Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A semântica da carona remunerada

N.R. O autor expressa no artigo opiniões que não necessariamente são compartilhadas pelo Observatório da Imprensa.  Publicamos o texto porque o tema é polêmico e a diversidade de enfoques é um princípio que defendemos intransigentemente.

No início, considerei a opção do Haddad a mais correta, quando regulamentou os aplicativos que permitem a veículos particulares trafegarem como táxis. A prefeitura de SP havia definido que os aplicativos de transporte individual público deveriam ser cadastrados e precisariam pagar impostos, incluindo o INSS. No entanto, bastou regulamentar para que a empresa Uber se rebelasse, afirmando que não funciona como um serviço de táxi, insistindo que oferecem apenas uma ponte para “carona remunerada”.

A pressão do aplicativo, que possui um poderoso aporte financeiro oferecido por grandes corporações internacionais, parece ter feito estremecer as convicções do Prefeito de São Paulo, que recuou e agora revisa o seu próprio decreto na intenção de formular outra legislação que atenda exclusivamente às expectativas do Uber. Instaurou uma consulta pública. Os taxistas legais, que já haviam concordado com a proposta, levaram uma calça arriada.

Ceder à fatia esnobe da sociedade e cair no clichê de desqualificar motoristas de táxi, são fatores que revelam vícios rotineiros de uma classe média colonizada, sempre frágil às novas doutrinações do mercado. Não percebem, quando não se trata de política, que estão se deixando levar por uma campanha monstruosa, apoiada pelas mídias de aluguel, para beneficiar um aplicativo de transporte que lucra 20% sobre todo o trabalho dos seus agregados, não se compromete com direitos trabalhistas, não colabora com a manutenção dos veículos e subtrai a fonte de renda de uma massa de profissionais já estabelecidos para privatizar o que hoje é controlado por licença pública. Além disso, determinam os valores a serem cobrados do usuário, sem nenhum controle ou parâmetro oficial que proteja o passageiro. Não, o Uber não quer oferecer uma opção ou liberdade de escolha, ele quer se impor.

Jornais denunciam as agressões pontuais de taxistas contra os carros e motoristas do Uber, mas não fazem alarde sobre a violência e o desrespeito com que o Uber trata as cidades que invade. Uma empresa séria apresentaria um projeto aos governos, aguardaria autorização para atuar, não trabalharia à margem da lei, violentando a ordem tributária e urbana de Estados e Municípios. Taxistas pagam tributos, seguem a legislação e são rotulados como máfia. É o estupro da semântica e de vulnerável.

Semana passada, assistindo a um filme com o Robert De Niro e a Anne Hathaway (Um senhor estagiário), no meio da história um dos personagens faz propaganda do Uber. Veja, uma empresa que pode se divulgar dentro de Hollywood, que tem grana para isso, pode tudo. Pode até fazer lavagem cerebral em metrópoles inteiras. Parecem os Borgs, de Star Trek: “resistir é inútil”.

Os táxis de rua nunca foram configurados como um serviço de luxo, funcionam como transporte individual público, que precisa seguir regras de segurança e respeitar as leis e tributárias. São os táxis especiais, também cadastrados, que prestam um serviço mais sofisticado. Exigir luxo dos táxis comuns é de uma trivialidade extrema, bem ao jeito de uma classe média deslumbrada e com valores neoliberais. O táxi comum é um serviço pragmático, que deve atender de forma competente e sem firulas.

O que decepciona é ver cidadãos progressistas, ditos de esquerda, mas que se posicionam de forma neoliberal quando é conveniente prestar satisfação aos membros da classe média desvairada da qual fazem parte. Gente que classifica taxistas como, máfia, porcos fedidos, ignorantes, tagarelas e aproveita para fazer piadas com os evangélicos. Não criticam um serviço, mas manifestam um preconceito de classe.

Não, não são os táxis que constituem a máfia do asfalto. Evite o ridículo, não diga isso. Não se esqueça que as máfias é que costumam não seguir regras, não se submeter ao pagamento de tributos e preferem sempre agir nos subterrâneos da lei. E se você condena as agressões de um ou outro taxista revoltado com a situação que o angustia, você está certo, agressões físicas não se justificam. Mas abra os seus olhos para enxergar o massacre moral que toda a categoria está sofrendo pela a pressão exercida por um capital que deturpa e esculpe os cérebros desavisados.

Existem falhas nos táxis comuns? Falhas podem ser corrigidas quando o serviço é subordinado à fiscalização e às regras em vigor. Os táxis comuns trabalham sob uma legislação rigorosa, que não os beneficia com méritos quando demonstram qualidade, mas que os pune quando cometem desvios. O aplicativo de “carona remunerada” não é fiscalizado pelas secretarias municipais de transportes, no Rio de Janeiro possui aval da justiça para circular impune, aval conquistado através de advogados caríssimos, luxo que a classe dos taxistas não pode se permitir. O afamado aplicativo não está interessado em cumprir exigências que não sejam as que ele próprio cria. Talvez, por isso, tenha escolhido como cor de bandeira o preto. Tom preferido dos piratas, dos vilões e até do Estado Islâmico.

O aplicativo dos carros pretos não quer ser uma opção, ele quer ser a única opção. De preferência, com suas próprias regras. Seguem a cartilha da ganância pelo lucro que enfraquece e extermina a concorrência estabelecida.

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Alexandre Coslei é jornalista e escritor