Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

“Ele poderia ter feito mais”

Pouco antes de ser sequestrada e assassinada pela última ditadura militar argentina (1976-1983), em dezembro de 1977, Ester Balestrino de Careaga, uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio, pediu um favor ao então padre Jorge Bergoglio, seu amigo desde a época em que trabalharam juntos num laboratório químico. Ester telefonou para Bergoglio e pediu-lhe que fosse até sua casa para dar a extrema-unção a um familiar. Quando o padre chegou, Ester revelou o verdadeiro motivo da ligação: queria que Bergoglio levasse embora livros sobre marxismo de sua biblioteca particular. O padre carregou-os e, pouco tempo depois, Ester foi detida e terminou sendo vítima dos sinistros voos da morte (nos quais presos políticos eram atirados vivos ao mar).

Para sua filha, Mabel Careaga, este gesto de Bergoglio mostra que o novo Papa “foi solidário com uma grande amiga, que ele sempre dizia ter sido sua guia para começar a entender a política”. No entanto, embora não esteja de acordo com os que demonizam Bergoglio, a filha de Ester, que teve uma irmã sequestrada e cujo marido está desaparecido, assegura que “o compromisso do agora Papa não esteve à altura das circunstâncias. Para ela, Bergoglio “poderia ter feito muito mais, e que ele foi parte de uma Igreja que, como instituição, foi cúmplice dos militares”.

– A Igreja deveria ter defendido seu povo, denunciando as atrocidades. Por esta omissão e pela cumplicidade com os militares, o novo Papa deveria pedir perdão, em nome da Igreja – disse Mabel ao Globo.

Novas acusações diárias

Para ela, “se a Igreja tivesse defendido os que estávamos sendo perseguidos, muitas vidas teriam sido salvas”.

– Bergoglio protegeu pessoas, é verdade, mas também desprotegeu outras como os padres Orlando Yorio e Franz Jalics (sequestrados em 1976) – enfatizou a filha de Ester.

Ela questiona o distanciamento do ex-cardeal Bergoglio em relação às principais associações de defesa dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, reconhece atitudes recentes do agora Papa Francisco. Em 2005, quando os restos de sua mãe foram encontrados, Bergoglio deu sinal verde ao pedido da família para que fossem enterrados na Igreja Santa Cruz, onde Ester foi sequestrada.

– Depois que minha irmã foi libertada pelos militares, minha mãe continuou lutando. Se ela fez o que fez, Bergoglio poderia ter se comprometido muito mais – afirmou Mabel, que presenciou o depoimento judicial do então cardeal. Ele foi convocado como testemunha durante o julgamento por crimes cometidos na Escola de Mecânica da Marinha (Esma), onde estiveram Yorio e Jalics.

– Bergoglio estava sério e insistiu em dizer que ajudou muita gente – contou Mabel.

Em meio ao debate sobre o passado do Papa, o embaixador argentino no Vaticano, Juan Pablo Cafiero, desmentiu que o governo Kirchner tenha elaborado e distribuído entre alguns cardeais um dossiê sobre a suposta participação de Bergoglio em crimes da ditadura, às vésperas do conclave que finalmente o elegeu.

Todos os dias, surgem novas histórias sobre o papel de Bergoglio durante a ditadura. Na segunda-feira, o Canal 13 da TV argentina entrevistou três padres que disseram ter sido protegidos por Bergoglio. O jornal Clarín revelou declarações do ex-cardeal, confirmando que ele intercedera perante o almirante Emilio Massera, homem forte da ditadura, para tentar obter informações sobre o paradeiro de Yorio e Jalics.

Segundo a imprensa argentina, uma das primeiras medidas de Francisco será a canonização de padres assassinados pelos militares, como Carlos de Dios Murias, sequestrado em 18 de julho de 1976.

– São gestos positivos, como alguns que Bergoglio teve durante o regime militar. Mas o que ele realmente deveria fazer é pedir perdão, em nome da Igreja – insistiu a filha de Ester.

Caso contrário, disse ela, “estará repetindo o mesmo erro do passado”.

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Janaína Figueiredo é correspondente do Globo em Buenos Aires