Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Como a imprensa cobriu o aumento dos deputados

A decisão de quase dobrar o salário dos deputados não era exatamente algo inesperado – mas, a julgar pelo timing da cobertura, pegou os jornais de surpresa na quinta-feira (14/12).

Sua primeira menção, no noticiário monitorado pelo Deu no Jornal, foi em 16 de novembro – com as menções em tom de folclore a um texto do jornal espanhol El País que classificava de ‘afortunados’ os deputados brasileiros por todas as vantagens que recebem. O martelo foi batido na noite de 14 de novembro, quinta-feira. A cobertura, a partir de sexta, foi intensa. Mas intensidade de cobertura nem sempre indica uma cobertura de qualidade.

Os jornais em boa parte limitaram-se a reproduzir as mesmas informações que perderam a chance de publicar antes (quantas Assembléias Legislativas vão entrar de carona no aumento e como isso se reflete na previdência dos deputados, por exemplo) e a entrevistar especialistas para lamentar o fato. O Correio Braziliense reproduziu na edição de domingo a imagem de uma pilha de cartas de leitores sobre o aumento.

Veja a evolução:

 

[Atenção: parte das reportagens do final de semana não estão disponíveis ainda no Deu no Jornal, então o gráfico acima não reflete bem a cobertura dos dias 16 e 17. Será atualizado.]

Muitas vezes, só a cobertura da imprensa dissuade nossos representantes de tomar decisões impopulares. Foi esse o caso recente do projeto de controle dos acessos à internet, por exemplo. O fato estava quicando, mas só virou notícia na última hora.

Por que isso acontece? Algumas hipóteses práticas e observações sobre elas:

1. Decisão ainda não tomada não é notícia? Há exemplos em contrário na cobertura de outros assuntos. O resultado da investigação da PF sobre o Dossiê Sanguessuga, por exemplo, era uma decisão não tomada e foi noticiada. (Ainda que com precipitação sobre as conclusões.)

2. Era uma questão burocrática demais? A cobertura atual não é muito diferente do que seria uma boa cobertura prévia.

3. Era um mês de tantas notícias que não valia a pena abrir um novo front cansativo? Parece-me ir por esse lado a explicação.

Pautas virgens

Em jornais anglófonos que conheço – cito aqui o New York Times, The Guardian, Financial Times e International Herald Tribune – apenas assuntos excepcionalmente fortes, como os primeiros dias pós-11 de Setembro, ganham mais do que uma reportagem bem-feita por dia. Acho interessante, porque libera equipe e espaço para fuçar mais quintais.

Dificilmente os jornais brasileiros conseguem cobrir mais de um grande assunto por vez. Enche-se páginas e mais páginas com esse assunto, mobilizando praticamente a equipe inteira para isso. Informações se repetem e se contradizem. Fica difícil coordenar uma boa cobertura de qualquer assunto desse jeito (o que em parte explica os desencontros na cobertura do apagão aéreo). Em pouco tempo, o assunto fica cansativo para um leitor descomprometido com ele – o que significa mais ou menos a maioria absoluta dos leitores.

Esse é um costume muito brasileiro e bastante complicado porque desvia os repórteres de olhar para outros assuntos. Isso, muitas vezes, significa abster-se de olhar para a frente. Embora o assunto mais importante do dia, hoje, seja o aumento dos deputados, o resto dos assuntos no mundo político não deixou de funcionar. O Estado de S.Paulo mostrou no sábado (16/12): quando saem dos holofotes, as CPIs deixam de ter resultados relevantes.

Foi o que houve com a dos Sanguessugas – ela funcionou bem até entrar o período de campanha eleitoral; depois, foi ladeira abaixo. Compare o relatório parcial, de quando ela era o ‘assunto do dia’, com o relatório final, de quando a pauta do dia eram as contas eleitorais. Não precisa nem ler. Olhando apenas a extensão do material dá pra notar a diferença.

E nunca é demais lembrar que não se trata apenas de assuntos federais mal cobertos: as esferas estadual e municipal continuam existindo, praticamente virgens de cobertura em boa parte do tempo. E é com essa miopia do monotematismo que os praticantes de malfazenças e tomadores de decisões impopulares certamente contam.



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Um costume a manter

[Publicado no blog do Deu no Jornal, 19/12/2006]

O Supremo Tribunal Federal suspendeu por unanimidade o alto e auto-aumento dos parlamentares. Em boa parte, o Supremo levou em conta a indignação dos eleitores manifestada nas telas, páginas, ruas e até em facadas nas costas de deputados e correntes nas pilastras do Senado. Claro, as excelências podem apresentar um novo decreto legislativo com o aumento. Mas já se puxou o tapete dos nossos representantes eleitos.

Não foi a primeira vez em que isso aconteceu. No começo de novembro, a insatisfação manifestada pelos cidadãos derrubou da pauta de votações um projeto de lei polêmico que exigia a identificação completa dos usuários da internet. Se voltar o filme para alguns meses antes, vai-se ver a torrente de e-mails pré-eleição solicitando a lista dos maus políticos em quem não se deveria votar. Vai-se ver aí, também, a raiz do sucesso do nosso Projeto Excelências, que traz a ‘ficha corrida’ dos nossos representantes.

No século 19, o autor anarquista Mikhail Bakunin escreveu o trecho abaixo no artigo ‘A Ilusão do Sufrágio Universal’:

‘É verdade que, em dia de eleição, mesmo a burguesia mais orgulhosa, se tiver ambição política, deve curvar-se diante de sua Majestade, a Soberania Popular. Mas, terminada a eleição, o povo volta ao trabalho, e a burguesia, a seus lucrativos negócios e às intrigas políticas. Não se encontram e não se reconhecem mais. Como se pode esperar que o povo, oprimido pelo trabalho e ignorante da maioria dos problemas, supervisione as ações de seus representantes? Na realidade, o controle exercido pelos eleitores aos seus representantes eleitos é pura ficção. Se, no sistema representativo, o controle popular é uma garantia da liberdade do povo, é evidente que tal liberdade não é mais do que ficção.’

É claro que ele se referia ao que havia no século 19. Hoje, porém, temos ferramentas para efetivamente exercer controle popular sobre os representantes eleitos. Esse controle só continua sendo ficção hoje porque é exercido muito esporadicamente. Questão de costume.

Fiscalização do poder

A democracia representativa é uma experiência bem-bolada mas que, deixada para funcionar de moto próprio, nunca funciona como deveria. É por isso que Churchill classificou a democracia como ‘o pior regime que existe, excetuando-se todos os outros’.

Para que a democracia representativa funcione, é preciso que a informação circule. Que o cidadão tenha acesso a ela e saiba interpretá-la. Parte desse papel é da imprensa, mas não todo. A imprensa cobre muito mal o dia-a-dia da democracia, precisa melhorar muito nisso. Nos dois casos revertidos pela pressão popular, a imprensa só deu subsídios ao debate quando a bola estava na marca do pênalti. Foi o que este blog tentou demonstrar ontem.

A fiscalização do poder representativo é um costume que precisa pegar no Brasil. O Projeto Excelências demonstrou que é possível desenvolver ferramentas alternativas para o exercício mais aprofundado desse monitoramento. Os casos do controle da Internet e do aumento dos deputados mostram que há o que fazer quando se exerce esse controle.

Exerçamo-lo, pois. Sempre.

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Jornalista, coordenador do projeto Deu no Jornal, da Transparência Brasil; foi o editor do projeto Excelências e edita o blog do Deu no Jornal