Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O modelo francês e o brasileiro

A televisão pública francesa passa por uma profunda reforma estrutural e política. A nossa também, mas as semelhanças param por aí. Aos poucos, o modelo francês dá adeus à publicidade paga para viver basicamente dos repasses do governo. Desde o fim do ano passado, o jornal 20 Heures, por exemplo, já não pode veicular publicidade.


Na França, cada residência paga uma espécie de IPVA sobre aparelhos de televisão, cuja receita é destinada ao financiamento do sistema público de televisão. No Brasil, o sistema foi montado sobre a publicidade comercial, mas a televisão pública nacional ficou impedida de beber na mesma fonte.


Mesmo contando com este ‘IPTV – imposto sobre propriedade de aparelhos de televisão’, o sistema francês, que conta com os canais France 2, France 3, France 4, France 5 e RFO, se valia de uma verba publicitária bem gordinha.


A legislação publicitária francesa, pretendendo garantir a sobrevivência de todos os tipos de meios de comunicação, impede a veiculação de anúncios do varejo. Para saber quanto custa o tomate, ou se a carne está na promoção, o cidadão francês tem que comprar o jornal local. Na televisão, até agora, reinavam os comerciais de perfume, material de beleza, automóveis, seguros, bancos, e telefônicas, dentre outros.


Era junto a estes grandes grupos econômicos que o sistema público francês financiava grande parte de seus projetos. Em 2008, de um orçamento de 2,75 bilhões de euros, um pouco menor do que o do ano anterior (de 2,92 bilhões), 1,9 bilhão de euros foram provenientes da publicidade.


Indicação presidencial


Do orçamento total, o France 2, que é o canal de caráter nacional, abocanhou 1 bilhão de euros. Outro bilhão ficou com France 3, responsável pela regionalização da produção e difusão de conteúdos. Os primos pobres são o canal a cabo France 4, o France 5 (um dos pilares da TV 5 Monde), e o canal RFO, que se destina aos territórios de além mar – é…, a França ainda tem muitas colônias por ai – e às nações francófonas.


A partir da segunda-feira (4/1), segundo informa o Le Monde, esta estrutura midiática transformar-se-á em uma única empresa – uma holding que trabalhará por meio de contrato de gestão assinado com o governo francês. É um contrato com planos de metas, definição prévia de produção de conteúdos etc. Mas estima-se que o cobertor ficará bem curto – fala-se em déficit orçamentário da ordem de 45 a 100 milhões de euros – e que só em 2012 o equilíbrio orçamentário seria alcançado. Por isso, a produção audiovisual da emissora francesa já busca financiamento externo para manter a realização dos telefilmes. Avessos a telenovelas do estilo brasileiro e das séries do tipo norte-americano, o tele-entretenimento francês é formado basicamente por programas de entrevista, de auditório – musicais ou não – e os telefilmes.


Além dos canais citados, a nova holding vai coordenar 40 sucursais do grupo. Grandes mudanças, segundo o Monde, dar-se-ão na France 3. Hoje responsabilizada pela produção referente a 24 regiões, ela será redimensionada em quatro pólos. A preservação do regionalismo acontecerá por meio da internet. France 3 será responsável por criar e manter 24 canais de web-televisões, um para cada região política francesa. A divisão política da República francesa não acontece por estados, como no Brasil, ou províncias, como no Chile. Lá, o Estado nacional se compõe de municípios, departamentos e regiões. As regiões são governadas por préfets indicados bionicamente pelo presidente da República. Eleição só para o que nós chamamos de prefeitos – os maires – vereadores, legislativo nacional e presidente.


Jornalismo independente


A nova empresa herda 11 mil empregados, mas já colocou em funcionamento um PDV, com o qual espera a demissão voluntária de 900 assalariados. Além de lutar pela autonomia editorial, cada vez mais afetada pelas investidas do presidente Nicolas Sarkozy, o movimento sindical já elegeu dentre as prioridades a manutenção de duas redações independentes, uma para France 2 e outra para France 3.


Tradicionalmente, a France 2 – que é parceria da privatizada France 1 no canal de notícias France 24 (considerada a CNN Francesa) – apresenta um jornal de caráter nacional e internacional, nos moldes dos canais comerciais brasileiros. Já a coirmã France 3 privilegia o noticiário local, os acontecimentos que vêm do interior, o cidadão, a pequena cidade. A unificação das redações dessas duas emissoras reduziria a agenda midiática, a pluralidade informativa e poderia motivar, inclusive, o questionamento da razão de existência de dois canais paralelos – além, é claro, de tirar os holofotes do foco comunitário.


Análise comparativa


Quando analisamos os números do sistema público francês, percebemos a fragilidade do brasileiro. Todo este sistema francês acima, que não contempla a agência de notícias France Presse – também estatal –, o sistema radiofônico e as parcerias midiáticas, como as que permitiram o nascimento dos canais ARTE (em parceria com a Alemanha), TV 5 Monde (em parceria com a Bélgica, Canadá-Quebec, Suíça e Luxemburgo), e da France 24 (sociedade com a France 1), é dez vezes maior do que a Empresa Brasileira de Comunicação.


A Empresa Brasil de Comunicação (EBC), reunindo os quatro canais próprios de televisão (Rio de Janeiro, Brasília, Maranhão e São Paulo), as oito emissoras de rádio (Nacional AM e FM de Brasília; MEC de Brasília; MEC AM e FM do Rio de Janeiro; Nacional do Rio de Janeiro; Nacional da Amazônia; Mesoregional da Amazônia), a Agência Brasil e os canais de televisão NBR (notícias do Poder Executivo) e o Canal Integración, criado pelos Três Poderes, além dos serviços da Voz do Brasil, Café com o Presidente, o clipping ‘Mídia Impressa’ e a gerência da publicidade legal do executivo, conta com cerca de 1.200 servidores.


O orçamento desejado para 2010 é de 400 milhões de reais, sendo 50 milhões de reais captados externamente ao governo. A EBC tem que ser criativa na busca deste apoio externo, já que a lei que a criou veda a publicidade de produtos e serviços. Além da grana curta, a emissora tem que brigar para tornar real o seu orçamento. Ela não tem recebido os recursos da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, alvo de contestação judicial por parte das empresas privadas de telecomunicações, e, em 2008, 100 milhões de reais dos seus recursos foram contingenciados pelas autoridades do Ministério da Fazenda. Sem contar com a suspensão do concurso público que iria oxigenar o plantel.


Com um orçamento 18 vezes menor do que a congênere francesa e com um quadro de funcionários 10 vezes menor, a TV Brasil é obrigada a responder críticas que a comparam com as grandes emissoras públicas européias. Com uma realidade desta, é impossível, por exemplo, pensar em um sistema regionalizado, onde cada região do Brasil tenha, a exemplo da França, uma produção essencialmente regional.


A EBC se vê também diante de um desafio enorme, a conquista do público nacional – acostumado aos padrões globais de produção – a universalização do seu sinal em sistema aberto num território 16 vezes maior do o francês, a migração para o sistema digital e a criação do Canal Brasil Internacional, que deverá levar o sotaque brasileiro para terras africanas, latino-americanas e até na Europa e América do Norte.


A sociedade brasileira acabou de realizar uma conferência nacional para indicar os rumos na comunicação do país. O Congresso Nacional também analisa o já famoso PL-29, que definirá novas regras por meio de uma nova lei geral dos meios de comunicação. Se desejamos um sistema midiático público forte, capaz de chegar aos rincões brasileiros e ultrapassar os oceanos, a sociedade, o Congresso e o governo têm que refletir bem em suas decisões e transformar em atos concretos –principalmente financeiros – o discurso até aqui verbalizado.

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Jornalista e doutor em Ciências da Informação e Comunicação pela Universidade de Rennes 1 (França)