Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O cidadão-inimigo

Barack Obama, como se sabe, é o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos. Ao assumir a Casa Branca em 2009 tratou de indicar Eric H. Holder, também negro, para ocupar o quarto cargo mais importante da hierarquia governamental: o de procurador-geral. Holder é o primeiro afrodescendente entre os 81 que o precederam no cargo. Nos Estados Unidos, o procurador-geral – também no Brasil – comanda o Ministério da Justiça e atua como advogado-geral da União.

Mas nem Obama nem Holder conseguem impedir a contínua polarização da América branca e negra. Excetuando-se a progressiva inserção de profissionais urbanos negros na malha socioeconômica do país, o restante do mapa racial americano está deformado.

Um recente levantamento que tomou por base o Censo de 2010 e focou em 20 áreas metropolitanas do país mostrou que a metade das populações negras das regiões analisadas vive em áreas “sem qualquer presença de brancos”. São comunidades que vão tocando a vida à margem do noticiário e nas franjas da sociedade. Até ocorrer algum fato capaz de arrancá-las do anonimato.

Foi o que ocorreu na semana passada com Ferguson, inexpressivo subúrbio de St. Louis, uma das principais cidades do Meio-Oeste americano. Cravada no Estado do Missouri, St. Louis é notória por ser uma das cidades mais segregadas do país. Suas gentes preferem manter distância dos 21 mil moradores de Ferguson, 22% dos quais vivem abaixo da linha de pobreza – e, além de pobres, são majoritariamente negros.

Militarização ostensiva

Nem sempre foi assim. Até a geração passada a população de Ferguson era 85% branca e 14% negra. Foi a partir de 2010 que o pêndulo se inverteu e hoje é a comunidade negra ( 69% da população) que sobrevive no desolado subúrbio. Só que o prefeito e o chefe de polícia local continuam sendo brancos, assim como cinco dos seis conselheiros municipais. O Conselho de Educação municipal, por sua vez, é composto por seis brancos e um hispano. E entre os 800 filiados à principal congregação religiosa local o bloco de fiéis não brancos se resume a quatro.

Outro dado tóxico da combustão racial que há uma semana consome Ferguson está na força policial da cidade. São 53 os agentes da lei e ordem que compõem a corporação, dos quais apenas três são negros. Em compensação, essa mesma polícia dispõe de blindados retornados do Iraque e Afeganistão, equipamentos para detectar minas terrestres, silenciadores, fuzis M-16, rifles 5,56 de cano curto capazes de atingir um alvo a 500 metros. Tudo cedido pelas Forças Armadas.

A previsível encrenca eclodiu na tarde ensolarada do sábado passado. Ao caminhar com um amigo por uma rua de Ferguson, em vez de andar pela calçada como manda a lei, um jovem negro de 18 anos, Michael Brown, foi abordado e morto a tiros por um policial branco. “Alvejado mais do que algumas vezes”, admitiu o chefe de polícia, Thomas Jackson.

As versões do ocorrido continuam conflitantes e caberá ao FBI destrinchar a investigação. Mas sabe-se que o último gesto do adolescente já baleado na cabeça foi o de levantar os braços e pronunciar suas derradeiras palavras: “Não atire em mim.”

Foi nas ruas desse subúrbio depauperado de St. Louis que se viu a primeira demonstração prática do “Programa 1033”, nome dado à distribuição de equipamento ocioso das Forças Armadas para delegacias de polícia do país. Desde que os Estados Unidos começaram a enxugar o grosso de sua presença militar no Iraque e no Afeganistão, o arsenal não utilizado foi sendo paulatinamente repassado aos departamentos de polícia locais. Vinte e dois estados, por exemplo, já receberam equipamento para detectar minas terrestres. Trinta e oito ganharam silenciadores – inclusive Walsh County, na Dakota do Norte, que agora ostenta 40 exemplares para manter em ordem uma população de 11 mil almas. Veículos blindados de grande porte, tanques anfíbios, drones , baionetas, rifles M-16 – o repasse é contínuo. E perigoso.

Em Ferguson, a aparição de policiais usando máscaras, portando uniforme de combate e circulando em blindados do Exército estarreceu os moradores. O uso de bombas de gás lacrimogênio, porretes e balas de borracha contra manifestantes e jornalistas aborreceu Obama. Mas a militarização ostensiva da polícia já é um fato. Em alguns casos, não fosse pelo emblema da polícia, seria difícil saber se o sujeito de jaqueta verde e calça de camuflagem que desce de um blindado cor do deserto pertence às Forças Armadas ou à polícia.

Contra quem?

Para se entender a extensão desse processo de militarização recomenda-se a leitura de “The rise of the warrior Cop” (“A ascensão do policial guerreiro”), do repórter investigativo Radley Balko. O livro traça a gênese dessa mudança e alerta para o esgarçar da crucial fronteira que sempre separou o policial de um soldado americano. O fato de o uso desse armamento e a prática de táticas paramilitares se voltarem sobretudo contra jovens negros, como atestam as estatísticas, apenas agrava o quadro. Se foi assim na Guerra contra as Drogas, desencadeada décadas atrás e conduzida por equipes especializadas da polícia, não será diferente na atual Guerra contra o Terrorismo.

“Você não conquista a confiança de ninguém se apontar um rifle contra o peito dele”, garante Balko, baseado na sua larga experiência de Afeganistão.

Em última instância, todo cumprimento da lei depende da confiança da população nas forças da ordem a seu serviço. Quando o policial começa a ver no cidadão um inimigo é porque a coisa descarrilhou.

Kara Dasky, coautora de um estudo da American Civil Liberties Union sobre a militarização da polícia americana, tem uma frase que resume tudo: “Se você tem um martelo, tudo se parece com um prego. Quando a polícia tem armas de guerra, a chance de ela usá-las é grande.” Contra quem? Segundo o estudo de Dasky, 54% das pessoas visadas por essas armas serão negros ou latinos.

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Dorrit Harazim é jornalista