Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A língua rola solta

Desde a semana passada, a imprensa abre amplo espaço para a polêmica em torno do livro didático Por uma vida melhor, da professora Heloísa Ramos. Trechos como “nós pega os peixe”, “os menino pega o peixe” entre outras expressões mostradas na publicação, que integra a coleção Viver, Aprender, da editora Global, foram intensamente discutidas pela mídia de todo o país em reportagens, colunas e artigos. A celeuma foi causada pela distinção que a autora estabelece no livro entre a norma culta e a linguagem falada. Em uma das passagens mais criticadas do capítulo “Falar é diferente de escrever”, Heloísa Ramos diz: “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”.

Distribuída a mais de 480 mil alunos pelo Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos, a obra foi adotada por escolas públicas em todo o território nacional. Em meio ao barulho da mídia e ao debate levantado na comunidade acadêmica, a autora garante que obedece aos Parâmetros Curriculares Nacionais estabelecidos em 1997 pelo Ministério da Educação (MEC) para o ensino fundamental e para a educação de jovens adultos. E defende que o conceito de “correto e incorreto” no uso da língua portuguesa seja substituído por “adequado e inadequado”. O MEC afirmou que não irá recolher os exemplares já fornecidos aos alunos mas, após os protestos, a autora disse que pode rever alguns trechos da publicação em uma nova edição. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (24/05) pela TV Brasil analisou a cobertura da mídia no episódio. 

Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro os professores Sérgio Nogueira e Deonísio da Silva. Em Brasília, participou o também professor Marcos Bagno. Deonísio da Silva, colunista deste Observatório, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, escreveu mais de 30 livros e assina colunas sobre Língua Portuguesa na imprensa. É pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá.  Sérgio Nogueira é formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Assina a coluna “Dicas de Português” no portal G1, o boletim “Língua Solta” na Rádio Bandeirantes de São Paulo, é consultor de Língua Portuguesa do Jornalismo do sistema Globo. Marcos Bagno é professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB). Autor premiado, Bagno tem se dedicado à produção de obras voltadas para a educação. Seus estudos no campo da Linguística se concentram nas questões da crítica ao ensino da língua portuguesa nos moldes tradicionais.

Norma culta e língua falada

Em editorial, Dines sublinhou que a língua portuguesa falada no Brasil está cada vez mais distante da escrita. Para o jornalista, o debate em torno do livro é salutar e deveria tornar-se constante, uma vez que “a própria mídia tenta usar a norma culta quando escreve, porém mostra-se indulgente e até relapsa ao usar os meios eletrônicos”. Dines ressaltou que, em Portugal a diferença entre a norma culta e a língua falada nas ruas, mesmo entre as camadas mais populares é “quase inexistente”: “Isso nada tem a ver com o poeta Camões e o padre Vieira, que também são cultuados por aqui. É que na escola ou no liceu português investe-se na correção do idioma, porque lá a gramática é vista como ferramenta para tornar a comunicação mais efetiva.

Esta é a questão: "os livro" não fere apenas a concordância, fere a compreensão”.

A reportagem exibida antes do debate ao vivo ouviu a opinião de especialistas no assunto. Para Maria do Pilar Lacerda, secretária de Educação Básica do MEC, muitos jornalistas que criticaram enfaticamente a obra sequer leram a publicação. “Quando as pessoas começaram a ler o livro, começaram a entender que o livro não defende que se fale errado, mas explica que existe uma forma coloquial dali, daquela comunidade, daquela cultura, de se falar, e que existem outras formas”.

O livro, na avaliação da representante do MEC, conduz o aluno – neste caso, um jovem ou um adulto – a refletir sobre a sua forma de falar sem humilhar, discriminar ou excluir o estudante que cometa erros de português. A representante do MEC sinalizou que parte da mídia afirmou de forma equivocada que o MEC pretendia “que todos os brasileiros falem errado”. “Eu posso dizer, como cidadã, que este é um jornalismo que não contribui para melhorar a informação das pessoas”, avaliou a secretária.

“Cinismo” social

Heloísa Ramos constatou que a mídia “estranhou” o trecho do livro onde afirma que a concordância nominal e verbal nem sempre é observada na sua totalidade na linguagem popular. “Não dissemos, em nenhum momento, que é para escrever assim [errado] na norma culta. Nós não estamos ensinando a escrever assim, estamos admitindo que, na fala, exista esta possibilidade, esta variante”, assegurou a autora.

O escritor e colunista Affonso Romano de Sant’Anna ponderou que todos cometem erros gramaticais, inclusive os jornalistas. Atualmente, na avaliação do escritor, há uma espécie de “cinismo” na sociedade: “Na cultura contemporânea, a exceção virou a norma. A ruptura virou a norma. E isto, é claro, acontece na gramática também”.

Para Sant’Anna, o livro mostra as duas vertentes − a falada e a escrita − mas ensina, de fato, a norma culta. “Existe um sistema, uma ordem na sociedade. Todo este papo de que não há limite, não há ordem, não há fronteira, não há regras, é um papo da moderna contemporaneidade que deixa as pessoas confusas”, analisou. A imprensa, para Affonso Romano, amplificou opiniões sem fundamento: “Eu voltei um pouco às fontes para ver o texto, o que tinha sido dito e, na verdade, são coisas que estão sendo ditas na linguística há muito tempo”.

Norma culta para todos

João Ubaldo Ribeiro, autor consagrado e colunista do jornal O Globo, defendeu que se mostre ao usuário da norma “não-culta” que a língua falada por ele tem tanta dignidade quanto qualquer outra, mas que o ensino da norma culta prevaleça: “Não apenas como privilégio de alguns, mas que a norma culta seja compreensível, acessível e utilizável por todos os brasileiros, que continuarão a falar seus outros dialetos”, disse Ubaldo.

Para o advogado Sérgio Bermudes, a linguagem de um livro didático tem que ser correta. Embora a sociedade hoje não viva mais sob padrões linguísticos rígidos, é preciso manter o hábito de falar com correção. “Quanto mais correta a linguagem, mais ela traduzirá o pensamento e efetivará a comunicação. Se nós começarmos a esparramar um linguajar diferente, nós teremos uma outra língua”, alertou Bermudes.

Linguista e professor, funções diferentes

O professor Evanildo Bechara, autor de uma das mais importantes gramáticas adotadas no país e integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL), avaliou que o livro Por uma vida melhor ensina boas lições aos alunos, mas comete erro ao confundir a função de linguista com a de professor: “O linguista estuda a língua como a língua funciona naquela região, naquele meio social, naquele momento histórico. Já o professor de português, não. O professor de português estuda a língua na sua produção ou na sua norma culta”.

Bechara avaliou que a imprensa se ateve apenas a um aspecto da obra. “Foi apresentada a frase ‘nós pega o peixe’, que a professora declara linguisticamente correta e que é uma frase correta porque aparece em um determinado momento. Mas em um livro didático aquilo soou como se fosse a lição permanente, em lugar de a imprensa ter mostrado que aquilo foi um momento, por sinal, ao meu ver, um momento infeliz, na hora de escrever um capítulo muito bem escrito sobre língua padrão”, disse Bechara.

É bom falar de livro

No debate no estúdio, o professor e escritor Deonísio da Silva disse que acha “bonito” a mídia tratar de “livros e autores” porque, de maneira geral, os jornais promovem um “ocultamento” deste tema. Na avaliação de Deonísio, o professor que usa o já restrito espaço da aula de Língua Portuguesa para tratar de questões da Linguística, disciplina que não pertence ao Ensino Médio, presta um desserviço ao povo brasileiro. Deonísio acredita que é preciso democratizar a norma culta e não promover a inclusão na língua sem o esforço do aluno para aprender o correto: “A gente não se incluí na língua culta sem estudá-la. E está faltando muito no Brasil a relação ‘bunda-cadeira-hora’. Nós queremos facilitar, mas aprender é difícil”.

A trajetória do escritor Machado de Assis(1839-1908), fundador da ABL, foi lembrada pelo professor como um exemplo de inclusão na norma culta. De origem humilde, negro, gago e portador de epilepsia, Machado de Assis precisou se adaptar a rígidos padrões gramaticais para ingressar na sociedade literata de sua época. “Ele teve que aprender aquela língua que não era a dele. Ele era lá do morro”, sublinhou Deonísio.

Machado de Assis “se apropriou” da norma que não conhecia e acabou por se converter em mestre daqueles que usavam a língua culta para excluí-lo da sociedade. “Esta á a verdadeira inclusão: você tirar o sujeito da ignorância”, declarou. Deonísio da Silva ressaltou que o professor de Língua Portuguesa é pago pelo Estado ou pela iniciativa privada para ensinar este disciplina aos que precisam aprendê-la.

O escarcéu da mídia

A atuação da imprensa neste episódio foi duramente criticada por Marcos Bagno. O professor da UnB chamou a atenção para a “leviandade gigantesca” da mídia e a “profunda ignorância” jornalistas e fontes que têm comentado o teor deste livro didático nos jornais. “As pessoas estão falando sem ter lido e sem saber o que acontece na educação brasileira há mais de 20 anos, quais são as diretrizes da nossa educação hoje em dia e, principalmente, o que é ensinar Português hoje em dia. As pessoas estão ainda no século XIX, fazendo comentários do século XVIII, enquanto a educação brasileira, o Ministério da Educação e os livros didáticos já estão no século XXI”, censurou Bagno.

A mídia, na avaliação de Bagno, age como se tivesse “descoberto a pólvora”, quando o tratamento da variação linguística em sala de aula é absolutamente corriqueiro. E todos os livros de Língua Portuguesa disponíveis hoje no mercado brasileiro apresentam pelo menos uma parte dedicada ao tema. “Não é surpresa para ninguém, a não ser para uma mídia que é profundamente ignorante e desinformada”, disparou o professor.

Risco de acomodação

Sérgio Nogueira defendeu que a luta contra o preconceito seja um dever de todo educador e explicou que diversos livros já trataram deste assunto, mas a obra Por uma vida melhor foi mais ousada. Na avaliação do professor, o livro é louvável ao ensinar que há preconceito linguístico na sociedade. No entanto, Nogueira tem o receio de que a diferença entre a língua falada e a escrita possa ser mal aproveitada caso não haja um treinamento adequado dos professores. “Pode haver uma acomodação e é este o temor que nós temos”, alertou. Nogueira destacou que o ensino da língua padrão está sendo mostrado como um “pecado” por defensores deste livro e denunciou que os professores que ensinam a norma culta estão sendo ridicularizados.

“Não sei o porquê desta agressividade que muitas vezes existe contra aqueles que, de alguma forma, tentam manter esta língua padrão o mais próxima possível da fala. É óbvio que nós temos variantes sociais, culturais, regionais. Todas são válidas, todas merecem respeito. Agora, por que não ensinar a língua padrão?”, questionou. Para Nogueira, a distância entre a fala e a escrita no Brasil se mantém porque o ensino da Língua Portuguesa nas escolas não é satisfatório.  

Uma convergência é possível?

Dines levou ao debate no estúdio um dos temas tratados do editorial: a semelhança entre a língua falada e a norma culta em Portugal. O jornalista comentou que, naquele país, os diversos extratos da sociedade falam corretamente e lembrou que se “deliciava” ao ouvir o português correto dos motoristas de táxi nos oito anos que viveu em Portugal. Dines questionou se, no Brasil, a norma padronizada e codificada poderia se aproximar da linguagem falada.

Marcos Bagno discordou e sublinhou que o português brasileiro culto e contemporâneo é diferente do falado do outro lado do Atlântico: “Em Portugal, se fala uma língua diferente da nossa. A nossa só se chama português por razões históricas. Mas, 500 anos depois, o português brasileiro já é diferente do português europeu”. Dines contestou: na sua avaliação a língua dos dois países é a mesma. E insistiu que há uma convergência inquestionável entre a norma culta e a língua falada em Portugal que facilita a compreensão.