Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A ética jornalística segundo um velho mestre

Javier Darío Restrepo é um dos mais notáveis expoentes da ética jornalística na América Latina. Colombiano, autor de El zumbido y el moscardón, ainda inédito no Brasil, Restrepo atua há mais de 45 anos na profissão. De passagem pela Bolívia para participar de um seminário sobre o tema ‘mídia, poder e democracia’ naquele país, Restrepo concedeu breve entrevista ao jornal La Razón, de La Paz, publicada na edição de 23/5.


Breve, porém fundamental. Nela, Restrepo enfileira opiniões vitais sobre a defesa da ética no jornalismo. O ponto de partida da conversa foi sobre o uso da primeira pessoa no texto jornalístico. Para Restrepo, esse recurso deve ser restrito às situações em que o jornalista necessita dar um testemunho. Ele cita dois exemplos: ‘Eu estava no momento em que a bomba explodiu’, ou ‘eu estava no momento em que o presidente morreu’.


A temperatura da entrevista aumenta na segunda pergunta, com a discussão de um assunto que, segundo La Razón, é comum na Bolívia: o caso de jornalistas que ingressam na política e depois retornam ao jornalismo como se nada tivesse acontecido. Restrepo põe o assunto em pratos limpos: ‘Aqueles que voltam ao jornalismo depois de passar pela política, o fazem mancando, pois sua credibilidade se enfraquece como jornalistas, já que adiante não se saberá se falam em nome de seus interesses pessoais, de um partido ou se estão reunindo novamente desejo de pular para a política’. Restrepo compara a situação desses jornalistas à infidelidade conjugal. Quando ela ocorre ‘é sempre muito difícil acreditar nas vozes do arrependimento daquele que foi infiel’.


A conversa segue de vento em popa. O terceiro tópico abordado não poderia ser mais crucial, e foi posto nestes termos: a independência financeira de um veículo garante sua independência jornalística? A relação parece lógica, mas Restrepo observa que é ‘parcialmente correta’. Sem recursos, um jornal vive à beira do suborno. Se necessita de dinheiro, pode consegui-lo em troca de uma ‘retribuição’, o que afeta sua independência. O raciocínio, diz Restrepo, vale para os jornalistas individualmente. ‘Um jornalista que não tenha resolvido seu problema de comida, de vestir-se, não pode fazer um jornalismo independente. Poderia até fazê-lo se adotasse atitudes heróicas e, mesmo com fome, cumprisse sua função. Mas isso não é o normal. Isso se faz um ou dois dias, mas não todos os dias’, analisou.


Perguntas e dilemas


La Razón indaga como deve agir um jornalista ético ao perceber que o veículo no qual atua não é ético. Renuncia? Parece que dessa vez Restrepo foi atirado contra as cordas, mas seu argumento é vigoroso. Não faz sentido renunciar, por uma razão prática: o jornalista será substituído por um outro com menos sensibilidade ética. E nesse caso o prejuízo não recairá tanto sobre o meio de comunicação, mas sobre os leitores. ‘O jornalista ético é sempre uma garantia para os leitores, pois lutará para que seus direitos sejam respeitados’, reflete Restrepo.


A pergunta seguinte é tão ou mais desafiadora. Até que ponto um jornalista deve arriscar-se para fazer reluzir a luz da verdade? A resposta podia render caudalosos testemunhos de fé, mas Restrepo é sábio. ‘A linha de risco tem que ser traçada pela própria consciência, e pode ser que a sua linha de risco não seja a minha’, pondera. Ele cita um caso que o tem feito refletir bastante, o do jornalista colombiano Guillermo Cano, assassinado por tornar público, pela primeira vez, os delitos de Pablo Escobar. Mesmo constantemente ameaçado, o jornalista seguiu em frente. ‘Ele havia posto uma linha de risco, e era muito alta’, disse Restrepo. A maioria dos jornalistas pensaria na esposa e nos filhos e concluiria que esta seria indispensável para ele. Sua linha de risco seria certamente mais baixa.


A questão seguinte é no mínimo curiosa, pois considera dois tipos de jornalista: o que trabalha direto na redação e o que sai para a rua. Essa cisma implica éticas diferentes? São distintos os conflitos enfrentados? Restrepo acredita que sim. Porque a partir da redação é muito difícil ver a verdade. Para os que estão na rua, a verdade são os fatos. Vale dizer, o jornalista estaria cara a cara com ela. Além disso, o jornalista que fica na redação tem que se perguntar por que está ali. Seria por facilidade? Porque teme o contato direto com as pessoas? Embora em menor grau, o jornalista que sai em campo também tem seus dilemas. Por estar em contato mais direto com o atrito das ruas, é possível que se questione: ‘Estarei permitindo que minhas emoções sejam mais fortes do que meu compromisso com a verdade?’ Ou: ‘A direção que estou dando à informação resulta em interesse para a sociedade?


O ‘espelho’ do jornalista


Restrepo deixa claro que acredita na supremacia de um tipo de atuação sobre a outra. Por isso o entrevistador não perdeu a oportunidade de explorar melhor o assunto na pergunta seguinte: ‘Até que ponto o contato com as pessoas é importante?’ Restrepo evocou a experiência do celebrado jornalista polonês Ryszard Kapuscinsky (de quem a Companhia das Letras publicou recentemente O imperador) para responder. Segundo Restrepo, Kapuscinsky costuma admitir que não sabe fazer entrevistas. E questionado como é que se vira a respeito, responde: ‘Eu simplesmente converso com as pessoas, e conversar com as pessoas primeiro significa conviver com elas até o ponto em que elas quase não nos notem’. E é assim – diz Restrepo –, sem a influência de elementos alheios e contaminadores, que se chega à realidade. E é dessa forma que a natureza humana se revela.


A crença num jornalismo mais humanizado é a profissão de fé de Restrepo. E não poderia ser diferente. Inquirido sobre a qualidade do jornalismo praticado atualmente, ele reafirma sua posição. Vale a pena transcrever a íntegra de sua resposta:




‘Em geral, o jornalismo de hoje pensa que, com um desdobramento dos elementos técnicos, pode ser bem feito. No entanto, isso deveria ser secundário, pois o jornalismo é feito pelo ser humano, que apela ao mais espiritual do ser humano, que é a sua capacidade de saber. Além disso, está utilizando o mais nobre instrumento que existe: as palavras. Por conseguinte, a aptidão de um jornalista tem que ser basicamente em qualidade humana. Depois é que vem a qualidade técnica’.


Na pergunta final, a respeito da influência dos receptores na informação, Restrepro não tem dúvida: existe a necessidade da intervenção destes como elemento de crítica, como um ‘espelho’ do jornalista. ‘Se há uma necessidade neste momento, é justamente a de converter os receptores passivos em ativos’, respondeu. De que maneira, não explicou. Mas nada disso vai se efetivar sem uma aposta firme na ética. Aí estão as lições de um velho mestre.

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Jornalista, editor do Balaio de Noticias