Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Desvarios acadêmicos e noticiário contraditório

A falta de clareza a respeito do momento que passamos a viver desde as chamadas Jornadas de Junho, especialmente quanto às ações de depredação promovidas por grupos de mascarados, fez ressuscitar velhas concepções de esquerda sobre o papel dos marginalizados e a glamourização do “bandido”, amparadas por um entendimento enviesado da afirmação de criminólogos críticos sobre a “rebeldia ao sistema” que o criminoso sempre expressaria.

Aqui se costuma deixar de lado duas questões de fundo: a de que “crime” e “criminoso” são entes políticos, definidos de acordo com os interesses de quem detém o poder, e a de que a seletividade do sistema penal se encarrega de punir apenas aqueles que o “sistema” não assimila.

Sem essa fundamentação, acaba-se por naturalizar o crime. Isso facilita encarar a “rebeldia ao sistema” a partir da conduta do criminoso pobre: desde o ladrão de galinhas até o traficante. Nunca se pensa em gente como os auditores fiscais recentemente presos em São Paulo.

Só essa constatação já permitiria apontar os equívocos da simplificação. Além do mais, a ideia de “rebeldia ao sistema” costuma sugerir a perspectiva de que essa atitude traz consigo o germe revolucionário. Sem formação política, entretanto, essa semente não se desenvolve: corriqueiramente, o criminoso pobre quer apenas desfrutar das benesses do sistema, não mudá-lo.

O traficante, nosso aliado

A glamourização e a estetização da violência são recorrentes no elogio aos black blocs, e aos poucos a articulação entre esses grupos e os marginais típicos vai ficando explícita. Um dos cartazes virtuais que convocavam para o ato do dia 31/10, por exemplo, reproduzia a imagem de um helicóptero pegando fogo, referência ao ocorrido em 2009, quando traficantes do Morro dos Macacos alvejaram e derrubaram um helicóptero da polícia.

O ato em si não foi muito significativo – cerca de 2 mil pessoas marcharam pelo Centro do Rio, segundo os próprios participantes –, mas foi saudado pela diretora da Escola de Comunicação da UFRJ em artigo de grande repercussão na internet (ver aqui), que exalta a “guerrilha popular de combate aos poderes nas ruas”, na qual estamos “todos juntos”.

“E se os garotos do tráfico estão chegando junto das manifestações e se misturando nelas não se trata de expulsá-los ou denunciá-los, mas trazer para o lado de cá! Ou teremos fracassado não como manifestantes, mas como sociedade!”

O texto foi escrito no mesmo dia em que alguns desses garotos, um pouco mais crescidos – mas não vamos discriminar ninguém só por causa da idade, certo? –, tentaram sem sucesso resgatar dois de seus parceiros numa audiência no Fórum de Bangu, Zona Oeste do Rio. Abriram fogo, mataram um policial e uma criança que ia para seu treino de futebol de salão, feriram várias pessoas e fugiram.

Estamos mesmo todos juntos?

Delírios acadêmicos

Em seu mural no Facebook, Julius Pessanha, professor da rede municipal recém-saída da greve, considerou que o artigo demonstrava “como alguns colegas que vivem no mundo acadêmico se distanciaram da realidade”. Seu comentário expressava a própria experiência cotidiana:

“[A autora] Não percebe que a sedução do tráfico, tão mais forte em seu apelo do que a escola, é uma variável do conjunto de variáveis do péssimo rendimento escolar das ‘comunidades’? Por que será que tantos professores abandonam as escolas anualmente? É falta de idealismo? Ou porque não aguentam mais a luta inglória contra um discurso que se produz por 20h no imaginário do adolescente da favela contra 4h da escola? Ou vamos cair na esparrela das horas de qualidade? Sim, crianças e adolescentes precisam de quantidade de horas juntos com suas referências. E precisam de presença do Estado nas ‘comunidades’! Sem caminhos felizes, mas eficazes!”

A referência ao papel do Estado dizia respeito a outra passagem do texto, que associa o combate à militarização da polícia e aos abusos praticados na repressão a manifestantes, e a pobres de modo geral, ao fim do monopólio da violência pelo poder público. Em texto publicado há alguns anos, o jornalista Altamir Tojal sintetizou o que isso significa:

“Falar do monopólio da força pelo Estado parece coisa de conservador. Também pode parecer extemporâneo. Não é nem uma coisa nem outra. Quando o Estado não exerce o monopólio da força em seu território, abre-se espaço para que outros entes se imponham pela violência, cerceando liberdades fundamentais, como o direito de ir e vir e de se manifestar”.

O texto tratava da situação das favelas dominadas por traficantes, mas sua atualidade é permanente, porque toca num ponto estruturante de nossas sociedades.

Ajudando a confundir

Se no ambiente acadêmico, em especial no “campo da Comunicação”, ocorrem esses desvarios, no governo federal tampouco há muita clareza sobre o que fazer. Enquanto o secretário-geral da Presidência insiste na necessidade de se chamar para o debate os grupos que perpetram as depredações – embora eles próprios não pareçam muito interessados nesse diálogo –, o ministro da Justiça convoca os secretários de Segurança do Rio e de São Paulo para anunciar mais um plano de ação conjunta capaz de reprimir esses grupos, embora os respectivos secretários não consigam resolver as contradições internas de suas próprias polícias.

Mistura-se tudo num mesmo caldeirão: os protestos urbanos decorrentes de reivindicações por transporte, moradia ou ensino, a violência dos black blocs e a reação de jovens da periferia paulistana ao assassinato de um rapaz por um policial, cena que se repete com notável regularidade nessas regiões, ainda que se possa considerar a articulação entre revolta espontânea e ações comandadas por grupos criminosos que atuam no local. A mídia ajuda a confundir, simplificando: são todos “vândalos”.

Ao mesmo tempo, nesse cenário que facilita o apelo ao endurecimento da legislação penal – argumento tão recorrente quanto inócuo, mas sempre eficaz quando se trata de jogar para a plateia –, a mídia investe na denúncia da violência policial, às vezes de forma envergonhada – como se verifica aqui–, às vezes de maneira mais profunda, como faz O Globo na série de reportagens iniciada no domingo (3/11), escancarando a aberração das mortes em “autos de resistência”. Entretanto, toda a ênfase do jornal, ao longo da semana anterior, foi na condenação indiscriminada dos “vândalos”. A ponto de desvirtuar a cobertura de um protesto de jornalistas em São Paulo, explicitamente voltado para o repúdio à violência policial: a matéria, de página inteira, dedicou muito mais espaço às agressões promovidas por manifestantes.

Haja preparo e serenidade para se equilibrar entre o desvario acadêmico e as contradições do noticiário.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)