Wednesday, 11 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

As calmarias e as tempestades

Logo no início da segunda quinzena de novembro, mostram-se ‘claros sinais’ (Folha de S.Paulo, 14/11/2005) de que a situação na França, explosiva desde 27 de outubro, está próxima da volta à normalidade. Dizem os despachos noticiosos que ‘o número de carros queimados e prisões, principais termômetros da violência, caíram na madrugada de domingo em relação à de sábado (374 contra 502 e 212 contra 206, respectivamente)’. Tanto assim que, para o chefe da Polícia Nacional, Michel Gaudin, ‘as coisas devem se acalmar de vez muito, muito em breve’.


A mídia deixou passar, sem maiores comentários, essa confiança numa calmaria anunciada por parte do chefe da polícia. Na realidade, para vários observadores – dentre os quais Luis Fernando Verisssimo, em sua coluna de O Globo –, os acontecimentos na França parecem escapar à compreensão da mídia. Apesar das muitas entrevistas com autoridades, com os habitantes da banlieue parisiense e dos artigos assinados por especialistas, jornalistas e leitores revelam-se algo tontos com as manifestações de violência no coração de um país de Primeiro Mundo, dotado de um sistema previdenciário várias vezes mais benevolente do que o norte-americano, e respaldado por todo um discurso público de ‘liberdade, igualdade e fraternidade’.


Por isso talvez valha a pena juntar fragmentos esparsos de declarações originárias tanto de populares quanto de alguns analistas refinados, para tentar remediar o que o inglês Frank Furedi chamou de ‘a incapacidade da imaginação européia de encontrar um sentido nos acontecimentos atuais’.


Da parte popular merece registro a frase de um morador de Clichy-sous-Bois, periferia ao norte de Paris onde começaram os distúrbios: ‘Os distúrbios não me incomodam. Quando sinto que tem um carro queimando, saio para ver. Aliás, não sei por que se impressionam. Queimar carros sempre foi a coisa mais comum na periferia de Paris’ (Folha, 13/11).


Ângulo anacrônico


A frase colhida pela Folha nos ensina de imediato duas coisas. A primeira é que a mídia francesa se cala sobre fatos sociais indicativos de um profundo mal-estar social nos subúrbios da Cidade Luz. A segunda é que existe uma insuspeitada conexão entre essa realidade francesa e a de cidades brasileiras como o Rio de Janeiro e São Paulo.


No Rio, queimar ônibus é prática recorrente no cotidiano, embora os números sejam, ao que parece, insignificantes diante dos hábitos parisienses. Lá é o automóvel, símbolo da ascensão e da mobilidade individual nas classes abastadas; aqui, o ônibus, imagem de uma mobilidade coletiva cada vez mais penosa. Pode-se pensar aqui nos traficantes de drogas como agentes motivadores dos incêndios de transportes coletivos em certas situações de crise, mas a observação direta dos acontecimentos mostra uma participação bastante ativa de adolescentes e mulheres.


Ainda a partir de um ponto de vista compreensível por parte dessas populações periféricas, não há como deixar de ver nessa conexão o problema espacial, que os teóricos da modernidade tendem a considerar como um ângulo anacrônico, senão reacionário. É que, para os sujeitos da ideologia do progresso, ser moderno é abandonar a dimensão do espaço em função do tempo, é viver afinado apenas com a História. O espaço e a comunidade seriam ficções do conservadorismo retrógrado, senão da direita política.


Escala global


Não se dá, assim, maior atenção à disposição espacial da Paris histórica, edificada à maneira de um escargot, com seus arrondissements numerados e, por meio da especulação imobiliária, constituídos em barreira progressiva à integração territorial daqueles que se guetificam na banlieue, sem maiores esperanças de inserção social, uma vez que hoje é a cidade, e não a fábrica, o grande vetor de sociabilidade. De uma economia sem dinâmica de crescimento (logo, sem geração de empregos novos) como é a européia, não se pode esperar muita coisa em termos de agregação de valor humano.


É o mesmo tipo de desatenção que se vem dando historicamente à urbanização da cidade do Rio de Janeiro, marcada desde o início por uma irrefletida segregação territorial dos mais pobres. É isto o que faz da favela uma verdadeira solução para a questão da distância entre os locais de habitação das classes economicamente subalternas e a oferta de empregos (serviços) por parte dos abastados. Mas aí se encontram ao mesmo tempo as raízes dos problemas da exasperação das diferenças de consumo, do descontrole urbanístico, da proliferação dos ilegalismos e das formas crescentes de violência. Aqui, aliás, diferentemente de Paris, pode-se multiplicar por dez o número dos excluídos que se contabilizam na França – e sem as mesmas benesses previdenciárias.


Se nos detivermos para pensar um pouco sobre esses fenômenos e sua tendencial conexão em escala global, os distúrbios não deixam de fazer sentido, e dificilmente poderemos compartilhar do otimismo do chefe de polícia parisiense quanto às coisas se acalmarem ‘de vez’.


A imprensa também já começa a tranqüilizar visitantes e investidores com anúncios de calmaria. É preciso, claro, não excitar as consciências, nem estimular os sustos coletivos. Mas a grande tarefa jornalística será agora sustentar uma informação coerente sobre as tempestades que se vêem latentes sobre a calmaria.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Biblioteca Nacional