Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A mídia como serviço público

O Rio assistiu ao anúncio de que seus vereadores abriram mão de ter carros oficiais, privilégio que os dias de hoje não comportam mais. Só que isto não aconteceu por pressão dos eleitores ou de atos públicos. A mídia caiu de pau e aos poucos houve um recuo que levou a isso. Por outro lado, a tragédia na região serrana do Rio, meses atrás, foi explorada além do limite da insensibilidade da dor de milhares de vítimas. Ainda por cima desencadeou-se um movimento midiático por doações que produziu uma quantidade excessiva de donativos, acima da capacidade de absorção dos serviços das organizações assistenciais, o que provocou armazenamento inapropriado, desperdício e culminou em escândalos variados de desvios. Esses exemplos, para o bem e para o mal, me fazem pensar na frase de Alberto Dines: “A sociedade é maior do que o mercado. O leitor não é consumidor, mas cidadão. Jornalismo é serviço público, não espetáculo.”

Afinal, qual é a importância da mídia e, principalmente, como usá-la na dose certa e dentro de princípios éticos para superar mais de meio século de sérios problemas na nossa cidade e em nosso país?

O Rio tem uma oportunidade única de se reinventar e a mídia, em geral, tem se comportado de uma maneira que beira a irresponsabilidade. Entre outros absurdos, surgiu uma propaganda apoiada em belas imagens anunciando que o otimismo voltou, a alegria voltou, o dinheiro (do petróleo) voltou, a paz voltou, os títulos (futebolísticos) voltaram, o carnaval de rua voltou, o orgulho voltou, “os olhos do mundo estão voltando” (sic), ou seja, as coisas boas estão retornando e o café “xis” também. Só que as notícias cotidianas apontam outra realidade totalmente distinta. Por que duas realidades tão diversas da cidade são apresentadas? Citando Abraham Lincoln, “pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo”.

O cobertor curto

Nos jornais lemos declarações como: “Febre de compra de imóveis no RJ”. E a matéria explica que nem com os preços rivalizando com os de Nova York, Tóquio ou Paris têm contribuído para as vendas reduzirem o ritmo. Segundo executivos do setor, a cidade passou dez anos em degradação, o que fez com que poucas pessoas comprassem imóveis. Tudo aconteceu de uma vez: Copa, Olimpíadas e UPP. Segundo um incorporador, houve o retorno de compra de imóveis para os filhos. A valorização começou a atrair investidores de outros estados e até estrangeiros. Apartamentos passam por até três donos antes de ficarem prontos. Em determinadas áreas nobres o futuro prédio é todo vendido antes da derrubada da construção original. Com isso, o mercado carioca foi o que mais se valorizou em todo o Brasil (44%), quase o dobro de SP e MG (26%). Com a alta acelerada do Rio, já se fala em bolha, até porque é reconhecida a forte presença de especuladores. Mesmo assim, aqui ainda não foi noticiada nenhuma transação como aquelas que ocorrem nos grandes centros, como o ucraniano que comprou um apartamento em Londres por US$ 222,5 milhões ou uma princesa do Golfo Pérsico que pagou US$ 96,9 milhões por uma mansão com pátio, jardim e capela na margem esquerda do rio Sena. Como ainda não entramos nesse mercado do mundo real, pode-se avaliar o movimento atual como meramente especulativo? Em SP, segundo o Secovi, houve uma queda de venda em março de 61,8% ante o mesmo mês de 2010 e retração de 16,2% na comparação com fevereiro.

No prédio em que o ucraniano milionário comprou o imóvel existe uma estação do metrô. Em São Paulo, a mídia está promovendo um carnaval por causa da estação que deixou de ser feita por causa de tal gente “diferenciada”. Aqui no Rio, por mais incrível que possa parecer, a situação é a mesma, com Leblon e Ipanema preferindo não ter estações pelo mesmo motivo e o silêncio midiático é ensurdecedor. Por que essa diferença de comportamento?

A cidade está tentando emergir de uma crise de mais de meio século que levou à falência dos serviços públicos e privados. O cobertor curto é geral e produz situações como: a venda de veículos novos dobrou em cinco anos, mas a rede autorizada não seguiu este crescimento, o que significa mais um gargalo para o morador/consumidor. Ipanema abriga obras do PAC, construção do elevador com mirante no Pavão, Pavãozinho, instalação de uma unidade de polícia pacificadora. O asfalto e o morro convivem com problemas como lixo nas encostas e suas mazelas, explosão de dengue (até agora o número de casos já é oito vezes maior que no ano passado) e esgoto a céu aberto na Rua Nascimento Silva. Se lá esta assim, imaginem o que não acontece em outras localidades que não tem poder de denunciar seus problemas pela mídia.

O “negócio da China”

As UPPs desencadearam um covarde revide do tráfico: a venda do crack e do oxi, refugos da fabricação da cocaína e que nunca tinham sido colocados no mercado por conta de, digamos, um “acordo de cavalheiros”. Estas substâncias são extremamente viciantes e levam seus usuários a comportamentos extremamente agressivos, e está se disseminando a uma velocidade explosiva, o que desencadeará mais violência e aumento dos pequenos delitos em nossa cidade. Para se combater gargalos e situações como a da nova droga é absurdamente necessário ter um projeto que envolva toda a sociedade, porque só dessa forma será dada uma resposta rápida e à altura, como aconteceu, por exemplo, em Nova York.

“Hoje na praia, já se cobra entre R$ 40 e R$ 50 mil o metro quadrado. A gente aumenta, vai testando…”Será que o autor desta frase tem consciência do que está falando? Sendo que tais declarações se repetem por todos os bairros. Esse mercado é o mesmo que ficou quase dez anos estagnado e agora quer deliberadamente provocar uma bolha e regredir? E a mídia, “apoia” isto?

É noticiado que há uma demanda aquecida por imóveis comerciais de pequeno e grande porte, que o mercado deveria trabalhar com uma taxa média de vacância entre 6 a 9%, mas que, segundo pesquisas, a taxa estaria em apenas 0,5%. Semana passada foi publicada uma análise na qual se vê outra realidade: a taxa de vacância de prédios comerciais de alto luxo foi de 6,6% no primeiro trimestre. Subiu 2,9 pontos percentuais sobre 2010. Sinal de que cresceu a entrega de edifícios novos (Cushman & Wakefield). O salto do valor do aluguel foi de 44% para R$ 131/m². Ou seja, com estes preços, que em alguns casos são pagos à vista antes até mesmo da construção do edifício (caso da Petrobras com a W Torre), por um contrato de cinco anos se entrega um imóvel inteiramente pago, com vinte meses de lucro e retorno eterno em aluguel após o final do contrato, o que podemos chamar pela famosa alcunha de “negócio da China”. Até quando esses modelos serão sustentáveis? Se a cidade se eternizasse com qualidade de vida, apoiada em uma atividade como, por exemplo, o turismo, isso seria para sempre, como em Nova York, que está para entregar um bairro novo para um milhão de pessoas.

Indicadores de bem-estar

Mas, e o Rio? Qual será a realidade após 2016? A da mídia ou a das ruas? É interessante lembrar que após os eventos esportivos (e midiáticos), chegará à conta e que ela terá de ser paga (leia-se: lei de responsabilidade fiscal). Como não se fala claramente em aumento de arrecadação nem em reindustrialização, poderemos ficar na mesma situação que hoje Salvador se encontra, caoticamente paralisada por não ter suas contas aprovadas. Montreal, por exemplo, só acabou de pagar a dívida olímpica de 1976 em 2007. Os empresários, que passaram quase uma década sem poder vender imóveis, e os donos, que viram seus apartamentos desvalorizarem anualmente, querem este cenário de volta? A própria mídia, cujos repórteres, jornalistas, redatores, editores e executivos também são moradores da cidade, tem consciência de como ela irá ficar se perder uma chance única como esta de reinventar a cidade com qualidade de vida e de forma autossustentável?

Acabaram de fazer uma pesquisa com 6.720 cariocas para traçar o perfil do consumidor e descobrir oportunidades de negócio. Descobriram que o trânsito (82% diz que piorou) é um problema tão grande quanto emprego, segurança e saúde. Ué, como diria o popular das ruas, no mundo real não melhorou nada, até piorou? Então que otimismo é esse? Por que a mídia vem apresentando maravilhas para nós? Não deve ser à toa que o perfil dos artigos publicados mudou da água para o vinho, propondo debates de novas ideias e até articulistas falando em preocupação com os despossuídos, após o Observatório da Imprensa publicar análises e críticas ao que vinha sendo apresentado nos veículos à população.

Essa questão é tão preocupante que a prometida demolição do Elevado da Perimetral foi adiada “sine dia”, porque se isto acontecer se estabelecerá o caos no trânsito e dificilmente o prefeito será reeleito, o que é fundamental para que os projetos apresentados evoluam. Em Barcelona, onde a cidade foi praticamente “destruída” para ser reinventada com qualidade de vida, como o prefeito conseguiu ser reeleito?

Lá existiu um planejamento de longo prazo, que começou uma “acupuntura” urbana para envolver a população na transformação da cidade, antes de garantirem as Olimpíadas. Por exemplo, foram construídas cento e cinquenta pequenas praças por toda a cidade antes de começarem as grandes obras. “Todos os cidadãos viam uma nova Barcelona perto de sua casa”. No Rio é necessário minimamente apresentar um projeto que una toda a sociedade, projetando um futuro com qualidade de vida e aumento da renda per capita, diminuindo o abismo social para que todos o apoiem. Aliás, pesquisas mundiais comprovam que todos os indicadores de bem-estar, sejam relativos tanto à saúde física e mental, quanto a questões sociais, como delinquência juvenil, gravidez adolescente, desempenho escolar, criminalidade, entre muitos outros, estão invariavelmente correlacionados com o nível de desigualdade social.

Debater um master plan

Pois bem, e o que fizeram no Rio? Apresentaram um projeto chamado Porto Maravilha, que ainda não foi detalhado e que prevê a demolição de um viaduto para reconstruir subterrâneo, pasmem, por motivos estéticos, ao custo de iniciais oito bilhões de reais. Por que a mídia não cai de pau se não faltam motivos para isso, como apontei em artigo anterior? São fatos e estão documentados pela mídia…

As coisas não acontecem por caso e os fatos comprovam isto. A China, por exemplo, com sua política de atração das multinacionais conseguiu que das quinhentas maiores no mundo, simplesmente quatrocentas e setenta se instalassem lá, porque isso interessava ao governo chinês, que tem que gerar empregos de forma maciça para atender ao seu monstruoso índice de natalidade. Todos os tigres asiáticos investem para atrair empresas que gerem empregos para seus cidadãos, porque dessa forma conseguem produzir riquezas, aumento da renda per capita e, principalmente, incremento da arrecadação, permitindo investimento no social (educação, saúde etc.) Lá existe uma política pública de longo prazo visando a atração de empregos locais com ênfase em uma âncora pré-definida com desenvolvimento sustentado. E aqui querem dar um “jeitinho”?

Vamos deixar claro, após 2014 começarão a ser pagas as contas da Copa, em 2016 as das Olimpíadas, os royalties do petróleo estão na corda bamba e os argumentos para mantê-los também, a tese do ciclo virtuoso foi para o vinagre e não há previsão de aumento da arrecadação, fora outras dívidas que a prefeitura está fazendo com o Banco mundial, BNDES, FGTS e outras instituições, porque não está entrando dinheiro novo. Ao mesmo tempo, acontecerá o encerramento do boom imobiliário, das obras do PAC e das obras de mobilidade urbana, com grande diminuição de vagas na construção civil e seus diversos efeitos no mercado de trabalho. Não está na hora de se debater um master plan para o Rio que convença a sociedade a participar e contribuir para uma reinvenção do Rio com uma economia revitalizada, autossustentável, com qualidade de vida e revigorada socioeconômica, cultural e ambientalmente?

São Paulo tomando a posição do Rio

O negócio de turismo no Brasil é muito complicado e vou usar como exemplo o que pensa o setor paulista com relação à Copa do Mundo. Em um artigo para a Folha de S.Paulo, um diretor explica por que São Paulo não pode ser sede da Copa:

“O grande desejo político da cidade de São Paulo de ser sede da abertura da Copa do Mundo de 2014 causa tanta estranheza quanto o primário desejo político de a cidade de ser sede do que quer que seja nessa Copa. São Paulo é uma cidade que vive muito do turismo de negócios. A Copa do Mundo é normalmente realizada nos meses de junho e julho. A ocupação média dos hotéis na cidade de São Paulo no mês de junho, de 2005 até 2010, é de 66,11%; no mês de julho, também de 2005 a 2010, é de 65,83%.”

No detalhamento das médias acima, encontramos desde a média mínima mensal, de 62,10%, até a máxima, de 74,75%. Considerando-se que, hoteleiramente, um número desse percentual significa que, para ter essa média mensal, o hotel tem que ter ocupação plena durante a semana, questionamos onde estão os quartos de hotel disponíveis na cidade que possam acomodar os tais turistas esportivos que apareceriam para os jogos da Copa de 2014. Não é significativo o número de turistas que vêm apenas para passear, indo a teatros, museus ou qualquer coisa parecida. São Paulo é base do turismo de negócios, de feiras, de eventos e de serviços. Vamos além neste estudo da futura invasão de turistas esportivos na cidade.

Todos sabemos que esse tipo de turista, quando viaja, para onde quer que seja que vá se realizar uma Copa do Mundo, é quase um turista mochileiro. Tem como objetivo assistir aos jogos de futebol gastando o menos possível. Ou seja, não é o tipo de turista que vai cobrir o buraco financeiro enorme causado por possíveis cancelamentos de congressos e de feiras na cidade. Todo mundo já sabe que os hotéis que foram construídos na África do Sul estão apenas com 20% de ocupação depois do final da Copa. Ou seja, construir hotel para a Copa não dá futuro a ninguém. Pelos dados oficiais da ocupação hoteleira da cidade de São Paulo, não há sequer disponibilidade hoteleira para atender a jogos comuns da Copa, quanto mais para a abertura desse evento.

Que tal o pensamento desta diretoria?

É muito interessante lembrar que até 2003 seu mercado hoteleiro e a atividade turística estava às moscas porque havia uma oferta muito superior à demanda e que essa situação se inverteu documentadamente em apenas três anos, inclusive com São Paulo tomando do Rio uma posição que sempre foi sua, a de principal receptor do turismo internacional de negócios. Se esta cidade que não tem a menor vocação natural para a atividade, pode se dar ao luxo de desprezar toda a mídia e o charme de abrir uma Copa ou sediar uma etapa, imagine o que acontecerá ao Rio se desenvolver a atividade com seriedade.

Um serviço público

Os empregos gerados hoje no Rio são em setores de baixa agregação de valor, que vão gerar pouco em relação ao PIB. Já com uma indústria turística forte os empregos além de se eternizarem, agregam uma cadeia empregatícia de vasto espectro. O anúncio de um master plan é o que falta para se dar partida na atração do setor industrial no sentido amplo, pois, cadeias produtivas inteiras se formariam. O grande detalhe é que com o turismo haverá uma mudança de comportamento empresarial, porque o lucro é muito rápido e exige profissionalismo extremo, inovação e influenciará todos os setores imediatamente com a rapidez dos resultados obtidos. Em cinco anos a realidade do Rio será condizente com a de qualquer cidade global.

O grande detalhe é: o que será feito não compete em nada com o que a prefeitura quer realizar e sim dá um tremendo suporte, além de possibilitar a união de toda a sociedade, o que será o catalisador da reinvenção da cidade em curto prazo.

O turismo é vital para a economia da Espanha e emprega diretamente cerca de 10% da força de trabalho. Se formos computar os empregos indiretos, seus efeitos se estenderiam por mais de metade da população. O país recebe anualmente cerca de 92 milhões de estrangeiros, quase o dobro de sua população, de 47 milhões.

Será que alguém acredita que os eventos mundiais atraídos impactarão a economia em bilhões? Estudando países que sediaram campeonatos esportivos internacionais, pesquisadores analisaram, por cinco anos, os possíveis impactos da Copa na economia, na sociedade e na configuração urbana da África do Sul. A conclusão geral foi que os benefícios materiais da Copa são decepcionantes. Os países-sede arcam com os prejuízos e com a manutenção de obras e que elas quase nunca são reaproveitadas depois que a festa acaba. É praticamente impossível recuperar o capital investido. Na Copa que envolveu o Japão e a Coreia, a Fifa previu que iriam um milhão de pessoas. Somente 60 mil foram contabilizadas.

Será que não está na hora de a mídia refletir para enxergar que o seu futuro está amarrado ao do Rio? Que o seu comportamento será preponderante para um futuro de qualidade apoiado em um master plan que uma toda a sociedade? Que ela seja um serviço público para todos nós cidadãos, é o que esperamos e precisamos.

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Engenheiro e coordenador do Acorda Rio