Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A confusão entre racismo e pobreza

Parecia coisa combinada, mas não foi. Num mesmo dia (8/3), na Folha de S.Paulo e no Globo, os jornalistas Luís Nassif e Ali Kamel publicaram artigos criticando a leitura enviesada feita pela imprensa da última Síntese de Indicadores Sociais, relatório divulgado pelo IBGE com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

A complexidade dos números expressos na Síntese não deveria permitir avaliações apressadas. Tanto é assim que o IBGE libera, sob embargo, os resultados do trabalho com a antecedência necessária para que os jornais, revistas e emissoras possam preparar suas matérias.

O que sustentam Nassif, colunista e integrante do Conselho Editorial da Folha, e Kamel, diretor-executivo de jornalismo da Rede Globo, pode ser resumido em dois pontos: 1) os números do IBGE são importantes, mas sobre eles a imprensa ouve pouca gente afora as fontes habituais, em geral do próprio IBGE; e 2) no bojo da discussão nacional sobre cotas raciais, a imprensa fia-se na opinião de um número reduzido de fontes para sustentar que o principal causador da exclusão social é o racismo, e não a pobreza.

O ponto em que ambos se pegam é naquilo que Nassif chama de ‘sofisma no uso das estatísticas’.

‘Vai-se descontar no não-negro da baixa renda – que eles não freqüentam – a discriminação que existe no ambiente branco de alta renda – onde eles competem –, como se houvesse a classe dos brancos e a dos negros, e não a dos ricos e a dos pobres.’

Ou no comodismo da imprensa ao eleger preferencialmente fontes do IBGE, como aponta Kamel:

‘Os pesquisadores do órgão interpretam os números de acordo com suas crenças pessoais. E decretam: o racismo é a causa da desigualdade.’

Ambos os artigos podem ser lidos aqui. Abaixo, os dois articulistas respondem a quatro perguntas deste Observatório.

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Ali Kamel: ‘A leitura dos números se prende ao aparente. Mas a culpa não é apenas dos jornalistas’

‘Na atual maré pró-cotas, só há olhos para ver racismo’, você escreveu. A mídia serve como olhos da sociedade, ou deveria servir. Faz sentido jornalístico supor que o racismo rende mais manchetes que a pobreza? É isso que o público quer, é disso que o público gosta?

Ali Kamel – Não acho que o racismo renda mais manchetes do que a pobreza de jeito nenhum. Os dois assuntos estão igualmente nos jornais, mas, infelizmente, sem um nexo entre eles. É este nexo que estou trabalhando nos meus artigos. Foi apenas uma coincidência o Nassif e eu publicarmos artigos sobre o mesmo tema. Há mais de um ano escrevo sobre o tema. Creio que já foram uns 14 artigos ou mais, tenho me dedicado a participar desse debate. Eu estou convencido de que o público só tem uma única demanda: informação sobre o que acontece no Brasil e no mundo. Os jornais buscam atender essa demanda. Não acredito que os jornais de qualidade busquem atender demandas específicas, esse ou aquele assunto porque seria do agrado do público. Noticia-se o que deve ser noticiado. Os bons jornais têm êxito quando se prendem a desempenhar a sua missão: informar. Quando fazem isso, o sucesso é perene. Assim, o racismo e as cotas não estão nos jornais porque o ‘público gosta’. Está nos jornais porque é um assunto que vem sendo discutido pelos responsáveis por definir políticas públicas e pelo movimento negro.

Como avalia a qualidade das matérias sobre os resultados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE? Que dizer da escolhas os jornalistas que fizeram de suas fontes informação?

A.K. – O jornalismo brasileiro é de grande qualidade. Não gosto de criticar os colegas. Em relação às reportagens sobre a Síntese, acho que elas deixaram a desejar. Porque a leitura dos números se prende ao aparente. Mas a culpa não é apenas dos jornalistas. E certamente não é do IBGE, que, como instituição, tem altíssima qualidade e, como eu disse no meu artigo, não avança sinal: relata os números, mas não diz que a razão das desigualdades entre negros e brancos é o racismo. Quem diz isso são alguns de seus pesquisadores, que, por serem especialistas, têm altíssima credibilidade junto aos repórteres. Senti falta, no entanto, da presença de outros especialistas que têm opinião diferente daqueles técnicos. E eles são muitos e participam ativamente do debate público. Creio que numa matéria como aquela, ouvir vozes discordantes era uma obrigação. Mas os repórteres agiram como se um técnico do IBGE fosse a última palavra. E não é. A última palavra é o número. Mas o número comporta mais de uma interpretação. Acho que a verdade está apenas de um lado, não concordo com a tese de que pesquisas podem ser usadas para justificar essa ou aquela tese. O leitor deve julgar. E, para julgar, deve ter acesso a todos os ângulos da discussão. Nas reportagens, eles ficaram apenas com o julgamento de um dos lados.

Os veículos receberam os resultados com antecedência suficiente para produzir matérias sobre os dados do IBGE. A numeralha foi bem explicada?

A.K. – Não foi. Porque as vozes divergentes não foram ouvidas. E poderiam ter sido. Aliás, era uma obrigação ouvir. Não houve má-fé, no entanto. A crença era a de que se tratava de ciência, de verdade final e acabada. A crença era: ouvindo o porta-voz da verdade, tem-se a verdade. Se as reportagens tivessem apenas relatado os números que dão conta da desigualdade teria sido melhor. Mas, junto com os números, veio uma interpretação deles. Que não é, nem de longe, a única. O Brasil tem sociólogos e antropólogos, de universidades importantes, que vêm discutindo o assunto e discordam da tese exposta nas matérias. E eles não foram ouvidos, talvez na suposição de que eles não existem.

Qual foi sua orientação ao jornalismo da Rede Globo para a cobertura do tema?

A.K. – Não dei rigorosamente nenhuma orientação sobre a reportagem. A Síntese é enorme, aborda todos os indicadores sociais. Raça é apenas um dos capítulos. Os diversos telejornais trataram da Síntese dando prioridade aos temas que quiseram. Todos, porém, agiram de acordo com os princípios que seguimos e que Carlos Henrique Schroder, diretor da Central Globo de Jornalismo, vive repetindo: tratar os assuntos com objetividade, correção e isenção, ouvindo todas as partes. A TV Globo tem tratado do assunto cotas seguindo esses princípios: ouve todo mundo, sem exceção, em reportagem que não contém nenhuma opinião da casa. Nosso jornalismo é informativo e não de opinião.

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Luís Nassif: ‘Nos EUA a pobreza se concentra em minorias raciais; no Brasil, ela é universal’

Faz sentido jornalístico supor que o racismo rende mais manchetes que a pobreza? É isso que o público quer, é disso que o público gosta?

Luis Nassif – Faz todo sentido. A opinião pública brasileira tem por hábito emular hábitos internacionais. Nos EUA a pobreza se concentra em minorias raciais (negros, latinos, índios). No Brasil, ela é universal, não respeitando cor. O atendimento pontual de demandas de grupos minoritários mais organizados é uma maneira de se fugir ao cerne da questão: que é a miséria existente no país e a urgência da inclusão social geral, independentemente de cor. O caso do índio Galdino não teria tido a repercussão se fosse contra um pobre incaracterístico.

No meu prédio, o síndico agrediu verbalmente uma moça que trabalha comigo. Se fosse negra, poderia processá-lo. Sendo parda, o máximo que consegui foi adverti-lo. Então, a questão da inclusão negra se tornou a maneira mais fácil de atender demandas específicas, sem mudar a face da miséria brasileira. Os negros organizados constituem a elite, são universitários, muitos deles professores, filhos da classe média. Pergunte se as cotas raciais na Universidade irão atender os favelados negros? É claro que não.

Nos anos 40, as festas de grã-finos cariocas tinham negros que desciam do morro vestidos como africanos, por conta da descoberta da cultura negra… nos Estados Unidos, com a explosão do jazz. A discriminação contra pobres deveria ser tão passível de punição quanto a contra negros. Mas isso não ocorre. É uma maneira de nos sentirmos internacionais, e de abrirmos mão da solidariedade com os brasileiros pobres em geral.

Como avalia a qualidade das matérias sobre os resultados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE? Que dizer da escolhas que os jornalistas fizeram de suas fontes informação?

L.N. – Em geral as informações já vêm acompanhadas de análises, acriticamente. O caso do ‘país de gordos’ é exemplar de como se aceitam os dados sem maiores discussões. Em relação à leitura das informações, a estatística permite pinçar dados para cada gosto. Hoje em dia há um pessoal, estatístico, especializado em trabalhar os dados do PNAD, não para aprimorar as políticas sociais, mas como elemento político para legitimar cortes de gastos sociais. Há diversas formas de manipulação da estatística:

** A escolha do universo a ser analisado.

** As variações relativas. Posso pegar um dado muito ruim e dizer que é aceitável porque a base de comparação é um dado extremamente ruim.

** A não inclusão de dados não quantificáveis. Por exemplo, tem um grupo de economistas que sustenta que a renda melhorou nos anos 90 tomando por base a renda familiar. Antes, um pai de classe C ou D conseguia educar os filhos, com a mãe ficando em casa para funções relevantes – dentre as quais, acompanhar a própria educação dos filhos. Com a pauperização dos anos 90, a mãe precisou sair para trabalhar. Passamos a ter dois subempregados. O estatístico considera o aumento da renda, e desconsidera o trabalho que deixou de ser dedicado à casa. No entanto, estudos sobre educação na Coréia e Japão indicam que o acompanhamento dos estudos pela mãe é elemento essencial na formação dos alunos.

Os veículos receberam os resultados com antecedência suficiente para produzir matérias sobre os dados do IBGE. A numeralha foi bem explicada?

L.N. – Como não estou no dia-a-dia da redação, não saberia dizer.

Se comandasse uma editoria de Economia, qual seria sua orientação para a cobertura desse assunto?

L.N. – Levantar todos os comentários que saíram na divulgação dos dados anteriores da pesquisa anunciada, filtrar todas as ressalvas levantadas por técnicos em relação aos números. Quando os números forem divulgados, ter o manual pronto, com as leituras e ressalvas possíveis.