Monday, 09 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Calma que o Rivotril é nosso

Nas últimas duas semanas, comecei a estranhar uma coisa: um número muito maior que o habitual de pacientes vinha fazer perguntas e/ou mesmo sugerir se o medicamento Rivotril não seria o melhor indicado para ele. Só há pouco descobri que a fonte desse estranho pico de interesse foi uma matéria publicada na revista Superinteressante, denominada, justamente, ‘Nação Rivotril’. Fui atrás da mesma e consegui ler com algum cuidado o conteúdo, que considero merecer uma série de considerações.

O título ‘Nação Rivotril’, creio eu, foi uma paródia do livro – depois filme – Nação Fast-Food, que começou por querer analisar especificamente esse ramo de negócios e alimentação nos EUA, mas acabou por encontrar uma série de outras coisas muito mais sérias. Mas não é nosso objeto de análise no momento, claro.

De uma maneira geral, a matéria me pareceu clara, em linguagem acessível. Foram entrevistadas pessoas competentes e ligadas à área, trabalho de arte apropriado para o público leitor e assim por diante. Mas nem sempre as coisas acabam por sair tão bem.

Primeiro grande quesito: Rivotril não é ‘nome’ de remédio apenas, é marca comercial, registrada, do laboratório multinacional Roche. Seu composto ativo, que atende aos que pretendem obter a mesma medicação como genérica, é o clonazepam. Sempre fico preocupado com essa questão: provavelmente, Rivotril é mais conhecido pelas pessoas que seu composto químico, mas usar sua marca comercial esbarra em confiltos de interesses no mínimo eticamente preocupantes. Não estou demonizando a indústria farmacêutica: é que o Rivotril, a exemplo do Viagra, da Pfizer, do falecido Vioxx, da Merck Sharp, e do Prozac, da mesma Pfizer, remetem a um fabricante e não permitem a lembrança de fabricantes de similares ou dos próprios genéricos.

Nem tudo que é novo é melhor…

Entra aí uma questão mais ampla, que é a da confiança nos genéricos (funcionam tão bem quanto os de referência?) ou similares (será que existem apenas no Brasil mesmo?), mas da vinculação de uma matéria jornalística a um produto que possui uma marca registrada. Mas é possível obter o mesmo princípio ativo licitamente. Verdade seja dita, os norte-americanos costumam fazer uso do nome comercial de medicamentos em artigos científicos e livros-texto sem cerimônia (como aspirina como sinônimo de ácido acetil-salicílico, quando Aspirina é marca da Bayer). Na área acadêmica, discordo dessa postura: os alunos devem aprender os nomes farmacologicamente corretos e, na prática com pacientes, no fim do curso médico e na residência, passam a ter contato com os nomes comerciais, mas antes, não.

O uso do nome comercial gera dúvidas: seria propaganda indireta? Isso pode ser questionável, mas não deixa de ser estranho: o Rivotril, como a matéria bem ilustra e informa, é medicamento controlado e barato, mas alguns anos atrás aconteceram fenômenos específicos que não sei se foram tornados cases de marketing: propaganda em outdoors do Prozac (a pílula da felicidade, como se dizia) e depois o mesmo com o Viagra, em boom pela mídia. Ocorre que os citados, sem falar no Rivotril, que é nosso assunto atual, são vendidos apenas com retenção de receita médica. Isso pode gerar desde frustração para quem acha que apareceu o medicamento milagroso para seus males e quer se valer da complicadíssima situação que é o esporte brasileiro da automedicação e não conseguir levar seu objeto de desejo da farmácia para casa, até o aparecimento das vias alternativas para obtenção de medicamentos controlados.

Há vários anos atrás, aparaceu uma nova categoria de medicamentos para determinada doença neurológica. No meio médico, já se acompanhavam as pesquisas referentes ao assunto e o medicamento foi lançado comercialmente primeiro na Europa e depois nos EUA, antes de chegar ao Brasil. Mas sua divulgação pela mídia foi tão grande (com seu nome comercial, claro), que os pacientes ficavam alucinados à espera do maná – especialmente, me lembro de paciente minha que, embora bem controlada com a medicação habitual, passou a querer o tal novo medicamento mais que um carro de luxo alemão ou um iate. Tanto fez, que conseguiu que alguém lhe enviasse um frasco do mesmo da Holanda. Precavida, antes de usar o remédio, trouxe o mesmo a meu consultório – interessantemente, a bula era toda em holandês e, como faltei às minhas aulas desse idioma no primário, não entendi nada a não ser o nome farmacológico e o comercial, que correspondiam ao medicamento verdadeiro, além da caixa ser do laboratório fabricante. Com meu aval, ela ululou de alegria (se acharam estranho o termo, leiam os livros de Douglas Adams…) e foi embora. Dali a a uma semana me telefona, chorando: as novas tábuas da lei não fizeram efeito e ela teve que voltar ao esquema de tratamento convencional, que ainda era melhor. Nem tudo que é novo é melhor…

Maneiras de driblar o controle

Mas voltemos à revista: ela nos informa que o Rivotril (clonazepam) é o segundo medicamento mais vendido no país, atrás apenas de um anticoncepcional que ainda tem o incentivo de ser obtido via SUS. Essa é informação é meio estranha, pois o clonazepam também é encontrado através do SUS, embora não com o nome comercial patenteado – dado curioso é que o clonazepam pertence à família dos benzodiazepínicos, medicamentos usados para controlar ansiedade e em alguns casos de epilepsia; alguns deles são pré-anestésicos e também indutores do sono. A lógica deveria ser a de se pensar que o Brasil é campeão de vendas no segmento dos benzodiazepínicos – mas não é. Corretamente, a revista relata que estamos na metade aproximadamente dos países consumidores desse tipo de medicação. A explicação dada me parece razoável: o Rivotril é barato e seu genérico mais ainda. Faltou a revista citar que os postos de saúde (SUS) o distribuem gratuitamente também, contra retenção de receita.

A revista dá uma informação importantíssima, mas não a detalha muito: como pode o Rivotril ser tão vendido e desejado, tendo até comunidades nas redes sociais e coisas semelhantes, se é controlado? E, a princípio, os especialistas mais indicados para prescrever o mesmo seriam os psiquiatras e os neurologistas. Mas o acesso da população aos psiquiatras é muito difícil – há as conhecidas dificuldades no sistema público, que são semelhantes mesmo nos planos de saúde. E nas consultas particulares, além de caras, pode ser demorado conseguir uma primeira entrevista com profissional correto da área. De modo geral, outros médicos acabam por receitar o clonazepam, o que não é proibido, de maneira alguma. Mas muitas vezes é feita uma receita por um favor ou…entra-se no terreno do jeitinho brasileiro. A revista toca no assunto, mas merece uma atenção muito maior.

Medicação controlada – realidade ou fantasia? Evidentemente, existem medicamentos que devem ter um controle maior em relação à sua dispensação. De uma maneira até muito rigorosa, até antibióticos deveriam estar nesse grupo, pois seu uso indiscriminado pode levar a resistências bacterianas. Contudo, via de regra, o controle se faz mais em relação àqueles que podem afetar as funções neuropsíquicas.

Sempre há, contudo, maneiras de tentar burlar as coisas: até uns tempos atrás não havia necessidade de ser nenhum ganhador de prêmio Nobel para descobrir maneiras de driblar o controle. Por exemplo, o médico receitava um dado medicamento e anotava três caixas na receita. O paciente via o preço, achava salgado e levava só uma. Duas eram liberadas do estoque – o farmacêutico sério as reconduzia ao setor de medicamentos controlados, mas havia (e como!) os que as deixavam à parte, para quem pagasse mais e não tivesse receita.

‘Cuidado, a polícia vai ficar de olho’

Isso praticamente já acabou, pois há uma série de procedimentos que o comprador tem que assinar caso não leve a quantidade total prescrita pelo médico, além da comunicação digitalizada da receita com número do lote pela farmácia à Anvisa pela internet. Mas mesmo assim, as coisas ainda acontecem. Provavelmente por excesso de buroacracia, de mentalidade cartorial e não por falta de mecanismos.

Vejamos: os medicamentos controlados podem ser prescritos das seguintes formas:

a) antidepressivos (por exemplo), no receituário A, que é a padronização do receituário branco do médico ou hospital, carbonado (em duas vias), uma para a farmácia, outra para o paciente.

b) ansiolíticos (como o Rivotril), no receituário B, o azul, que é uma espécie de folha de talão de cheques; há um padrão, o médico ou hospital tem que mandar imprimir e a Vigilância Sanitária fornece a numeração.

c) redutores de apetite, no receituário B2, azul, em tudo igual ao acima citado; só que serve apenas para as categorias de medicação exemplificadas.

d) entorpecentes, receituário C, amarelo. Essa é categoria estigmatizada: nela entram desde estimulantes, derivados de anfetamina, até medicamentos para dor, como morfina e similares. O receituário é fornecido a conta-gotas pela própria Vigilância Sanitária. O medo de ter o receituário amarelo inibe muitos médicos de o possuírem; por outro lado, como até na Vigilância o pessoal assusta quem vai pedir o mesmo (‘cuidado, a polícia vai ficar de olho’), quem chega com esse tipo de receituário na farmácia é olhado de modo estranho por balconistas e farmacêuticos. Há pacientes que se sentem tão constrangidos que acham que vão chamar a polícia antes de vender a medicação.

Presunção de presunçoso

Para que tantos tipos diferentes de papel? Os azuis até têm uma curiosidade a mais – o B1 é para benzodiazepínicos e o B2 para inibidores de apetite, mas o receituário impresso é B e B2; não se imprime o B1 (virtual cartorial).

E, claro, há o indefectível carimbo, sem o qual o mundo não anda. O assombrado carimbo com nome e número de CRM do médico é feito em qualquer esquina, de bancas de jornal a papelarias. Ninguém pede documento algum. É só pagar de dez a vinte reais que qualquer pessoa sai com o sacrossanto carimbo que todas portas abre. E sem controle algum. Não seria mais lógico exigir a identificação legível do nome do médico e da instituição (consultório, hospital) e o número do CRM igualmente de fácil leitura? Mas não: há a exigência de algo que qualquer um pode mandar fazer.

Curiosidades jurídicas: não há lei que obrigue o médico a usar carimbo. Existem normas, portarias e assemelhadas, que são hierarquicamente inferiores a uma lei. E já que constitucionalmente ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa desde que conste em lei, pelo direito ninguém poderia obrigar o médico a usar o carimbo. Mas qual a saída? Convencer os burocratas de mente estreita? Esqueçam. Fazer birra e não carimbar? Quem vai sofrer é o paciente. Levar o assunto à apreciação do Poder Judiciário? Bem, há grandes chances de sair uma sentença definitiva mostrando a todos que ninguém pode obrigar o médico a usar o carimbo. Mas certamente tudo será analisado, além do juiz singular, pelo Ministério Público e não tenho dúvidas que os recursos chegarão até o Supremo Tribunal Federal. Com tanta coisa atulhada no Judiciário, apenas um insano pensaria em acionar esse caminho, de fato, para resolver a questão. E mais: os próprios juízes, ao assinarem suas sentenças, não usam carimbos…

E se o médico perder o carimbo, tem que fazer boletim de ocorrência, comunicar ao CRM etc. Mesmo assim, se aparecer alguém usando indevidamente seu nome, mesmo com a comunicação prévia aos órgãos competentes, no mínimo ele responderá a algumas sindicâncias. Afinal, no Brasil todos são culpados até prova em contrário. Presunção da inocência? Não. Presunção de presunçoso.

Campeões de Rivotril

Uma saída mais simples: um único modelo de receituário, com identificação legível dos dados, assinatura idem (a análise grafotécnica não é melhor que um carimbo caso haja alguma dúvida?). Talvez em duas vias. Guardar digitalizado em arquivo, talvez mandar para a Anvisa. Mas sem as maluquices atuais.

E isso inibe mesmo o uso indevido de medicamentos? O ora iluminado Rivotril que tecnicamente só pode ser vendido contra apresentação do receituário azul B (ou B1 virtual…), se tem comunidades no Orkut, é por que existem meios e mais meios de conseguir o mesmo. Há até uma arte na matéria mostrando coisas como bolsa de amiga, caixa de remédios da mãe, conhecidos que emprestam uma caixa…sem falar naqueles que comercializam ilicitamente essas coisas. Mas para esses, certamente quanto maior for a burocracia, maior a confusão e mais facilmente se burla a lei.

A matéria realmente abordou um assunto superinteressante, trocadilho incluso. Mas usou nomes comerciais em demasia, não aprofundou a questão do controle e venda e mesmo não informou como as coisas se processam em outros países. Mas eu deixo o assunto por aqui. Não somos os campeões mundiais de futebol, mas sim, de tomadores de Rivotril. Dessa maneira, calma que o Rivotril é nosso – depois de escrever esse artigo, vou tomar o meu. E até à próxima.

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Médico, mestre em Neurologia pela Unifesp