Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A mídia adora lacunas

O carnaval como festa organizada foi inventado pela imprensa diária da antiga Capital Federal, o Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século 20. Depois vieram os governos (sobretudo ditaduras) e, em seguida, o jogo do bicho a dar-lhe um caráter institucional. O carnaval hoje é um poder – informal, difuso, gigantesco, imbatível.


Ultrapassou o tríduo inicial do velho Entrudo (domingo, segunda e terça) confundindo-se com o início da Quaresma. Ninguém repara na heresia. No carnaval vale-tudo, não há limites, esta entidade é incontrolável: converteu a segunda-feira em feriado, a solene quarta-feira de cinzas em resíduo de folia e agora ocupa a semana inteira, marco efetivo do ano que teria começado em 1º de janeiro.


A indústria da mídia, sobretudo a impressa, adora o carnaval: é um formidável hiato e, além disso, incansável fábrica de famas. Essencialmente visual, desobriga-se de compromissos com a inteligência. Redações em regime de plantão, edições mirradas e escassamente distribuídas fazem de Momo uma espécie de divindade contábil – nenhum balancete fica no vermelho no mês de carnaval.


O leitor não se queixa, cúmplice e complacente, aceita qualquer coisa, inclusive esta lacuna: o feriadão carnavalesco é a sua forma de desforrar-se das exigências. Alforria cidadã.


País cultua o intervalo


Sustentada pelas cervejas e refrigerantes, a TV tem audiências e conteúdos garantidos. Desfiles suntuosos, Broadways ambulantes, lantejoulas, adereços, ouropéis, mulheres peladas, celebridades acessíveis, alegria acionada por controle remoto. O carnaval de rua, o frevo e a marchinha, apesar da gloriosa tradição e dos novos incentivos, não resistirão ao tsunami do rebolation, o rebolado sem graça, idiotice plastificada, global.


Na TV paga, a seleção de filmes seguiu os critérios da TV aberta, os programadores acham que no carnaval todos são iguais, não há segmentos nem nichos, todos estão com os receptores ligados e o espírito desligado.


Como sempre, quem pena é o pessoal do rádio, obrigado a cobrir tudo em todos horários. Também penam os ouvintes, obrigados a ouvir notícias desconexas, repetidas, vazias, comentários tolos, entrevistas inúteis, bordões desgastados produzidos por estagiários sonâmbulos e esgotados. Enquanto os jornais têm liberdade para castigar a incontinência dos mijões, os rádiorepórteres contentam-se com infantis alusões ao xixi. Injusto.


Até há pouco, o carnaval era também uma oportunidade para gozar as benesses da vida urbana: cinemas com bons filmes, lugar fácil nos restaurantes, ruas sem trânsito, convite ao convívio. A homogeneização é mais barata e a mídia adora nivelamentos, sobretudo por baixo. Tudo foi para os shopping centers e suas calóricas e feéricas praças de alimentação.


No fim de semana (21 e 22/2), Momo evaporou-se da mídia impressa, sumiu, como se nada tivesse acontecido nos oito dias anteriores. Nenhuma avaliação, análise ou simples remissão. Normal: depois da saturação, a omissão.


O Brasil é sábio, sua mídia mais ainda: aproveitou a religião para fazer o culto do intervalo.