Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O rolezinho, a opção de executivos e o Poder Judiciário

Por favor, não leia o título como se aludisse a danos causados por eventual arruaça de adolescentes. Porque com ou sem a assuada juvenil – a mera repercussão do conflito, por si só, noticiado vastamente, já poderia ser considerado outro dano a ser controlado pelos executivos das empresas administradoras de shopping centers. Se, hoje, ao contrário de duas semanas atrás, fala-se mais do “rolezinho”, em qualquer veículo que oferece novidades do embate, com suas rusgas de apartheid, seria compreensível inferir que a primeira reação dos administradores de shopping centers – ao acionar o judiciário, que lhe tem sido favorável – só contribuiu para ascender o debate.

Diz-se de um curso de ação temerário, talvez, escolhido, desafortunadamente, por alguns executivos de uma das administradoras de shopping centers. Esta política do agente privado gerou o espetáculo do séquito de seus demais competidores. O mercado econômico, concentrado de agentes hesitantes, seria corporativo, por ser tão temeroso e sedentário ao desenvolver suas atividades econômicas. A decisão de buscar uma liminar judicial para lidar com um dano que nasceu, ainda, criança, ao começo da estória, gerou outro dano irmão – ter que explicar a opção judicial e como seria a forma pela qual pensam que participam da, e agregam função à, nossa organização social.

Pois, agora, sequer careceria entender os fatos: a escolha pela opressão a parte de seus frequentadores adolescentes, em deliberação encerrada em uma reunião de executivos (regada a café Nespresso), já foi executada. A ideia infeliz, fadada ao vexame, pelos executivos das administradoras de shopping centers, de provocar o corpo judiciário, para salvaguardar e denunciar seus preconceitos particulares e suprir a incompetência operacional para realizar o objeto de seu negócio comercial, já caiu na graça dos agentes da informação.

Operador do direito

Muitos dizem que as liminares “foram um tiro no próprio pé”. Além da ordem liminar obtida se demonstrar, na prática, ineficaz, presume-se que haverá um efeito rebote por parte dos jovens atingidos pelo fato. Ineficaz porque, por exemplo, uma das decisões judiciais estipula que é permitida a entrada de qualquer um aos estabelecimentos; sendo que, na ocorrência de vandalismo, haveria uma previsão de multa de R$ 10 mil reais. Mas a Polícia Militar, sempre oportunamente presente nesses casos, autoridade tão imediata encontrada, como quando ocorre um acidente de trânsito envolvendo uma empresa de ônibus, já destacou seus batalhões para conter a entrada dos jovens e acolher a bandeira nacional, sob a pena de um cabo ser preso no quartel.

Resumindo: com o agir inoperante dos executivos, as administradoras de shopping centers contariam, em cerca de duas semanas, com quatro problemas: (a) conter eventual vandalismo de grupo que venha a ocorrer; (b) justificar à nação, com base no bom senso, o que se pretendeu ao acionar o judiciário; (c) preparar para enfrentar a reação da outra parte do conflito; e (d) demonstrar que não só pode, como deve, saber gerir crises, estruturais ou não, e que afetam do desenvolvimento das suas atividades econômicas.

Há de ser um brilhante operador do direito, para que se possa ocorrer a um juiz de primeira instância especificar e fundamentar, de forma sistemática e concisa, antecipando-se aos fatos, as ordens judiciais liminares contidas neste caso. Ao pensar que o êxito de um provimento judicial preliminar deveria estar no próprio êxito daquilo que se determinou; e, não, na condição de apenas poder, em tese, possibilitar o êxito – como diria Fernando Pessoa – não se vislumbrariam a aplicação e a função das leis por parte dos magistrados que concederam a ordem liminar.

Espaços privados ou espaços públicos?

A enxurrada de princípios e garantias constitucionais assusta até o leigo em direito. Não seria preciso citar fontes para ressoar a lembrança de que se permite: (i) a associação de pessoas para fins pacíficos; (ii) o direito de ir e vir do cidadão; (iii) a não discriminação baseada em qualquer origem possível (credo, raça, cor, gênero, agremiações políticas, grupos sociais); e (iv) ninguém é considerado criminoso antes que se prove o contrário.

As decisões nos assustam, assim, porque é impossível uma ordem liminar estipular a prévia distinção, caso a caso, ‘a priori’ e em abstrato, de qual grupo de adolescentes poderia, ou realizaria, um arrastão nas lojas e nos corredores, dos demais que não têm nada a ver com o gerenciamento de segurança das empresas administradoras de shopping centers. A baderna é um fato que ocorre no passado. Quem assume os riscos da atividade econômica é responsável por operacionalizar a ordem, de acordo com a magnitude do estabelecimento administrado.

Mas, além de lesão a todas as garantias individuais citadas; e a impossibilidade de aplicar o direito para que se logre êxito e paz social; há, aqui, um mandamento constitucional que, raramente, poderia ser justificado no caso concreto. Se, como disse Schopenhauer, o ideal seria dar a regra e o exemplo ao mesmo tempo, leia uma situação exemplo por Luciano Martins Costa: “Os comerciantes, a polícia e a própria imprensa consideram que os centros de compras são espaços privados, mas os participantes dos tais “rolezinhos” estão convencidos de que são na verdade espaços públicos” (ver, neste Observatório, “Por que os ‘rolezinhos’ assustam“).

A conjuntura invisível

Os shopping centers, há muito, não carregam o privilégio de ser apenas um restaurante, onde o “chef” decide, discricionariamente, a quem serve suas criações gastronômicas. Esses espaços são (embora sob a má administração privada, ao que se parece) opções de lazer à população que, não importa o mérito, considera o centro comercial como local de compras, alimentação, encontros, salas de cinemas e outras atrações. “Templos do consumo, ponto de lazer e, acima de tudo, referência das cidades” (…). Os shopping centers são “pontos de grande circulação de pessoas – segundo a Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce), são mais de 40 milhões de frequentadores por mês (ver aqui).

Ainda, tratariam de estabelecimentos beneficiados por incentivos públicos, isenções fiscais, para fins de promover a cultura ou o turismo de uma cidade. Bastaria uma pesquisa arisca no “Google” para se deparar com o vultoso montante de verbas oferecidas pelo poder público – i.e., com o meu, o seu e o dinheiro do adolescente discriminado em decisões bisonhas, para fazer ou deixar de fazer, nem mesmo se sabendo, exatamente, o quê (ver aqui).

O princípio legal e constitucional que se enquadra como uma mão na luva ao assunto debatido é o da função social da propriedade; principalmente, se o episódio oferece nuances de um agente privado cujo objetivo social guarda finalidades públicas (consumo, entretenimento, cultura, alimentação, grande circulação de pessoas, referência turística da cidade, destinação de aporte financeiro estatal). Há de se situar, urgentemente, os executivos e os magistrados, na conjuntura invisível apenas aos próprios sujeitos.