Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A confidencialidade do ato terapêutico

[Por Antonio Carlos Cesarino, José de Souza Fonseca Filho, José Roberto Wolff, Pedro Mascarenhas e Wilson Castello de Almeida]

Recentemente, em abril de 2011, a mídia divulgou um atendimento médico em que o profissional, supostamente, orientava sua cliente a simular sintomas com a finalidade de ser considerada inimputável em um processo criminal.

Não nos cabe aqui fazer a defesa, propriamente dita, do profissional em questão. Certamente, seus advogados o farão de modo apropriado. E o próprio envolvido saberá justificar suas ações. Nosso principal objetivo é levantar alguns aspectos da confidencialidade do ato médico rompidos no caso. Uma consulta médica foi gravada, editada e divulgada pela mídia sem o conhecimento do terapeuta que a executava. Como o fato não é incomum, cremos que o tema é de interesse da classe médica e de todos os profissionais que se dedicam a aliviar dores físicas e psicológicas e, não menos importante, do público que se interessa por esses serviços ou necessita deles.

Lembramos o fato de que muitos terapeutas atingidos por essa forma de exposição pública não se revelam antiéticos, sendo absolvidos pelos seus órgãos de classe. No entanto, esta absolvição não repara o sofrimento moral pelo qual eles e suas famílias passam. Os prejuízos profissionais que decorrem da imagem pública prejulgada pela mídia não se dissipam, mesmo com a absolvição do órgão de classe. A mídia só destaca o momento do incêndio – o momento do rescaldo perde interesse informativo.

O desafio da assistência fora dos padrões

O fato mencionado, no entanto, acabou por constituir uma oportunidade para reflexões mais amplas sobre o acontecimento. Cabe então, inicialmente, questionar: quem filmou o atendimento médico? Quem o divulgou? Quem o editou? Com que propósito isso foi feito? E, finalmente, a quem interessa a divulgação do fato?

Marcio Thomaz Bastos [entrevista de Marcio Thomaz Bastos: “A imprensa é responsável”, concedida à revista Getúlio, set./out. 2010, p. 16-23], criminalista e ex-ministro da Justiça, ao falar sobre a atuação da mídia na cobertura de casos de apelo popular, comenta:

“[…] Cria-se na imprensa o mecanismo de uma guerra pelo furo, pela informação de primeira mão. Não há nenhum controle de qualidade, pois o que interessa não é a informação pesquisada, checada, confrontada e comprovada… E como em toda guerra, como se diz, a primeira vítima é a verdade” (p. 19).

O médico que teve o atendimento divulgado foi mostrado como se estivesse forjando um diagnóstico, uma ação supostamente oportunista, para isentar a paciente de culpabilidade em um processo movido contra ela. No entanto, há três anos ele cuidava da paciente, portadora de um quadro clínico anteriormente diagnosticado por outros psiquiatras. Na curta edição exibida pelas emissoras de televisão, não constou o fato de que o advogado da paciente recebeu o esclarecimento de que o diagnóstico não a isentava de responsabilidade criminal. A mídia também não revelou que a orientação médica, em forma de role-playing ou role-training, estava destinada a uma perícia médica para avaliar as condições de saúde da paciente em termos da possibilidade de ela dar continuidade ao seu exercício profissional, consulta esta realizada em agosto de 2010. No ano de 2011, ela já estava afastada de suas atividades. O que se mostrou leva a crer que a pessoa estava sendo preparada para sair ilesa do processo de investigação criminal movido contra ela em 2011.

Atender fora do consultório, fora do setting padrão onde acontece, na maioria das vezes, esse tipo de atendimento, não constitui uma má prática de atendimento, como a reportagem dá a entender. Longe disso, o desafio dessa assistência fora dos padrões caracteriza-se, muitas vezes, como a única possibilidade de realizá-lo. Pode revelar aspectos ainda não expostos e propiciar acontecimentos inéditos e produtivos para a clínica.

Interesse público e interesse do público

Marcio Thomaz Bastos, já citado, comenta que essas circunstâncias estão contidas na expressão do Direito americano trial by media: o julgamento antecipado da pessoa, condenada antes de ser julgada. O advogado relembra que a liberdade de imprensa é inquestionável, mas é preciso fazer o cotejo com valores da mesma hierarquia e nobreza constitucional, como o direito da presunção de inocência.

Arnaldo Malheiros Filho [debate “Mídia e justiça”: “O direito penal e a atuação da mídia”, publicado na revista Getulio, set./out. 2010, p. 25-35], um dos fundadores do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, diz que a liberdade de expressão deve ser colocada como um dos direitos mais importantes, mas no sentido de liberdade de manifestação do pensamento, ou seja, a liberdade da imprensa deve prevalecer, mas sem licenciosidade para ofender.

Na verdade, a imprensa tem compromisso com a notícia, mas como a inocência não é notícia, arremata:

“Ninguém imagina a manchete: Fulano de tal não matou a mãe. A imprensa precisa de culpa e a polícia é a fonte primária da notícia de culpa. E a partir daí ela se compromete com essa versão e não volta atrás. Então, não é mais liberdade de expressão e divulgação, é um massacre de uma pessoa que até pode não ser culpada” (p. 26).

Quanto ao vazamento de informações por parte das autoridades para a imprensa, Marcio Thomaz Bastos é categórico ao dizer que aqui há um abuso de autoridade que fere o sigilo profissional. Esse tipo de cobertura cria uma convicção de culpabilidade, um linchamento da pessoa: “E quando acontece o julgamento real, a pessoa não será mais julgada, ela já o foi previamente” (p. 20).

A juíza Carolina Nabarro Munhoz Rossi [debate “Mídia e justiça”: “O direito penal e a atuação da mídia”, publicada na revista Getúlio, set./out. 2010, p. 25-35] comenta que uma pessoa atingida por uma notícia mal apurada pode sofrer um impacto violento pelo resto da vida, um dano irreparável. Acrescenta que em direito se fala da diferença entre o interesse público e o interesse do público, expressões parecidas, mas com sentidos totalmente diferentes: uma remete às mais altas condições da cidadania, a outra, à mera curiosidade popular.

O direito da confidencialidade

Vivemos em um país em que as instituições públicas não gozam de total confiança por parte da população. Nossa democracia é jovem e luta para amadurecer. No entanto, o público acredita na imprensa. O promotor Alexandre Pereira [debate “Mídia e justiça”: “O direito penal e a atuação da mídia”, publicada na revista Getúlio, set./out. 2010, p. 25-35] lembra que, pelo fato de as pessoas confiarem na imprensa, esta deveria fazer jus a essa confiança, mas isto nem sempre acontece. René Ariel Dotti [entrevista de René Ariel Dotti, “Caminhos perigosos”, concedida à revista Getúlio, set./out. 2010, p. 37-9, professor de Direito Penal que se notabilizou nos anos 60 e 70 por representar perseguidos políticos da ditadura, ao comentar a ação da TV Globo durante o sequestro da jovem Eloá Pimentel, relembra que a emissora chegou a interromper a transmissão de um jogo de futebol para mostrar um laudo da perícia técnica do inquérito: “Aí está a marca do sensacionalismo e do abuso. É lamentável que não haja, nesse momento, ferramentas judiciais para responsabilizar a emissora” (p. 39).

O ato médico é constituído pela articulação relacional de dois papéis: o de médico e o de paciente. Entre eles se estabelece uma relação de segredo, que hoje é entendida como confidencialidade. Existem nessa relação, portanto, duas vertentes: a obrigação do segredo por parte do médico, salvo precípuas exceções, regida pelo Código de Ética Médica e, por parte do paciente, o seu direito de manter privadas as suas informações.

A relação terapeuta-paciente requer confidencialidade, privacidade e confiança para que possa cumprir a função terapêutica que se propõe. Desta forma, a invasão de um atendimento médico, bem como a sua utilização recortada, configura uma violação ao direito de privacidade, enquanto a exposição sem critério das palavras do terapeuta fere o direito da confidencialidade. Quando o próprio cliente é o responsável pela gravação do ato terapêutico, sem o conhecimento e o consentimento do profissional que o atende, sua exposição constitui uma quebra irreparável de confiança, comprometendo toda a base fundamental da relação terapeuta-paciente.

Público e privado

Retornando ao caso em foco, as informações revelam que a paciente foi atendida em sua residência, sendo a gravação de responsabilidade familiar. O material foi apreendido meses depois e vazado para a imprensa. Os órgãos midiáticos editaram e divulgaram um material de aproximadamente cinco horas em poucos minutos. A compreensão do todo foi perdida para dar relevância ao parcial mínimo. A data da gravação do vídeo confundiu-se com outros acontecimentos da vida da paciente. Vale lembrar a história de várias pessoas de olhos vendados a examinar e descrever as diferentes partes de um elefante, como se fossem desconectadas do todo: surgem as mais inverossímeis descrições quando elas palpam o rabo, a orelha, uma pata etc.

É fato comum a autoridade vazar informação para a imprensa, porém quem assim age consolida uma atitude não ética. Luís Francisco Carvalho Filho [debate “Mídia e justiça”: “O direito penal e a atuação da mídia”, publicado na revista Getúlio, set./out. 2010, p. 25-35], advogado e articulista, é taxativo ao dizer que “se um promotor, juiz ou advogado chama o jornalista para dar uma informação é porque ele tem um interesse” (p. 33). Qual seria este interesse? É preciso identificá-lo.

Por outro lado, sabemos que a fronteira entre o que é público e o que é privado varia ao longo da história e entre as diversas culturas. O século 20 mostrou-nos que essa fronteira transformou-se de uma linha divisória mais nítida em uma zona cinzenta com vários matizes de difícil identificação. A grande mídia veicula o entretenimento no estilo Big Brother, um grande buraco de fechadura por onde se esquadrinha o mundo, navegando na fronteira entre o público e o privado em dissolução. Trata-se de massificar atitudes obscenas. Como o próprio nome aponta: observação de fora da cena, através do buraco da fechadura. O olho do “grande irmão”, do livro 1984, de George Orwell, multiplicado. A realidade da mídia reproduz a ficção de maneira aprimorada.

Por que tanto destaque?

Graças à exigência de confidencialidade e de privacidade do ato médico, centenas de milhares de sigilos são guardados, pela eternidade afora, na vivência moral de um profissional da área médica. É a nossa missão mais secreta. No encontro de uma confiança com uma consciência, instala-se o consultório confessional, em que o paciente despe-se de seus “pecados”, fragilidades e doenças, dores e angústias, permitindo ao terapeuta ouvir, examinar, diagnosticar, tratar, orientar e ensinar, sempre objetivando a cura da saúde física e mental abaladas.

Assim, podemos registrar o que se encontra oculto no arquivo da memória: Quantas depressões traduziriam o desejo de se matar? Quantos ódios conteriam a vontade de eliminar alguém? E o número de palavras malévolas? E os corações ofendidos a clamar por vingança? E o nosso testemunho sobre infidelidades, traições e calúnias? Se alguém, utilizando-se da parafernália eletrônica, grava e edita parte de uma sessão de tratamento fora do contexto de um ato terapêutico (aconselhamento, psicoterapia, role-playing), expondo-a na mídia, sem critérios, abala nossa dignidade. A quem recorrer?

Precisamos mobilizar em tempo hábil os profissionais de boa consciência e de corações generosos, para tomarem conhecimento do que aconteceu de fato. A moral metafórica do big brother não pode prevalecer em uma sociedade que se pretenda justa.

Além de tudo o que foi dito, cabe ainda algum raciocínio de cunho ético, já que uma das perguntas colocadas é: a quem interessa publicar trechos editados de um vídeo que nem deveria ter sido gravado? Por que tanto destaque e repetição na mídia? Quem era o alvo? Estamos falando em confidencialidade, condição sine qua non para que se possa realizar com dignidade um ato médico, sobretudo um ato psicoterápico, em que se entra em contato com os conteúdos mais profundos e singulares de uma pessoa.

“Desaparece o jornalismo investigativo”

Aí entra em questão a ética de quem faz essa publicação: não se trata de um poeta ou de um escritor de ficção que pode imaginar o que quiser e “colorir” a realidade com as cores da fantasia. Trata-se de alguém que, em princípio, propõe-se informar. Se quiser ser ético, deverá ser verdadeiro, e isto significa verificar cuidadosamente a veracidade da sua fonte, e não fazer um corte do seu material para “provar” o que deseja. Ou estamos entrando também aí no reino do “virtual”? Não há mais compromisso com a realidade nem com os valores, tudo é virtual? Além disso, há um descompromisso com a historicidade, isto é, com o tempo. Os acontecimentos gravados no vídeo aconteceram meses antes das circunstâncias veiculadas na mídia, portanto, sem nexo com o momento.

Vamos supor que o autor do feito esteja tentando denunciar o que lhe parece um ato incorreto, mas o faz de maneira igualmente incorreta, sem respeito por si próprio, ao “forçar” a informação. Neste momento, citamos Jurandir Freire Costa [A ética e o espelho da cultura]: “Os indivíduos no Brasil tornaram-se social e moralmente supérfluos… eles nada valem como cidadãos, pessoas que têm responsabilidades […]” (p. 10).

Sem acreditar mais em leis, ou seja, em regras: vale tudo. Novamente Jurandir: “O que vigora hoje no Brasil é uma razão cínica” (p. 11). Não queremos ser pessimistas, como sugere essa afirmação, mas há fatos que nos fazem pensar dessa forma, e eles são cada vez mais frequentes, em diversos contextos. Este que estamos tratando é um deles.

Não cabe aqui, naturalmente, fazer um estudo pormenorizado das modificações que a mídia vem sofrendo nestes tempos ditos pós-modernos. Marilena Chauí [Simulacro e poder] comenta que houve uma mudança gradual do jornal como órgão de notícias para órgão de opinião, ou seja, os jornalistas comentam e interpretam as notícias:

“Gradualmente desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo investigativo, que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. Os jornalistas passam, assim, a ocupar o lugar que tradicionalmente cabia a grupos e classes sociais e a partidos políticos” (p. 12).

Perigos e consequências

Quando as falas e os atos são “editados”, isto é, selecionados e cortados, como na situação que estamos comentando, para enfatizar (ou criar) os aspectos desejados, surge a figura do simulacro. Assim, oferece-se ao público, como “verdade”, uma criação voluntária de apenas um aspecto, parcial, porque incompleto e não inserido em um contexto, o que permitiria que o acontecido fosse mais bem compreendido e analisado. Retira-se do público o papel de observar e interpretar a situação.

Surge, no entanto, uma esperança ao depararmos com uma publicação de renomada faculdade de direito, a Direito GV – São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, dedicada a temas como a justiça no palco da mídia, os excessos da cobertura das notícias ligadas ao direito penal, a mídia sob os holofotes da crítica e a responsabilidade da imprensa. Ainda bem: há pessoas responsáveis preocupadas com fatos como este que abordamos.

Vale lembrar o filme A montanha dos sete abutres, um clássico do cinema, dirigido por Billy Wilder [Billy Wilder: A montanha dos sete abutres, 1951, (DVD: 2011)], que conta a história, baseada em fatos reais, de um repórter que retarda o socorro a um mineiro soterrado porque isso o tornaria famoso. A obra, apesar de ter sido realizada há muitos anos, amplia seu sentido em termos da internet e da mídia globalizada de nossos tempos. A revista IstoÉ comenta que o personagem do filme “pode ser visto como parte da imprensa e da sociedade que açodadamente acusa, execra, julga e condena pessoas atirando aos abutres garantias constitucionais e princípios éticos” (p. 113).

Esperamos que este texto provoque a reflexão sobre a verdade dos fatos e, ao mesmo tempo, sirva como alerta para os perigos e as desastrosas consequências do uso indevido e indiscriminado, por parte da mídia, de informações verbais e imagéticas de um ato médico violado em sua confidencialidade.

Referências bibliográficas

BASTOS, Marcio Thomaz. “A imprensa é responsável”. Revista Getúlio, Fundação Getúlio Vargas, ano 4, set./out. 2010.

CARVALHO FILHO, Luis Francisco. “O direito penal e a atuação da mídia”. Revista Getúlio, Fundação Getúlio Vargas, ano 4, set./out. 2010.

CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.

COSTA, Jurandir Freire. A ética e o espelho da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

DOTTI, René Ariel. “Caminhos perigosos”. Revista Getúlio, Fundação Getúlio Vargas, ano 4, set./out. 2010.

IstoÉ. O atual “Montanha dos sete abutres”. Ano 35, nº 2.172, p. 29 jun. 2011.

MALHEIROS FILHO, Arnaldo. “O direito penal e a atuação da mídia”. Revista Getúlio, Fundação Getúlio Vargas, ano 4, set./out. 2010.

PEREIRA, Alexandre. “O direito penal e a atuação da mídia”. Revista Getúlio, Fundação Getúlio Vargas, ano 4, set./out. 2010.

ROSSI, Carolina Nabarro Munhoz. “O direito penal e a atuação da mídia”. Revista Getúlio, Fundação Getúlio Vargas, ano 4, set./out. 2010.

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[Antonio Carlos Cesarino, José de Souza Fonseca Filho, José Roberto Wolff, Pedro Mascarenhas e Wilson Castello de Almeida são médicos psiquiatras, psicoterapeutas e psicodramatistas]