Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma maneira de a elite legitimar sua posição

Florestan Fernandes, um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos, dedicou boa parte de sua profícua obra sociológica para apontar que a “revolução burguesa” no Brasil foi marcada, sobretudo, pela permanência de determinadas práticas inerentes a sociedades aristocráticas. Segundo o cientista social, o advento de uma sociedade de classes em nosso país não conduziu, necessariamente, à completa ruptura com hábitos e comportamentos típicos de sociedades pré-burguesas. Desse modo, possuir empregados domésticos (como se fossem similares modernos de escravos ou servos) consiste em uma clássica maneira de a elite tupiniquim legitimar sua posição social. Assim, milhões de empregados domésticos brasileiros exercem suas funções sem quaisquer garantias trabalhistas. Sob o pretexto de que as relações entre patrões e empregados domésticos são mais passionais do que econômicas, práticas como extensas jornadas de trabalho, instabilidade no emprego e não pagamento de horas-extras são corroboradas.

Todavia, essa realidade pode ser mudada com a promulgação pelo Senado federal da Proposta de Emenda Constitucional nº 66/2012, mais conhecida como “PEC das domésticas”, que garante novos direitos trabalhistas para os empregados domésticos. A proposta assegurará a estes trabalhadores jornada semanal máxima de quarenta e quatro horas, pagamento de horas-extras e o respeito a acordos e convenções coletivas. No entanto, medidas importantes como adicional noturno, seguro-desemprego, auxílio-creche, emprego protegido contra despedida imotivada, seguro contra acidentes de trabalho e recolhimento obrigatório do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), entre outras, ainda precisam ser regulamentadas.

Declaração pelega

Por outro lado, a “PEC das domésticas” não foi bem aceita pelos patrões que, outrora acostumados a manter seus “criados” em situações análogas à servidão ou à escravidão, agora passarão a ter algumas despesas com encargos trabalhistas. Não obstante, a grande mídia brasileira, notadamente a Rede Bandeirantes, apresentou várias reportagens sobre os prováveis malefícios da nova PEC para os empregadores. Em contrapartida, pouco se falou sobre essa (relativa) conquista dos trabalhadores domésticos. Como sempre, somente um lado da questão (o mais forte) é ouvido.

Na terça-feira (2/4), dia da promulgação da “PEC das domésticas”, o Jornal da Band anunciava que a nova lei já provocara demissões e poderá aumentar ainda mais a informalidade no setor devido ao aumento dos custos aos empregadores. De acordo com o presidente da ONG “Doméstica Legal” Mário Avelino, entrevistado pelo noticiário, mais de oitocentas mil mulheres, muitas delas a única provedora do lar, podem perder o emprego por causa da “PEC das domésticas”. Segundo o repórter Fábio Pannunzio, a nova emenda constitucional também já começa a mudar a rotina de muitos brasileiros. Nesse sentido, a fala de uma patroa sobre demitir um dos empregados de sua residência foi emblemática: “Pela manhã eu vou me privar de fazer algumas coisas para ficar com as crianças. À noite, nós vamos sair menos porque os empregados vão ser dispensados, babá, etc.” “A gente vai ter que se readequar, a gente vai ter que ser inteligente para saber quais horas usar o funcionário e em quais horas dispensar”, afirmou outro empregador.

Assim como na Grécia Antiga o trabalho escravo liberava os cidadãos para atividades intelectuais, atualmente a labuta das empregadas domésticas permite que a high societybrasileira possa “terceirizar” a criação de seus filhos e ter uma vida social ativa. Ironicamente, a única empregada doméstica ouvida pela reportagem do Jornal da Band concedeu uma declaração tipicamente pelega: “No meu ponto de vista, eu não iria cobrar adicional nem hora-extra, mas o Fundo de Garantia para ela [patroa] também iria ficar muito alto.”

Resquícios escravocratas

Não por acaso, o tema do último Canal Livre, atração dominical da Bandeirantes, foi a “PEC das Domésticas”. Conforme o esperado, o programa apresentado por Boris Casoy, e com a participação de Fernando Mitre e Fábio Pannunzio, foi um excelente ensejo para a emissora da família Saad demonstrar mais uma vez seu repúdio à política que pretende estender alguns direitos trabalhistas para os empregados domésticos.

Contudo, não foi somente a imprensa hegemônica que manifestou sua desaprovação à PEC nº 66/2012. Em uma rede social, uma advogada asseverou defender os direitos dos trabalhadores domésticos, “mas o que se tem que ponderar é que quem paga o empregado doméstico é o cidadão comum, não é uma empresa, que contrata o funcionário para fazer gerar dinheiro. O empregador [das domésticas] fica muito debilitado frente aos pesados encargos, já que o lar não é como uma empresa que gera lucro e movimenta recursos. O empregado doméstico não é contratado para fazer girar dinheiro”.

Já em artigo intitulado O extermínio das empregadas domésticas, Joel Pinheiro da Fonseca, mestrando em Filosofia e editor da revista Dicta&Contradicta, asseverou que “impor a hora-extra é um golpe nefasto porque quebra a relação de confiança na qual o trabalho de empregada doméstica se dá: ele deixa de ser um trabalho no qual favores podem ser dados de parte a parte e se transforma numa relação calculista”. Para o filósofo, trabalhar algumas horas além do combinado é apenas um “favor” que as empregadas domésticas fazem para os seus patrões e, portanto, não pode ser remunerado. Infelizmente, este é o pensamento das classes dominantes no Brasil.

Em última instância, garantir direitos trabalhistas para as empregadas domésticas, profissionais que sofrem com os resquícios da sociedade escravocrata que insistem em perdurar em nosso país, pode ser um importante passo para o Brasil, finalmente, ingressar na modernidade.

Leia também

Direitos da criadagem, essa afronta – Sylvia Debossan Moretzsohn

Bondades da casa-grande – Luciano Martins Costa

******

Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG