Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Carta Capital

TELEVISÃO
Nirlando Beirão

Uma medalha para o Faustão

‘Estão implicando com as camisas do Fausto Silva. É como reclamar daquelas camisas do Nelson Mandela. Elas, num caso e no outro, emolduram um estilo.

Nelson Mandela ficou décadas e décadas numa prisão. Ao sair, decidiu assumir liberdade plena até no guarda-roupa. O Faustão está numa prisão, mas busca se safar ao exprimir livremente seu jeitão muito pessoal de ser e de atuar. Só homens de personalidade são capazes de, no escarcéu de uma inusitada mas proposital policromia, dizer ao mundo: dane-se.

Talvez seja até mais simples. Talvez eles gostem verdadeiramente daquele figurino. Mandela, com suas estampas de musselina que flutuam; e o Faustão, agora a bordo de camisetas pólo com apliques de letras e de números que dão a impressão de que ele acabou de sair dos aparelhos de supino e peitoral de uma academia. O Faustão de camisa social de listras e punhos dobrados não existe mais faz algum tempo.

Se o domingão da Globo se arrasta, o Faustão se renova. Ele, com seu afinado pulmão de barítono, é o segredo sedutor daquele horário quase sempre entrecortado pelo soluço tedioso de uma partida da Série A. Até a intromissão o Faustão sabe administrar. Logo estará de volta como se fosse um vendaval de perspicácia e de inteligência a bafejar a sonolência domingueira da família brasileira.

Tevê desgasta de verdade, ainda mais se você está no ar há vinte anos, numa insana competição de gugus e dadás. É dura a vida de Fausto Silva – e o ibope, se vacilar, é capaz de lhe tirar o sono e provocar pesadelo. Há também quem lhe cobre, num repente de nostalgia, a espontaneidade debochada de seu Perdidos na Noite, na Band, uma espécie de Saturday Night Show com ginga e dendê. Mas a Globo é a Globo e o domingão é o domingão – o que cabe a Faustão é recorrer, em prol da lucidez, à sua invencível ironia. Fausto Silva ri de todo mundo, inclusive do Fausto Silva.

A televisão costuma ter um problema de auto-imagem. Mesmo para quem sempre esteve ali, não chega a ser o veículo de melhor prestígio. Não por acaso, há atores de inegável talento na telinha que, tão logo terminam a novela, saem correndo para aplacar sua mauvaise conscience num palco de teatro, nos braços de um Ibsen ou de um Shakespeare.

O Faustão não precisa disso. Termina o trabalho, pega o avião e na noite seguinte estará, feliz da vida, jantando no L’Ambroisie da Place des Voges, em Paris.’

 

 

MÍDIA & CULTURA
Rosane Pavam

Buñuel para todos

‘Esta colunista está surpresa e agradecida com a repercussão ao que escreveu na semana anterior. Ser ouvido, e ainda comentado, é o que qualquer um pode esperar. Fiquei com a impressão de que aprendi pelo menos uma coisa depois de tanto movimento. Se desejar que o leiam, palavra a palavra, um colunista de internet brasileiro deverá falar sobre futebol e televisão. Estes não são só assuntos. São regalos, prazeres, quando não religiões.

O bravo colunista aventurado nestes temas será avaliado (eventualmente agredido) por leitores de variados perfis, não importa para que veículo escreva. Mas é preciso acertar no personagem de interesse total. Ninguém, lamento dizer, conhece-o de antemão. Tenho a impressão de que o escriba deverá desistir de enfocar Julio Cortázar ou Franco Moretti se quiser receber comentários em enxurrada. Há um motivo para isto. O leitor sacrificado pela luta da sobrevivência mal terá tempo de ler sobre situações e pessoas aparentemente pouco urgentes como estas…

O que acontece comigo, psicanalistas meus, se gosto dos fracassados? Dos lúcidos, esquecidos? Sou da opinião que não há mal em falar do que ninguém espera. Os leitores merecem. Desejo Cortázar a eles, ou Luis Buñuel, o diretor de cinema espanhol que encerrou a gente dita civilizada naquele casarão de O Anjo Exterminador e a tornou impossibilitada de sair. É um acaso que eu opte por um assunto que pareça urgente, como o da semana passada, sobre esta nossa nova espécie de príncipe Rainier, e deite reflexões.

Na verdade, o personagem que escolhi não me pareceu, enquanto discorria sobre ele, nem Rainier nem urgente. Fiquei muito à vontade em descrevê-lo em meu linguajar, que um leitor inteligente denominou ‘pós-carnavalesco’. Eu estava algo impressionada com aquele programa a que assistia pela primeira vez. Resolvi escrever. Não me interesso normalmente pelo mônaco das televisões.

E jamais pensei que o trono da realeza fosse de fato real, que dele pudessem emanar fluidos de regozijo, como vi acontecer. As pessoas que aprovaram o que escrevi, e elas constituíram imensa maioria, temeram até que eu criticasse o príncipe diante do próximo e saísse prejudicada do episódio. Tentaram me proteger, e eu as agradeço por isso. Onde estamos?

Era como se eu vivesse em uma espécie de ditadura, embora não sentisse pertencer a uma. Comentar o que exibe uma emissora sob concessão pública ainda me parece uma coisa normal. Apenas, é preciso que ressalte, dispenso conviver com alguns reis. E acho que só se pode falar em unanimidade nos casos específicos de um Dorival Caymmi, nosso enorme minimalista.

As pessoas têm sede de falar no espaço de comentários das colunas, envolvem-se com alguém que lhes dê motivo, no caso da semana passada, eu. Mas há muitos outros escribas que parecem provocar as pessoas, mesmo que não o desejem. Um colunista deste site tinha uma cara desanimada quando me disse que, sim, lia estes comentários, por vezes tão tristes, mas só quando estava de bom humor.

Já eu os leio sempre, embora às vezes, também, os julgue tão tristes. Geralmente me divirto e frequentemente me emociono com o que leio. Tento olhar o que os comentários refletem pelo melhor ângulo. Para mim, as pessoas, em primeiro lugar, dispõem-se a escrever, e não importa que o façam no calor da hora, raramente mal: elas não estão acomodadas, as pessoas pensam e se indignam como eu.

Alguém que me tomou por destemida pediu que eu não receasse; não receio, leitor muito caro, apenas me intrigo. Há quem queira se promover no espaço do comentário, e isto também me parecerá peculiar, um pouco comovente. Eles não terão com quem falar, nem quem os procure para uma publicidade específica?

Minha atitude imediata ao ler os comentários é destacar aqueles que negam o berço esplêndido, como prega nosso hino nacional, e recusam o ‘país da sobremesa’ identificado por Oswald de Andrade. Aqui só se pode ser doce, leve, feliz, como no principado? E por quê? Lembro-me que alguém me perguntava sobre minha amargura. Por que tanta amargura, Rosane Pavam? É engraçado, fiquei tocada com o questionamento. A risada é meu lema, leitor.

Mas é verdade que me canso da resignação adocicada e da insignificância de um programa de auditório que poderia, em lugar de fazer o que faz, estimular nosso pensamento, nossa crítica. Alguns leitores destacaram que o pobre gosta de assistir ao show porque ele o atende, senão financeiramente, do ponto de vista do entretenimento, já que o pobre não paga tevê a cabo. Penso que até por este motivo seria maravilhoso se lhe oferecessem coisas melhores na tevê aberta. E por que coisas melhores não renderiam dinheiro para ações sociais?

Picapau pode estimular a criação mais do que imaginamos… Além do mais, desconfio que grande parte do público principesco não é pobre. O filósofo Henri Bergson disse que só éramos capazes de rir daquele que não se parecesse conosco. A classe média se diverte. Uma parte dela até mesmo assina tevê a cabo em casa enquanto se fixa nos maneirismos transcorridos no castelo.

Os programas que ridicularizam o pobre existem há alguns anos. Pois é: já não deveriam ter parado de existir? Enquanto existirem, acharemos normal que os homens de vocabulário seco, desprovidos de fama e dinheiro, corram feito loucos na arena do ridículo em busca de alguns tostões que construirão suas grades de alumínio. Somos sinistros quando nos acomodamos.

E um bom Buñuel para todos nós.’

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