Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

A construção dos estados mentais

‘Não há nada que eu possa dizer aqui que vocês já não saibam’. Foi com esta frase que o professor Evandro Vieira Ouriques, coordenador do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência (Netccon) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), recebeu a equipe do Rio Mídia para uma entrevista, na semana passada, na sede do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (Pacc), do Fórum de Ciência e Cultura da instituição.

A intenção da visita era conhecer os objetivos da disciplina ´Construção de Estados Mentais Não-violentos na Mídia´, criada e oferecida há três anos pelo Netccon.

Jornalista, cientista político e terapeuta clínico, o professor Evandro falou sobre o tema e ainda expôs o seu ponto de vista sobre a atual sociedade midiática, a partir da Teoria da Comunicação, da Teoria da Cultura, da Filosofia Política e da Psicanálise, que consolidaram metodologias de transformação de atitude criadas por ele ao longo da carreira.

Para Evandro, na sociedade pós-moderna, os estados mentais dos indivíduos (o fluxo de pensamentos e emoções) estão atravessados pelo discurso da mídia, marcado pelo reconhecimento pelo capital. Neste cenário, o mais importante de tudo é mudar, verdadeiramente, de atitude. Segundo ele, repetir inconscientemente os valores dominantes da mídia em nada contribui para o bem-estar de todos no mundo.

Brincando com o nome do nosso site, o professor afirma que é exatamente um rio de mídia que a sociedade precisa e para o qual o Netccon procura contribuir: ‘Precisamos construir, pela força da vontade, um rio de mídia democrático, aberto, plural e que faça com que os indivíduos voltem a pensar por si mesmos, voltem a sentir por si mesmos e possam assim ser a diferença que são’.

Sua entrevista.

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No mundo tecnológico e midiático de hoje, que relação o senhor estabelece entre a mídia e os indivíduos?

Evandro Vieira Ouriques – No livro História das Teorias da Comunicação, o belga Armand Mattelart, professor da Universidade de Paris e um dos mais eficientes críticos do monopólio mundial dos meios de comunicação, diz que, nos dias atuais, a liberdade política não pode se resumir ao direito de exercer a própria vontade. Ele insiste em que a liberdade política reside igualmente no direito de dominar o processo de formação dessa vontade, já que, na maior parte dos casos, ela [a vontade] é capturada por um rio de mídia que atravessa a pessoa ao longo do seu desenvolvimento emocional, educacional, social e histórico.

O que eu estou dizendo é que o fluxo dos estados mentais dos sujeitos, o fluxo dos pensamentos e dos afetos que constituem a subjetividade é desenhado, marcado, impactado pela mídia. Estamos para a mídia como a esponja está para a água. Estamos embebidos por ela, sendo que somos nós que a fazemos e a passamos a tratar como se fosse uma outra coisa. Neste sentido, baseada no capitalismo como verdade absoluta, a organização social se mantém, atualmente, por uma estratégia de dessubjetivação, ou seja, de desespeciação: de perda do caráter de espécie, como provam os atos crescentes e sucessivos de horror com os quais convivemos.

Estamos diante, portanto, de sujeitos não instalados, no qual o que nos fala é um vazamento do inconsciente, a história pessoal e comunitária, racial, de gênero, de classe, etc., dos traumas, abusos, discriminações. Só para dar um exemplo, pesquisas revelam que uma mulher, com 40 anos, já assistiu a cerca de 12 a 15 mil horas de telenovela, resguardados aqui os avanços que encontramos nesta preciosa linguagem.

Hoje, a pessoa sente e pensa por meio da mídia que, em nenhum momento, a ajuda a parar e refletir. A aceleração, por exemplo, que os apresentadores dos telejornais utilizam é incompatível com o ritmo respiratório, metabólico. A respiração fica suspensa. E suspensa, impede que as informações entrem e sejam metabolizadas. Impedem, inclusive, que a nossa mente (no sentido do conjunto de percepções, pensamentos e afetos) tenha tempo de excretar o que não serve. O indivíduo fica dopado pela sobrecarga informacional e pelo choque dissociante e contínuo que ocorre na gangorra de emoções que vai, sem interrupção, de notícias econômicas, políticas e sociais a notícias de que conseguiram salvar dois ou três pingüins ou que determinado time conseguiu derrotar seu adversário.

Neste ambiente, o sujeito, imerso nos dispositivos midiáticos (produção da mídia, instituições de mediação tradicional e práticas sócio-culturais) tornou-se o centro da exibição da potência da cultura tecno-lógica e não de sua própria potência.

Quais são as conseqüências deste cenário?

E.V.O. – Neste ponto podemos recorrer a Charles Melman, por exemplo, autor do livro O Homem Sem Gravidade e fundador da Association Lacanienne Internationale e um dos principais dirigentes da École Freudienne de Paris. Em sua obra, Melman identifica, como decorrência deste cenário, uma nova economia psíquica. Diz ele que a característica dominante da economia psíquica do mundo pós-moderno é a iminência do colapso psicótico. Em outras palavras: o sujeito tende intensamente a acreditar que é o que ele não é; que a vida é o que ela não é; e que ele está fazendo uma determinada coisa quando, de fato, está fazendo o oposto.

Isto fica muito claro na dissociação entre palavras e atos na/da sociedade contemporânea. As pessoas dizem quase sempre o contrário do que fazem ou do que gostariam de dizer. Se Zygmunt Bauman [sociólogo polonês] mostra que estamos na época do amor líquido, é porque vivemos uma era de relações líquidas. No entanto, o que garante o vigor da relação, conseqüentemente, o vigor da comunicação, é exatamente a estabilidade da confiança. Mas o que assistimos é a experiência da traição e da desconfiança. A grande mídia está, em geral, neste estado.

Os produtos e serviços são tributados com valores que não pertencem a eles: solidariedade, amor, confiança, perspectiva de vida, garantia de futuro, tranqüilidade. O que gostaríamos de ter nas relações, em casa e na sociedade, está agregado aos produtos e serviços aos quais acabo de me referir.

Como ao sujeito só são apresentados os valores que dominam a mídia, com honrosas exceções, em especial aquelas concretizadas por comunidades que se utilizam das brechas do discurso, ele apenas, e simplesmente, acredita nas coisas como elas são mostradas, retratadas, apresentadas. Não questiona. Não reflete.

Como diz o cineasta Jean-Louis Comolli em relação ao jornalismo televisivo e ao leitor dos jornais, e permito-me ampliar em relação à publicidade dominante, respeitadas também as exceções, assegura-se ao telespectador de que ele está diante de verdades ‘objetivas’. A ele cabe apenas acreditar. Por isto, acreditar nas tecnologias da informação como garantia para a democratização, como insisto dizer desde a década de 80, é um suicídio, já que os sujeitos encontram-se ´tecnologizados´, porém sem terem efetivado uma mudança de atitude mental.

Prosseguindo com Melman, o sujeito vive na iminência do colapso psicótico, mas dele se defende por meio da perversão. Não a perversão do senso comum que conhecemos, mas a do ponto de vista clínico, aquele quadro em que o sujeito está num estado de adição a um objeto da realidade, dele dependendo para, supostamente, realizar-se como sujeito de si mesmo. É por isto que temos o consumo de drogas crescendo, a violência urbana, o consumo desenfreado de recursos naturais, de comunidades, de minorias, de gênero, de status, de sexo, de objetos, de serviços, de pessoas, de mão-de-obra, de países, de mercados, de empresas, de crianças, de adolescentes, enfim, uma orgia devoradora, que caracteriza a desmesura, a falta de medida que retrata, paradoxalmente, uma sociedade que chegou a este estado em nome da liberdade.

Este estado de perversão leva à fragmentação dos seres humanos, assunto analisado e debatido pelo pesquisador Néstor Garcia Canclini, no livro Diferentes, desiguais e desconectados. Num mundo pós-moderno que se recusa a reconhecer a necessidade imperiosa de seus sujeitos encontrarem um conjunto de valores comuns a todos da espécie (permitindo assim que os indivíduos se re-vinculem psíquica e socialmente), os próprios sujeitos estão mergulhados num estado de corrupção, de violência, de desespero, de horror crescente. E olha que eu não estou sendo pessimista. Estou sendo realista, matemático.

Hoje quem tem R$ 135 mil de patrimônio está entre os 10% mais ricos do planeta. São em dados quantitativos que me baseio e que me impulsionam, me entusiasmam para a necessidade, mais do que urgente, de mudar eu mesmo de atitude, de eu mesmo ser, no sentido Gandhiano, a mudança que eu gostaria de ver no mundo e, assim, ajudar aqueles que estão dispostos a remexerem nas entranhas de seus valores e encontrarem onde escondem, não apenas o seu racismo, mas todas as seqüências mentais que mantêm o dominador no poder.

Como o senhor vê a questão da diferença?

E.V.O. – A defesa da diferença só é democrática quando entendemos que ela só existe de fato na presença sincrônica da semelhança, como mostra de maneira muito lúcida o filósofo Marcio Tavares D´Amaral. A diferença sem a semelhança origina a perda de sentido de comunidade, de espécie. É cada um com seu cada um, como se fala na linguagem popular e que as pessoas repetem para si mesmas, muitas vezes no silêncio do que pensam ser a sua consciência, para legitimar seus atos de corrupção, de violência, de abuso, que nada mais são do que opção criminal. É como eu disse, lembrando Mattelart: o simples exercício da vontade passa a ser confundido com o que viria a ser o vigor da diferença, aquela que só se mostra no vigor do núcleo duro do real que permanece em todo sujeito, quando ele é igual apenas a ele mesmo. Como resultado da vontade dele ser ele mesmo. Melman chega a dizer, e olha que ele está instalado em um super consultório na super Paris, que todos os seus sofisticados pacientes o pagam para ajudá-los a encontrar o que neles é eles mesmos.

É por isto que enquanto defende-se esta pseudodiversidade, a sociedade mergulha estatisticamente no aumento das guerras globais, sejam elas armadas, mercadológicas ou comunicacionais, ou como de fato acontece, tudo isto junto. Os sujeitos estão empurrados para a opção criminal ou patológica. Por isto é que não tenho nada a ensinar a ninguém. Preciso é ajudar a mim mesmo, ajudando aos outros, lembrando o que não posso e não quero esquecer: de que somos mais semelhantes do que diferentes. Senão, como termos um objetivo comum?

Hoje, o único comum dominante é o de consumir e explodir a tudo e a todos. O filme Children of Men [Os filhos do homem, de Alfonso Cuarón] mostra bem isto. Vivendo num mundo, em 2027, em ruína, no qual as mulheres sequer conseguem mais engravidar, o protagonista questiona seu irmão por ele guardar e preservar obras de artes. O protagonista pergunta: Por que você está guardando isso, se o que estamos fazendo vai acabar com todas as pessoas e ninguém as verá? A resposta é a mesma que a maioria das pessoas poderia dizer hoje: eu vivo sem pensar nisto…

Como reverter este quadro?

E.V.O. – É preciso que os sujeitos decidam remover dos estados mentais, por decisão deliberada da vontade, o lixo que pensam ser eles mesmos, voltando a pensar e a sentir o que interessa: o que os mantém vivos, lúcidos, amorosos, alegres, dedicados a enfrentar os conflitos. Precisamos remover todos os estados mentais que tentam sustentar a insustentável lógica da dominação, da produção midiática. Por isto, criamos um programa acadêmico na área de comunicação dedicado justamente ao domínio do processo de formação da vontade.

Para ajudar a mudar esta tendência é que criei esta disciplina: a Construção de Estados Mentais Não-violentos na Mídia, que mostra a profundidade do compromisso que o sujeito tem com o que até então pensava ser o sistema de pensamento vigente na comunicação e na cultura, e como é possível passar a ser comprometido com valores sustentáveis, tornando-se, gradativamente, mais e mais, o vigor destes valores em movimento no mundo.

Quando os jornalistas, os publicitários, os especialistas em marketing, os criadores multimídia, os guerreiros tecnológicos modernos, os hibridizados multiantenados, entenderem que a mudança neste quadro dramático depende da mudança da qualidade da vontade deles, daqueles pensamentos, emoções, fantasias, desejos que aparecem em sua intimidade, em seu relacionamento em casa, onde moram, nas redações, nas agências, com os auxiliares e com os chefes, a ordem informacional do mundo mudará, pelo menos para aqueles que tiverem mudado.

É preciso perceber e compreender que o que vemos e vivemos é exatamente o que construímos. Ou nós mesmos construímos ou nossos antepassados construíram. Que possamos então oferecer aos nossos públicos, desde a intimidade que temos com nossa companheira ou companheiro com que vivemos, uma relação sadia, aberta, uma relação não de covardia, de indiferença, de desprezo, de hipocrisia, de distância, de auto-importância, de vitimização, de vingança, de desconto. Mas, sim, mostrarmos na prática que há variáveis muito diferentes do que apenas pensar que ‘a vida é cruel’, ‘que ser bom é ser bobo’, de que ‘primeiro o meu e depois o dos outros’.

É sintomática, portanto, a recente pesquisa elaborada pela Andi [Agência de Notícias dos Direitos da Infância] que comprova quantitativamente que a mídia não reflete a respeito de si mesma, ou seja, não veicula questões a respeito dela própria. Não é à toa, portanto, que os indivíduos não refletem sobre si mesmos.

Este é o nosso caminho, o objetivo do Netccon. É um passo. É uma tentativa de interromper a experiência da dor. De oferecer a nós mesmos o respeito à nossa criança interna, à nossa alegria de viver, ao vigor da verdade, da compaixão, da disciplina e da pureza. De nos mantermos em diálogo até o limite. E de quando o encontrarmos, sermos capazes de agir sem pestanejar, em nome do bem comum.

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Editor da RioMídia