Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Feira, fórum, ágora, evento

‘Feira ideológica’ foi como o presidente Lula da Silva classificou no fim do ano passado o Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Na última quinta-feira, na capital gaúcha, o mesmo Lula fez aquilo que mais gosta – agarrou o microfone e mergulhou no clima de feira, forró e meeting político.

Nos dois anos de mandato foi a sua performance mais ditirâmbica. Compreende-se a estratégia armada por seu staff: abafar com aplausos as prometidas vaias dos setores radicais. Mas um presidente da República, mesmo com um passado de líder sindical e incontrolável atração para palanques, não pode permitir-se tantas lorotas de pescador. Sobretudo no tocante à política externa.

Na África, sobretudo Angola, sabe-se que foi o Ernesto Geisel o efetivo iniciador da grande virada da nossa diplomacia no continente; na Argentina, José Sarney é reconhecido como um dos pais do Mercosul; em Cuba, na ONU, em Bruxelas, Santiago e Doha sabe-se que FHC colocou o país no pódio da credibilidade. O governo Lula, com argúcia, está sabendo dar continuidade ao processo, mas o surto verbal inspirado por Luiz XIV choca-se com a imagem de novo tipo de estadista sereno e inovador que o governo pretende oferecer ao mundo. Mais moderado e ainda assim transbordando de auto-estima, o presidente repetiu ontem [sexta, 28/1] na Suíça um relatório de feitos sociais no mínimo prematuro. A repetição indica que o problema não é dele mas do ambiente.

O Fórum Social Mundial de Porto Alegre é uma resposta ao Fórum Econômico Mundial de Davos, a estância alpina onde Thomas Mann localizou a sua Montanha Mágica, campo de batalha entre a vontade de viver e o mortífero bacilo de Koch, entre paixão e submissão, entre otimistas e céticos.

Sem lideranças

Os dois fóruns imaginam-se antagônicos mas são iguais, até mesmo em matéria conceitual – a economia, queiram ou não banqueiros e empresários, é ciência social. Impossível dar atenção às macroquestões das finanças internacionais sem atentar para a miséria avassaladora e desdobrável que nem mesmo o sofisticado aparato estatístico moderno consegue aquilatar.

Diferenciam-se no formato: o fórum, foro, da tradição romana e a ágora grega eram franqueados, públicos, combinação de assembléia e mercado, ambos à serviço da idéia de troca e da troca de idéias. O encontro de Davos é um clube exclusivo onde a inacessibilidade, a neve e, sobretudo, os critérios de seleção das celebridades impõe uma natural alienação e inevitáveis disparates.

O de Porto Alegre, efetivamente álacre, festivo, aberto, participativo e, sobretudo, de proporções colossais não consegue esconder uma pauta dirigida, focada. A diversidade manifesta-se na rica paisagem humana e no sutil magnetismo que aproxima certas posições da esquerda moderna de certas atitudes da direita antiga.

Importante consignar: ambos são eventos e, como tal, ações retóricas, falações, frutos de uma civilização cada vez mais espasmódica, efetivamente eventual (mesmo quando periódica) que, aos poucos, substitui os processos institucionais capazes de promover mudanças nas estruturas.

Cada um com o seu marketing, os dois fóruns são gigantescas promoções que comprovam o distanciamento das academias (cada vez mais imersas no corporativismo), a fragilidade dos partidos (apenas engajados na luta pelo poder) e a falência dos parlamentos cada vez mais distantes da sua função legítima como instâncias do debate.

Da aristocrática feira que se realiza no maciço central europeu para os maiores de 50 anos e da magnífica quermesse no pampa sul-americano para os menores de 30 sobra uma gritante constatação sobre a precariedade do sistema de mediação e comunicação.

Incapaz de levar a agenda do nosso tempo tanto para as elites como para as grandes massas de jovens, a mídia mundial só consegue movimentar-se através destes acontecimentos programados, estímulos artificiais cuja capacidade para produzir resíduos permanentes ainda não foi comprovada.

Prematuro buscar resultados em road shows cujos percursos não se completaram. Mas em Davos, onde reúnem-se os mais importantes chefes de Estado, um grupo de trabalho constatou algo alarmante: diante dos 10 grandes riscos mundiais não existe, no momento, nenhum líder capaz de enfrentá-los.