Agora mesmo, desvio os olhos do computador e releio a manchete do Estadão desta quinta-feira (13 de maio, dia em que escrevo): ‘EUA condenam expulsão de jornalista; NYT vai recorrer’. A Folha, por sua vez, grita um conflito bem mais complexo: ‘Barril de petróleo atinge valor recorde’.

A lógica do conflito vincula o jornalismo à vida e à construção do presente. Porque só o conflito transforma. E é a possibilidade de transformação que dá sentido tanto às ações humanas noticiáveis, quanto ao relato que o jornalismo delas faz.

Transformar é, pois, o verbo mágico em qualquer teoria da ação. Mas, transformar por quê e para quê?

A resposta à pergunta pode variar de jornal para jornal, de jornalista para jornalista, de leitor para leitor. Mas, qualquer que seja o foco ou o binóculo, o que se enxerga (e se assim não é, assim deveria ser), como razão motivadora do agir, é um ideário, impondo valores às escolhas a serem feitas – no mundo das pessoas como no mundo do jornalismo.

A isso chamo de perspectiva ética. A sua ausência tira sentido ao conflito e ao próprio jornalismo.

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Para amenizar a chatice do texto, talvez valha a pena propor um pequeno exercício de aplicação, em torno de duas questões: 1) Onde Larry Rohter quis chegar, com as sinuosidades intencionais da sua reportagem? 2) Em que ideário Lula se inspirou quando decidiu expulsar Rohter e ao dizer que o caso deveria ‘servir de exemplo’ aos outros correspondentes estrangeiros?’