Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Como a mídia cobre a mídia


O programa Observatório da Imprensa na TV de terça-feira (27/3) debateu a atuação da mídia em relação a si mesma. No editorial desta edição [ver abaixo], Alberto Dines ressaltou que a mídia não gosta de falar de si própria. Uma exceção é a Folha de S.Paulo, que em 1989 criou o cargo do ombudsman e, agora, prepara-se para dar posse ao nono ocupante da posição. Embora o comportamento do jornalão paulista não tenha se tornado regra no Brasil, a discussão da mídia está na ordem do dia por conta da indicação do jornalista Franklin Martins para assumir a secretaria de Comunicação do governo.


Participaram do programa o ombudsman da Folha Marcelo Beraba, no Rio, e, em Brasília, o coordenador de relações acadêmicas da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), Guilherme Canela.


A figura de ombudsman – ou ouvidor – na imprensa surgiu nos Estados Unidos há 40 anos, como forma de estabelecer uma ligação entre o leitor e o jornal. De lá para cá, vários jornais no mundo adotaram a figura do ouvidor, mas no Brasil apenas dois diários possuem ombudsman – que funciona como uma espécie de advogado do leitor, fala diretamente com a direção do jornal, pode contribuir para ações como direito de resposta e tem a liberdade de colocar suas crítica num espaço público.


Alguns jornais procuram um meio alternativo de criar esse laço com os leitores. O Globo, por exemplo, publica uma crítica interna, tem um painel do leitor e uma grande seção destinada a cartas. O diário fluminense conta ainda com um serviço de atendimento para ouvir críticas e elogios. Rodolfo Fernandes, diretor de Redação do jornal, acredita que isso supre o papel do ombudsman e é outra forma de interação com quem está do outro lado. ‘O importante é o comprometimento interno do veículo com isso’, disse. Entre as TVs públicas, apenas a Radiobrás conta com uma ouvidoria.


Mas essa função não se limita apenas à imprensa: cada vez mais cresce o número de empresas que mantêm serviços de atendimento ao consumidor-cidadão.


Momento difícil


A primeira pergunta de Dines foi para Marcelo Beraba. E dizia respeito às diferenças entre o ombudsman e o ouvidor de uma empresa: ‘Quais são suas garantias e prerrogativas?’


Beraba disse que ambos têm características bem diferentes. E que o papel do ombudsman varia de país para país, de jornal para jornal. No caso da Folha, esse cargo tem mandato máximo de 3 anos e o jornal garante sua autonomia. Disse ainda que tem três atividades básicas: a redação de uma crítica diária, que é enviada para todos os jornalistas da Folha por volta das 14h; o atendimento direto aos leitores, em geral críticas – ‘ninguém escreve para elogiar’ –; e a produção de uma coluna dominical, na qual tem a possibilidade de estender suas análises para a mídia em geral.


Dines tocou no ponto central do debate e perguntou a Guilherme Canela, que é cientista político, por que a mídia não gosta de falar si mesma.


Canela afirmou que sempre existe a necessidade de um sistema de críticas, entretanto a mídia não olha para si mesma porque ninguém gosta de se criticar. Na ‘Mídia e políticas públicas de comunicação‘, realizada pela ANDI e que analisou 1.184 matérias publicadas entre 2003 e 2005, em 53 diários de todo o país e quatro revistas semanais de informação, constatou-se que, em média, apenas uma matéria a cada cinco dias é publicada sobre assuntos referentes à própria mídia. ‘A grande questão que se coloca é como resolver a ausência de discussão sobre essa instituição’, disse.


Dines afirmou que a figura do ombudsman é um avanço extraordinário para que haja transparência no jornal. E lembrou de um caso seu: na época da ditadura os jornais ainda tinham pudor em se mostrar e ele escrevia a coluna semanal ‘Jornal dos Jornais’, para a Folha. Em um dos artigos, ele acusou o próprio jornal de não ter avançado na área de reportagem e que era preciso melhorar nisso. O comentário saiu em corpo 4 e o curioso foi que, exatamente por isso, chamou mais a atenção dos leitores. A partir deste gancho, perguntou a Beraba se ainda existem constrangimentos desse tipo.


O ombudsman respondeu que, hoje, esse tipo de intervenção é inimaginável. ‘Ninguém pergunta o que vai sair’, disse. O que existe é uma reação ao que escreve vinda das editorias do jornal. E deu o exemplo das eleições de 1989, quando o então ombudsman fez uma forte crítica à cobertura política do jornal e houve uma violenta reação interna de desaprovação. Lembrou que esse primeiro momento foi difícil, mas que hoje o trabalho do ouvidor é entendido de maneira mais profissional. Afirmou ainda que, a crítica nunca é pessoal, mas ao jornal como um todo.


‘Uma balela’


Sobre os resultados da pesquisa ‘Mídia e políticas públicas de comunicação’, Guilherme Canela comentou que, na cobertura de assuntos referentes à mídia, há uma presença maior da Folha e do Estado de S.Paulo e, no caso das revistas, da CartaCapital. Isso aponta para uma importante conclusão: as revistas e jornais que não pertencem a grupos econômicos que detêm propriedade cruzada dos meios de comunicação produzem mais matérias nesse sentido. ‘Isso nos remete a uma discussão regulatória importante’, disse Canela. ‘Faz todo o sentido países proibirem que uma determinada holding possua jornais e TVs numa mesma cidade.’ Segundo ele, o Estado de S.Paulo produz três vezes mais matérias sobre as políticas dos meios de comunicação que O Globo. E lembrou que em outras localidades do país o problema é ainda mais complexo, já que além da propriedade cruzada existe a figura dos políticos como controladores de meios de comunicação. Nesses casos, a cobertura de assuntos de mídia é pífia.


Outro dado levantado pela pesquisa da ANDI é que quando os jornais abordam esse tema, falam bem mais sobre as emissoras de TV (60%) do que sobre os jornais impressos (18%). ‘Se a mídia tem um papel importante nas democracias contemporâneas, o jornalismo brasileiro está abdicando de trazer essa discussão para o dia-a-dia da cobertura’, afirmou Canela, que defendeu a qualificação do debate sobre políticas públicas de comunicação.


Dines criticou o fato de os jornais não discutirem entre si: ‘A mídia não discute o concorrente em termos elevados’. Para ele, mesmo com a instituição do ombudsman e a vontade de ser transparente, a mídia ainda se pauta pelo corporativismo.


Beraba sublinhou que isso diz respeito a uma acomodação empresarial e ao tabu de que o jornalista e os jornais não são notícias de interesse público. ‘Acho isso uma balela’, afirmou. Disse que durante seu mandato tratou de questões que não eram normalmente abordadas, mas que diziam respeito ao público – como uma série de demissões que o jornal promoveu por conta de uma crise financeira. ‘Coloquei isso para o leitor saber que o jornal que ele estava acompanhando ia ser influenciado de alguma maneira pelos cortes.’


Estabilidade e segurança


Dines perguntou a Guilherme Canela o que pode ser feito para complementar as ouvidorias e que outras ferramentas alternativas podem ser adotadas.


Canela respondeu que há uma série de medidas regulatórias que devem ser discutidas e implementadas pelo Estado e pela sociedade. O próprio Observatório da Imprensa e a ANDI são exemplos disso. Em relação ao Estado, caberia o controle da propriedade cruzada; e, do ponto de vista das empresas, o que pode gerar mudanças é o debate atual da responsabilidade empresarial. Outro fator central da questão, para Canela, é a transparência das empresas, independente da presença de um ouvidor. Citou também a possibilidade de adoção de conselhos de jornalistas e leitores, formados pelo próprio jornal e com autonomia para criticar – como é o caso do jornal inglês The Guardian.


Ao ser aberto o bloco de perguntas de telespectadores, uma delas veio de Caruaru (PE) e foi dirigida a Canela: ‘A segurança do ombudsman não estaria na estabilidade, e isso não lhe garante uma liberdade que as outras ouvidorias não têm?’. Ele respondeu que, de fato, os fatores que possibilitam a liberdade do ombudsman são a segurança e a estabilidade.


Qualidade e pluralismo


Beraba fez um adendo para lembrar que a pesquisa realizada pela ANDI apontou que há dois atores principais na questão levantada pelo Observatório: o governo e a imprensa. A sociedade civil está sem voz, ‘a pesquisa mostra que isso contribui para que não haja diálogo’, disse. Para ele, há outros atores que devem entrar em cena.


Na rodada final de comentários, Canela informou que o estudo ‘Mídia e políticas públicas de comunicação‘ está disponível no site da ANDI. E Beraba ressaltou que o número de e-mails de leitores aumentou muito durante seu trabalho como ombudsman, e que isso se deve ao maior acesso à internet e à vontade dos leitores de participar e fazer os meios de comunicação irem mais longe e olhar além deles mesmos. Durante seus três anos como ombudsman, as mensagens focaram principalmente duas reclamações: qualidade de informação e pluralismo. ‘Acho que são dois pontos que o jornalismo deveria trabalhar com mais presteza’, disse.


***



Editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 410, exibido em 27/3/2007


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Quando, na semana passada, o presidente Lula indicou dois jornalistas para compor o seu ministério, a mídia concedeu-lhes tratamento visivelmente diferenciado. Miguel Jorge, o novo ministro do Desenvolvimento, foi bem recebido. Franklin Martins, até há pouco uma das estrelas do jornalismo político, foi acolhido com reservas: não pela sua competência profissional, mas porque a secretaria que vai comandar será redesenhada. Antes mesmo que o novo desenho fosse conhecido e o ministro tomasse posse e anunciasse os seus planos, a má vontade da mídia já era evidente. Voltaremos ao assunto.


A mídia não gosta de discutir a mídia. A mídia discute o presidente da República, discute e critica o Legislativo, põe em dúvida o discernimento do Judiciário, mas a mídia detesta discutir a mídia. Esse é um vício antigo. A exceção foi aberta em 1989 pela Folha de S.Paulo, quando seguiu o exemplo de alguns grandes jornais mundiais e criou o cargo de ombudsman – ou ouvidor.


O avanço, infelizmente, não se transformou em modismo: apenas o jornal O Povo, de Fortaleza, mantém um ouvidor e a única emissora de TV a adotar a nova instância foi a Radiobrás, estatal.


Assim como a ouvidoria não é a única fórmula para garantir a transparência e o grau de responsabilidade social de uma empresa, a imprensa não é o único segmento social apto a servir-se de ouvidores. Na democracia moderna cada poder deve ser moderado por um contrapoder.


Agora que a Folha de S.Paulo prepara-se para anunciar o seu nono ombudsman em 18 anos, e a mídia parece ouriçada com a indicação de um supersecretário de Comunicação, convém parar para discutir a mídia. Abertamente. Sem preconceitos.