Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Nova globalização em nova Sociedade do Espetáculo?

As recentes manifestações populares de junho em dezenas de cidades brasileiras provocaram sentimentos de perplexidade, entusiasmo e indignação em uma sociedade pouco acostumada com demonstrações explícitas de descontentamento das massas no espaço público. Nos últimos dois anos, os brasileiros acompanharam os diversos atos de protesto na África e no Oriente Médio, surgidos inicialmente na Tunísia e que rapidamente se espalharam pelo Egito, pela Síria e outros países na região. Em todos os países do movimento batizado como Primavera Árabe havia uma causa comum que era a destituição de governos ditatoriais que se perpetuavam há décadas no poder sob o manto da repressão e das precárias condições de vida. Foram as primeiras manifestações públicas que trouxeram para as ruas as redes sociais como ferramentas de organização e aglutinação de massas. A difusão de modernas tecnologias virtuais em nações onde prevalecem arcaicos sistemas de produção é uma consequência da globalização que se acentuou pelo planeta a partir da década de 90. Se por um lado a globalização foi capaz de disseminar o conhecimento e propiciar o acúmulo de riqueza para reduzidas camadas socioeconômicas nas nações mais avançadas, ela se mostrou incompetente na tarefa de promover o desenvolvimento social em setores estruturais mais críticos, como saúde, transporte e habitação, carências que se tornam mais escancaradas nos grandes bolsões urbanos dos países emergentes e em nações fora do eixo Europa/América do Norte.

Na obra Danos Colaterais – Desigualdades Sociais Numa Era Global, o sociólogo polonês Zygmunt Baumann expõe de forma clara a debilidade do processo de globalização na missão de sanar os problemas críticos da sociedade e aponta uma saída para buscar uma menor desigualdade.

“A pobreza, a desigualdade e, de um modo mais geral, os desastrosos efeitos e ‘danos colaterais’ da laissez-faire global não podem ser enfrentados de maneira efetiva nem isolado do resto do planeta, nu canto do globo (a não ser à custa do que norte-coreanos ou birmaneses têm sido forçados a pagar). Não há uma forma decente pela qual um só ou vários Estados territoriais possam ‘optar por se excluir’ da interdependência global da humanidade. O ‘Estado social’ não é mais viável; só um ‘planeta social’ pode assumir as funções que os Estados sociais, com resultados ambíguos, tentaram desempenhar. Suspeito que os prováveis veículos para nos conduzir a esse ‘planeta social’ não sejam Estados territorialmente soberanos, e sim, organizações e associações não governamentais cosmopolitas, aquelas que atingem diretamente as pessoas necessitadas por sobre as cabeças dos governos locais ‘soberanos’ e sem interferência deles” (2011: 37-38).

A face perversa da globalização

Assim, não se pode creditar ao acaso que as manifestações de massa ocorridas em junho tenham tido como origem o aumento de R$ 0,20 nas passagens de ônibus urbano em São Paulo. Na maior metrópole da América do Sul, o transporte tem um impacto forte na vida dos moradores, que passam preciosas horas do seu dia em ônibus e vagões lotados no trajeto entre suas casas e o local de trabalho. O que era inicialmente uma bandeira de luta do microcóspico grupo Movimento Passe Livre (MPL) em poucos dias agigantou-se e se tornou um enorme movimento potencializado pelas redes sociais e pela inédita cobertura praticamente online das mídias tradicionais, que alteraram drasticamente suas programações normais para oferecer ampla cobertura dos eventos. O que era uma mera reivindicação pontual tornou-se o maior ato coletivo da população brasileira no século 21. Governantes dos dois principais partidos, PT e PSDB, foram diretamente cobrados e faixas e cartazes tomaram conta das vias públicas, praças e parques questionando a legitimidade da classe política. Sem propostas específicas, o grito de ordem era que o atual sistema não mais representava os anseios e as necessidades da população. Cidadãos e cidadãs que usufruíam dos benefícios materiais proporcionados pela globalização demonstravam que os caminhos desta mesma globalização precisavam ser alterados. Mas, será que é possível haver uma outra globalização?

Falecido em 2001, o geógrafo baiano Milton Santos morou durante décadas na França e lá concentrou a maior base de seus estudos. Estava em Paris em maio de 1968, quando os estudantes tomaram as ruas da capital francesa para protestar contra a política educacional imposta pelo presidente Charles De Gaulle. De formação marxista, Milton Santos presenciou a expansão do processo de globalização, tanto fora do Brasil, como após sua volta (nos anos 80), e nunca se deixou seduzir pelas aparentes benesses. Para Milton Santos, a globalização pode ser apresentada em três mundos que convivem em um só: como fábula, como perversidade e como uma possibilidade, que em outras palavras, é acreditar em uma outra globalização, em moldes distintos daquela que temos hoje.

Em Por Uma Outra Globalização, Milton Santos descreve a globalização em seus vários aspectos e a classifica como “o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista”. Busca no pensamento de Kant o conceito para o desenvolvimento das técnicas, no qual podemos dizer “que a história é um progresso sem fim e que a cada evolução técnica uma nova etapa histórica se torna possível”. Milton Santos estabelece uma linha de pensamento em que alia o progresso das técnicas com o crescimento da economia de mercado e o avanço das empresas transnacionais que são o motor do capitalismo. Elaborada no final do século passado, a obra não perdeu a sua atualidade.

“Nunca houve antes essa possibilidade oferecida pela técnica à nossa geração de ter em mãos o conhecimento instantâneo do acontecer do outro. Essa é a grande novidade, o que estamos chamando de unicidade do tempo ou convergência dos momentos. A aceleração da história, que o fim do século 20 testemunha, vem em grande parte disso. Mas a informação instantânea e globalizada por enquanto não é generalizada e veraz por que atualmente é intermediada pelas grandes empresas de informação” (2000: 28).

As mudanças notempo empírico

Para que seja possível haver a possibilidade de uma outra globalização é fundamental compreender as nuances da chamada globalização perversa, que tem suas raízes em uma “dupla tirania, a do dinheiro e a da informação”. A “violência da informação” vem dentro de uma visão marxista, em que o poder dos meios de comunicação está nas mãos de poucas empresas, que utilizam a difusão das informações conforme os seus interesses, manipulando as noticias de acordo com a ideologia capitalista predominante, rompendo fronteiras éticas e estabelecendo uma confluência de interesses entre o jornalismo e a publicidade. Já a “violência do dinheiro” é face mais visível do capitalismo, com a internacionalização do capital perpetrado pelas grandes corporações privadas e pelo sistema financeiro. No caso do Brasil criou-se uma situação peculiar.

“Consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo, convidando, também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão. É certo que no Brasil tal oposição é menos sentida porque em nosso país jamais houve a figura do cidadão. As classes chamadas superiores, incluindo as classes médias, jamais quiseram ser cidadãs; os pobres jamais puderam ser cidadãos. As classes médias foram condicionadas a apenas querer privilégios e não direitos. E isso é um dado essencial do entendimento do Brasil: de como os partidos se organizam e funcionam; de como a política se dá, de como a sociedade se move. E aí também as camadas intelectuais têm responsabilidade, porque trasladaram , se maior imaginação e originalidade, à condição da classe média europeia, lutando pela ampliação dos direitos políticos, econômicos e sociais, para o caso brasileiro e atribuindo, assim, por equívoco, à classe média brasileira um papel de modernização e de progresso que, pela sua própria constituição, ela não poderia ter” (idem: 50-51).

Nos últimos 10 anos contam-se nos dedos as manifestações públicas expressivas no Brasil. Os poucos atos reduziram-se a manifestações pontuais de sindicatos, que em momento algum conseguiram mobilizar a população. Com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao Poder, tanto os sindicatos dominados pela outrora ativa CUT (Central Única dos Trabalhadores) como os das demais centrais sindicais fizeram um “pacto” com o governo federal e mudaram suas estratégias, trocando os protestos em porta de fábrica por sigilosas reuniões em gabinetes. As entidades estudantis, que tanta relevância tiveram durante o período da ditadura militar, igualmente se retraíram e ficaram concentradas em feudos de pequenos partidos de esquerda da base aliada do governo. A economia começou a crescer, o poder de consumo das massas se elevou, a taxa de emprego formal manteve-se em níveis baixos e, ao iniciar o ano de 2013, não havia sinais latentes de descontentamento entre a população. Mesmo que perversa, a globalização cumpria silenciosamente o seu papel no Brasil. A possibilidade de “uma outra globalização” corria o risco de ser mais uma teoria desenvolvida que ficaria restrita apenas ao campo das ideias.

Para Milton Santos, o Brasil é um terreno propício para o surgimento de “uma outra globalização”. Ressaltando que ao final do século 20 ainda não havia sido cunhada a expressão Brics (criada em 2001 pelo economista Jim O’Neil para designar Brasil, Rússia, Índia, China como países emergentes do século 21), diz ele que a mudança viria por meio de uma tomada de consciência de “países como a China e a Índia, com presença internacional cada vez mais ativa, que dificilmente aceitarão, uma ou outra, assim como a Rússia, jogar o papel passivo de nação-mercado para os blocos economicamente hegemônicos”. O novo momento apregoado por Milton Santos passaria também por fatores culturais e étnicos, miscigenação de povos e raças, valores culturais, diversidade de credos religiosos, tudo enxergado por meio de uma nova ótica capaz de reaprender o mundo e propiciar uma vida mais digna para todos.

“Funda-se, de fato, um novo mundo. Para sermos ainda mais precisos, o que, afinal, se cria é o mundo como realidade histórica unitária, ainda que ele seja extremamente diversificado. Ele é datado com uma data substantivamente única, graças aos traços comuns de sua constituição técnica e à existência de um único motor para as ações hegemônicas, representado pelo lucro à escala global. Ousemos, desse modo, pensar que a história do homem sobre a Terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória. Aqui, não se trata de estabelecer datas, nem de fixar momentos da folhinha, marcos num calendário. O que conta mesmo é o tempo das possibilidades efetivamente criadas, o que, à sua época, cada geração encontra disponível, isso a que chamamos tempo empírico, cujas mudanças são marcadas pela irrupção de novos objetos, novas ações e relações de novas ideias” (idem: 172-173).

Uma outra globalização

No dia 20 de junho, as manifestações populares atingiram o seu ápice – 388 cidades, incluídas 22 capitais, com diversos confrontos, atos de vandalismo e dezenas de feridos. Os números divergem, mas é certo que mais de 1 milhão de pessoas saíram ás ruas naquele dia que marcou o maior ato político de massas desde o impeachment de Collor, em 1992. Houve quem comparasse os acontecimentos no Brasil com os ocorridos em Paris em maio de 1968. Mas não se pode fazer um paralelo a respeito. As condições históricas e sociais eram outras, o cenário mundial estava dividido pela Guerra Fria entre Estados Unidos e a União Soviética, os debates eram marcados por divergências ideológicas radicais e o termo globalização sequer era aplicado nas relações econômicas entre as nações.

Mas se há um ponto de convergência entre ambos podemos dizer que foi a influência da Internacional Situacionista, uma organização de intelectuais e estudantes, que atuava fora do sistema convencional, cujo principal expoente era o filósofo Guy Debord, autor de A Sociedade do Espetáculo, a exemplo do MPL, formado basicamente por jovens apartidários. E por aí param as semelhanças. Em um cenário de efervescência cultural, onde pontificavam nomes como Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, a Internacional Situacionista impactava o meio acadêmico parisiense com conceitos marxistas sobre as características perversas do capitalismo e seus efeitos nas relações sociais. Para Guy Debord, o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” (A Sociedade do Espetáculo: 10). Por sua vez, a produção e mercantilização destas imagens, levadas como ferramentas de poder pelas classes dominantes submete as pessoas a um processo de alienação, tornam-se forçadas a aceitar o que vêem como uma verdade absoluta.

“Não é somente pela sua hegemonia econômica que a sociedade portadora do espetáculo domina as regiões subdesenvolvidas. Domina-as enquanto sociedade do espetáculo. Lá onde a base material ainda está ausente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social de cada continente. Ela define o programa de uma classe dirigente e preside a sua constituição. Do mesmo modo qu apresenta os pseudobens a cobiçar, ela oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução. O próprio espetáculo do poder burocrático, que detêm alguns dos países industriais, faz precisamente parte do espetáculo total, como sua pseudonegação geral e seu suporte. Se o espetáculo, olhado nas suas diversas localizações, mostra à evidência especializações totalitárias da palavra e da administração sociais, estas acabam por fundir-se, ao nível do funcionamento global do sistema, numa divisão mundial de tarefas espetaculares” (idem: 42-43).

Mutação tecnológica e mutação filosófica

Mesmo em tempos de uma sociedade globalizada, os principais grupos de mídia (com exceção da Rede Record) são controlados há décadas por famílias que sempre mantiveram relações promíscuas com o Poder. Por ocasião do movimento Diretas Já, na década de 80, a Rede Globo só passou a cobrir os atos políticos quando já não era mais possível tratá-los como iniciativas isoladas.

Mas, se admitimos a possibilidade de “uma outra globalização”, por que não abrir a mesma perspectiva para “uma outra sociedade do espetáculo”? Será que o Brasil está condenado a permanecer sob o jugo da Rede Globo impondo a sua programação e sua ideologia? Pressionada pela população, inclusive com ameaças aos seus repórteres, a Rede Globo adotou uma postura inédita em sua história, principalmente no dia 20 de junho. Naquela data, a emissora cancelou a exibição de sua programação normal para cobrir as movimentações nas principais capitais. Ao mesmo tempo, imagens que não eram exibidas pela Rede Globo eram transmitidas por celulares diretamente para as redes sociais, provocando assim uma difusão de imagens e rompendo a fronteira pré-estabelecida pela mídia dominante.

Em 2008, os jovens egípcios promoveram uma verdadeira guerra digital com a criação de centenas de blogs, que desencadearam na criação do Movimento 6 de Abril, que foi um dos organizadores dos protestos de fevereiro de 2011 na Praça Tahrir, culminando na deposição do ditador Hosni Mubarak. Em reportagem publicada no dia 22 de fevereiro de 2011 na Folha de S.Paulo, Ahmer Maher, um dos líderes do Movimento 6 de Abril, disse que “para o resto do mundo poder parecer que a revolução aconteceu de repente, mas esse é um movimento que já dura anos”.

“Quando houve a revolução na Tunísia, sabia que nosso movimento subiria para outro patamar. Convocamos o movimento para 25 de janeiro, Dia da Polícia, para marcar a raiva pela brutalidade policial. Pensávamos que viriam uns poucos milhares, apareceram 100 mil, só em Cairo. A revolução estava madura, só faltava uma gota a mais de querosene para fazer tudo explodir. E essa gota foi a violência da polícia contra os manifestantes” (Folha de S.Paulo, 22/02/2011, p.A16).

Em junho, a pulverização dos atos em diversas capitais e pontos diferentes em uma mesma cidade e a ausência de líderes midiáticos confundia não apenas a opinião pública. Isolados das manifestações, setores ligados a sindicatos e partidos políticos de esquerda mostravam-se céticos e criticavam a falta de propostas objetivas do movimento. Por outro lado, as camadas mais conservadoras aplaudiam os manifestantes e direcionavam as críticas contra o governo federal. Dentro deste ambiente difuso, houve oportunidade para o surgimento de novos agentes de produção e difusão de imagens, como foi o caso do coletivo N.I.N.J.A (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), que transmitiu alguns eventos ao vivo em um site (www.postv.org) com um aparato modesto de câmeras, celulares e um gerador de energia carregado em um carrinho de supermercado. Pela primeira vez, as imagens do espetáculo tornavam-se múltiplas e passíveis de várias verdades compartilhadas por milhões de internautas. A TV não perdeu sua força, mas já não foi a detentora absoluta do império midiático e já não atendia com exclusividade a necessidade da sociedade. Ainda é prematuro dizer que as manifestações representaram uma ruptura no discurso tradicional, mas pode ter sido acesa uma luz rumo a uma nova globalização, em uma nova sociedade da informação. Como disse Milton Santos, “a mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição de construção de um mundo mais humano. Basta que se completem as duas grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana”.

Referências bibliográficas

Baumann, Zygmunt – Danos Colaterais – Desigualdades Sociais Numa Era Global. São Paulo: Zahar, 2011

Santos, Milton – Por Uma Outra Globalização. Rio de Janeiro. Editora Record. 2000

Debord, Guy – A Sociedade do Espetáculo. Lisboa. Edições Mobile.

Ninio, Marcelo – “Revolucionário Virtual”, in Folha de S.Paulo, 22/02/2011, p.A1

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Guilherme Meirelles é jornalista, pós-graduando em Jornalismo pela Cásper Líbero