Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Circo de horrores e mentiras

A Rede Bandeirantes de Televisão já recebeu inúmeros prêmios do mercado pelo bom jornalismo que tradicionalmente executa. Mas parece-me que os valores estão mudando lá pelos lados do Morumbi, em São Paulo, capital. Chega a ser vergonhoso para a classe jornalística saber que profissionais da informação trabalham para colocar no ar um produto de tão mau gosto. O programa Brasil Urgente, apresentado por José Luiz Datena, todos os dias a partir das 17h30, é um verdadeiro circo de horrores e mentiras.

Notícias sensacionalistas e imagens gravadas como se fossem ‘ao vivo’ têm um só objetivo: atrair a audiência e segurar o telespectador pelo maior tempo possível. Sinceramente, não sei se podemos classificar o programa apresentado por Datena como telejornal. Na verdade, o que nos parece é que o estúdio transformou-se em uma delegacia de polícia. O âncora faz papel de delegado, de modo a interrogar famílias para saber os detalhes de um crime.

Nesta última semana dois casos chamaram minha atenção. O primeiro surgiu logo na segunda-feira (11/5). ‘Um verdadeiro furo de reportagem!’ Uma menina teria sido esquartejada por pessoas próximas à família e o corpo teria sido enterrado em diferentes localidades de uma cidade no interior de SP.

‘Coloca o passarinho aí!’

Um bom telejornal policial daria destaque ao fato, até porque essa é a linha editorial de um produto televisivo assim denominado. Mas o que dizer de um programa que passa a desenvolver este único crime por três dias, durante duas horas, de um apresentador que faz questão que seus repórteres apresentem detalhes da crueldade, de um GC (gerador de caracteres que fica no rodapé do vídeo) que apresenta frases do tipo ‘Menina é esquartejada e seus membros são enterrados pela cidade’ ou ‘Garota esquartejada poderia ter sido alvo de magia negra’.

Já na quarta-feira (13/5), o Brasil Urgente transformou-se em uma partida de futebol. Uma manifestação na capital paulista deu a chance para que Datena pudesse expor seus dotes enquanto narrador esportivo. Por volta das 18h30, o apresentador anunciou que não haveria mais intervalo comercial até o fim do programa e a partir daí começou o circo. Cada nova imagem era tratada como jogador que, com belos passos, está prestes a marcar um gol. Imagens gravadas ganhavam o logo ‘ao vivo’, um mesmo helicóptero fazia imagens do local, mas Datena intercalava tomadas e dizia a seus telespectadores que duas aeronaves sobrevoavam a região em conflito. O pior de tudo é que imagens de um suposto segundo helicóptero já haviam sido exibidas minutos antes como ‘Band 1’. Referências à concorrência também eram constantes, ‘coloca o passarinho aí, quero ver se tem coragem’, referindo-se ao desenho do pica-pau exibido pela Rede Record no horário.

‘Imprensa continua chegando atrasada’

Estas evidências nos levam a uma nova discussão, que pode ser entendida por meio desta citação que peço licença para parafrasear. ‘As sociedades desenvolvidas passaram dois séculos lutando para garantir irrestrita liberdade de informação. Agora, quando a democracia plena é inquestionável, chegou a hora de questionar o que deve ser divulgado. A palavra de ordem era `Publique-se´. Agora é outra: `Vale a pena publicar?´ Antes, o compromisso era furar o bloqueio censório do autoritarismo para promover o esclarecimento público. Agora, em plena era da informação (ou do furor informativo), o compromisso é com o bem-estar a sociedade.

Este é um compromisso na esfera individual, questão de consciência, independe das regulamentações e códigos da esfera pública. […] Jornais movidos pelo vale-tudo do sensacionalismo, ensandecidos pelo Amok do Furo, dispensam treinamento profissional, qualificação pessoal, critérios, chefias, maturidade, experiência. […] A imprensa brasileira continua chegando atrasada. Breve, chegará depois do seu próprio enterro’ (Obs: esta citação está em um artigo publicado por este Observatório,).

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Jornalista, Pindamonhangaba, SP