Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Livro de Piketty é bem-vindo, mas tem limites

Thomas Piketty deve ser elogiado por ter apontado a desigualdade crescente, mas seu livro Capital no Século 21 contém limites analíticos. Suas deficiências aparecem nas conclusões e nas recomendações políticas. A proposta de um imposto mundial sobre a riqueza é totalmente inviável.

A opinião é do também economista francês François Chesnais, de 80 anos, professor emérito da Universidade de Paris 13. Para ele, um marxista, a lista de problemas do capitalismo atual é muito mais abrangente e inclui queda na taxa de lucro global, crescimento da concentração industrial e avanço no grau de monopolização. Um quadro que leva a bolhas e a especulação financeira – que persistem.

Autor de A Mundialização do Capital (1996) e organizador de A Finança Mundializada (2005), Chesnais avalia que a reação do Financial Times contra Piketty foi “uma defesa descarada dos muito ricos”. E enxerga no sucesso de vendas do livro nos EUA a permanência das ideias do Occupy Wall Street.

Nesta entrevista, concedida por correio eletrônico desde Paris, o economista afirma que a ascensão da extrema-direita nas últimas eleições europeias é consequência da crise que eclodiu no globo em 2008.

Também para a Folha, o economista Jorge Arbache analisa o livro de Thomas Piketty e diz acreditar que a desigualdade entre países deve aumentar, e pesquisadores discutem possíveis erros cometidos pelo francês em sua obra.

As ideias de Stiglitz no movimento Occupy

O livro Capital no Século 21está tendo um grande impacto e sofre ataques. Erros foram apontados. Esses ataques se justificam?

François Chesnais – O que Thomas Piketty fez no livro foi basicamente colocar novos dados numa série histórica maior dando apoio à posição estabelecida notadamente por Joseph Stiglitz no seu livro The Price of Inequality [O preço da desigualdade], de 2012. Na sua resenha sobre o livro, a Economist chama Piketty de um “pioneiro no uso de estatísticas de impostos”. Não é tola o suficiente para discutir sobre os dados: “Há seguramente algumas confusões nessas estatísticas, mas esse trabalho tem transformado a compreensão da história da riqueza.” Como Paul Mason apontou em seu artigo no Guardian (26/5), o ataque do Financial Times ao livro de Piketty, além de ser uma defesa descarada dos muito ricos, é baseado principalmente em argumentos relacionados ao Reino Unido, onde os números apenas refletem o baixo nível de taxação e a escassez de estatísticas fiscais. No Reino Unido, “não há nem necessidade nem desejo de registrar a real riqueza do mercado”.

Os números oficiais dos EUA também têm lacunas, e a grande maioria de seus economistas estão gratos a Piketty e seus colegas por terem coletado e harmonizado dados de diferentes fontes. As informações básicas que levaram ao slogan central do movimento Occupy Wall Street – “Nós somos os 99%” – já tinham sido sintetizadas por Stiglitz. No seu interessante livro sobre o Occupy, The Democracy Project [O projeto de democracia], David Greaber relata como o artigo de Stiglitz na Vanity Fair de maio de 2011, intitulado “Do 1%, pelo 1%, para o 1%” ajudou o grupo inicial de ativistas a escolher o seu slogan. As altas vendas do livro de Piketty na Amazon são a expressão do fato de que as ideias do Occupy continuam vivas, mesmo que o movimento tenha se tornado underground, por assim dizer.

A produtividade como forma do progresso

A direita diz que Piketty é marxista, enquanto a esquerda refuta essa ideia, apontado falhas na análise. Qual sua visão?

F.C. – Quando Capital no Século 21 foi publicado na França, em agosto de 2013, recebeu o mesmo nível de atenção de muitos outros livros e não provocou nenhuma celeuma particular. Eu o considero bem-vindo, como um retorno à economia política de forma distinta da economia (o livro tem apenas duas equações muito simples e não traz econometria). Saudei suas descobertas sobre heranças na França, que triplicaram como resultado da redução de impostos e do aumento da riqueza imobiliária urbana, de menos de 5% do PIB nos anos 1950 para algo em torno de 15%, de forma alguma distante do pico alcançado no século 19, de 25%. Fico feliz em ter essa oportunidade de discutir o livro de forma mais crítica.

Seus consideráveis limites analíticos e suas deficiências aparecem nas conclusões e nas recomendações políticas. Piketty enxerga a alta desigualdade e a riqueza como os principais obstáculos para o crescimento e, assim, como o principal problema para o capitalismo. Assim, ele vê a taxação da renda e da riqueza como a principal solução, culminado com sua proposta totalmente inviável de um imposto mundial sobre a riqueza. Essa posição tem dois fundamentos teóricos. O primeiro é a definição de Piketty de capital como o estoque de ativos possuído pelas famílias, corporações e entidades públicas em todas as formas pelas quais os ativos possam ser negociados, não apenas máquinas e equipamentos de tecnologia da informação e comunicação, mas também terrenos, imóveis, direitos de propriedade, obras de arte, metais preciosos. Nas suas palavras, “capital” e “riqueza” (em francês e em todas as línguas latinas a palavra mais clara é patrimônio) são basicamente sinônimos.

O segundo fundamento é uma “lei” por meio da qual, excluindo eventos políticos muito excepcionais como guerras mundiais, a taxa de retorno desse estoque de ativos, esse patrimônio, excede a taxa de crescimento do PIB. Por isso, o aumento contínuo da desigualdade. Quando o capital é definido como em Smith, Ricardo e, claro, em Marx, como meio de produção e dinheiro gasto na forma de salários para o trabalho engajado na produção nas atividades primárias, secundárias e terciárias e a “taxa de retorno” significa a taxa de lucro (qualquer que seja o método escolhido) desses investimentos e a produtividade é vista como forma do progresso, com os efeitos de determinadas formas de organização espacial e necessidades de energia empenhadas, então a lista de problemas-chave enfrentados pelo capitalismo é maior.

O controle social coletivo

O que essa lista inclui?

F.C. – Inclui a queda na taxa de lucro global, o crescimento da concentração industrial (as enormes fusões e aquisições observadas hoje) e o avanço no grau de monopolização. Há queda da taxa de formação de capital, ausência de inovações tecnológicas que requerem novos grandes investimentos e despesas com salários (levando a uma nova longa onda shumpeteriana), contínua ênfase em indústrias que deram tudo que podiam dar em termos de crescimento e têm efeitos bumerangues contrários (a dependência nos automóveis é a primeira da lista).

É por conta dos obstáculos enfrentados pelo capitalismo e da escassez de lucros decorrentes da produção que tanto dinheiro vai para o setor imobiliário – com as bolhas de imóveis – e uma grande quantidade é ainda destinada à especulação financeira através da negociação de papéis sobre a produção atual e futura (ações e títulos públicos e privados). Trata-se do capital fictício. Ele não acrescenta nada ao estoque de investimento nem serve de apoio ao crescimento. E os derivativos, que representam a maior parte da atividade do mercado financeiro, são uma forma ainda mais aguda do capital puramente fictício. No mercado, alguns são mais bem-sucedidos do que outros. Daí a razão pela qual a atenção dos economistas não é apenas para o 1%, mas para os 10%, ou até para o 1% do 1%!

O livro de Piketty provocou o debate sobre a desigualdade gerada pelo capitalismo e sua ameaça à democracia. O capitalismo é sobre desigualdade e risco à democracia?

F.C. – Tudo depende do que se entende por democracia. Representativa ou parlamentar, a democracia tem sido, com exceção de períodos transitórios relativamente curtos –como os anos 1930 em alguns países e em outros mais logo após a Segunda Guerra Mundial –, muito formal, antes de ficar, sob o capitalismo financeiro ou neoliberalismo, quase uma pura fachada. As instituições do Estado de Bem-Estar e os direitos irrestritos de sindicalização, greve e atividade política têm representado o único genuíno conteúdo da democracia. Eles sempre têm sido o resultado da ação social e política das massas fora de parlamentos. Sua ausência caracteriza o regime chinês. Mas eles têm sido sistematicamente derrubados em todo o lugar no mundo onde existam em algum nível. De país a país, trabalhadores têm tido capacidades muito desiguais em defendê-los de forma efetiva. Duraram muito tempo na França, mas declinaram fortemente ao longo dos últimos três anos.

O livro de David Greaber sobre o Occupy relata as formas pelas quais as atividades políticas e sindicais têm sido reprimidas pela ação policial formal ilegal nos EUA. Adicionando a isso as implicações do aquecimento global, a questão verdadeiramente democrática para as pessoas que vivem sob o capitalismo (não apenas os trabalhadores) é muito mais abrangente do que um grau um pouco maior de igualdade de distribuição de renda. Diz respeito ao controle social coletivo sobre o uso dos recursos produtivos e às prioridades de investimentos, que, por sua vez, requerem mudanças nas formas de propriedade. Uma das precondições imediatas de tal mudança é a própria possibilidade de debater sobre sua necessidade.

A possibilidade de fazer isso tem sido amplamente confiscada, nomeadamente pela alta concentração da mídia. Mesmo na Europa, esse confisco não foi desafiado pela ampla atividade política, com exceção da Grécia. A genuína democracia é uma das coisas mais difíceis de serem estabelecidas. A experiência do rumo tomado pela União Soviética sob Stalin implica que o controle social coletivo sobre o uso dos recursos produtivos precisa ser incorporado por outras instituições além do Estado e de sua burocracia.

A “busca de rendimento”

Qual sua visão sobre a situação mundial? A crise está sendo resolvida ou pode voltar a se intensificar?

F.C. – As crises do capitalismo só acabam quando a destruição dos meios de produção em excesso (superacumulação levando à superprodução) e de capital fictício (papéis, ações) ocorre numa escala suficientemente grande em que os decks ficam limpos, a produtividade é restaurada e a oportunidade de novos investimentos decola. Na crise atual, que na verdade começou nos EUA e na Europa em julho/agosto de 2007, o primeiro objetivo do governo e da política do banco central tem sido salvar do colapso os principais pesos-pesados do sistema financeiro e seus ativos espúrios. O segundo, em 2009, é preservar a liberdade do investimento direto estrangeiro e do comércio. O capital fictício como um todo mal foi tocado.

Alguns bancos e fundos de investimento quebraram em 2008 e outros têm sido atingidos e enxergam quedas nas suas taxas de retorno. Mas o recurso de criação de uma enorme nova dívida pública tem significado um crescimento de rentistas na economia, bem como uma deterioração da vida cotidiana em muitos países. A destruição do capital produtivo tem ocorrido em algumas partes da economia mundial, como em boa parte da Europa (a Alemanha é exceção) e em muitos países produtores de bens similares como a China. Mas isso tem sido compensado pela superacumulação e superprodução naquele país. A força das condições deflacionárias na economia mundial é uma expressão disso. Consultores financeiros e a imprensa econômica relatam que bancos e empresas estão inundados de dinheiro.

Na ausência de oportunidades de investimento com um taxa de lucro de acordo com a satisfação do acionista, lucros obtidos não são reinvestidos, mas usados para recompra de ações em uma escala maior do que nunca. Taxas de juros estão em seu nível mais baixo em 30 anos, mas sua influência sobre o investimento é muito pequena. O FMI está muito consciente disso. Seu relatório anual sobre a estabilidade financeira global é intitulado “mudar de mercados dirigidos pela liquidez para mercados dirigidos para o crescimento”. É uma acusação de financeirização e globalização financeira de uma das organizações internacionais que desempenham um papel chave na emergência.

A preocupação principal é sobre a insustentabilidade e sobre os perigos que contínua injeção maciça de dinheiro pelo Fed e outros bancos centrais: “Nas economias avançadas, os mercados financeiros continuam a ser apoiados por extraordinárias acomodações financeiras e condições fáceis de liquidez.” Tanto assim que eles não estão contribuindo até agora para a criação de um “ambiente de crescimento autossustentável, marcado pelo aumento do investimento corporativo e pelo avanço no emprego”. Ao contrário, “a ‘busca de rendimento’ está se tornando cada vez mais ampla, com aumento da alavancagem no setor corporativo e enfraquecimento dos padrões de segurança em algumas partes do mercado de crédito nos EUA”. Aparecerão nichos onde a rentabilidade é alta. A corrida para investir vai transformá-los em bolhas especulativas de curta duração.

Voto para a extrema-direita

As últimas eleições na Europa mostraram o avanço da extrema-direita. Esse fato é consequência da crise iniciada em 2008?

F.C. – Sim, claro que é. Mas é preciso analisar com mais detalhe. É preciso salientar que as respostas políticas da União Europeia e dos governos nacionais (sejam eles liderados por conservadores ou por socialdemocratas) foram especificamente as fortes medidas de austeridade para financiar o serviço da dívida pública, que consome uma grande parte dos orçamentos nacionais (45% no caso da França). Na França, assim como em alguns países da Europa, se tem travado uma difícil batalha para a auditoria da dívida pública. Uma avaliação da parte que é mostrada revela que ela é ilegítima e deve ser varrida. O corte de serviços públicos essenciais, especialmente o fechamento de hospitais, está se tornando rotineiro em muitos países. Corporações e seus acionistas têm uma enorme responsabilidade nisso também.

No caso da França, o rápido crescimento da concentração industrial e do investimento direto estrangeiro (mais da metade das corporações listadas na Bolsa de Paris fazem hoje entre 50% e 80% de seus lucros no exterior), juntamente com a dificuldade para pequenas e médias empresas em obter financiamento em bancos (um oligopólio restrito de quatro grupos principais) também explicam a alta taxa de desemprego. Mas os sindicatos e as organizações de esquerda também têm sua parcela de responsabilidade no voto para a extrema-direita. Os lugares onde a esquerda venceu (Grécia, com o Syriza) ou fez uma descoberta (Espanha, com o Podemos) são países onde as pessoas têm sido encorajadas e ajudadas em suas lutas, e não sendo deixadas isoladas atrás de suas TVs.

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Eleonora de Lucena, da Folha de S.Paulo