Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Considerações sobre escritores jornalistas e viajantes

Ao longo de sua história, o jornalismo construiu sistematicamente estratégias de apagamento de um olhar e se posicionar no mundo e frente a ele; buscou a primazia (e a impossibilidade) da objetividade na construção do seu discurso, a imparcialidade (pretendida), um observador isento, apto a descrever o acontecimento tal como ele se apresenta. O jornalismo como uma janela para o mundo, dotado da capacidade de nos oferecer uma realidade ‘dada’, com a força de uma natureza. [A definição de transparência e natureza aqui utilizados nos remetem ao ensaio de Ismail Xavier, ‘O discurso cinematográfico – transparência e opacidade’. O autor apresenta uma re-leitura da história do cinema e como este desenvolveu estratégias narrativas que acabaram por oferecer um discurso transparente, naturalizado, no qual as marcas de sua construção são apagadas em nome de um projeto de verdade (e poder) da indústria cinematográfica.]

Uma realidade, um acontecimento, que pré-existe ao texto, à imagem e ao sujeito que experiencia, enfim. Se este discurso não é o único, sabemos que, no entanto, é essa a empresa que resiste na conformação do jornalismo, pautada ‘no pudor de sua fala’ [Resende, Fernando. ‘O olhar às avessas – a lógica do texto jornalístico’. São Paulo, 2002 (tese de doutorado). p. 73-4] – a objetividade, imparcialidade, atualidade e verdade – que aparentemente garantem a verdade dos fatos.

Retomemos, mais uma vez, a escritora Marguerite Duras, e sua nota introdutória a respeito da organização e publicação de suas crônicas e artigos para os jornais franceses nas décadas de 50 e 60. ‘Sabem, às vezes eu fazia artigos para jornais. De vez em quando, escrevia para o exterior, quando esse exterior me submergia, quando aconteciam coisas que me deixavam louca, outside, na rua – ou quando não tinha nada melhor para fazer. Acontecia. (Duras, 1983)

Duras nos leva aqui a questionar a objetividade e a isenção do narrador [essa ausência], este vazio entre o acontecimento, o texto e o leitor, o apagamento da mediação – do sujeito que experimenta o acontecimento, a escrita, a leitura – da mão que escreve. Ou antes, nos leva a pensar mais uma vez no fato que nos acomete, nos desloca, nos movimenta em direção à escrita. E então se torna ele mesmo [o texto] um acontecimento, uma experiência – o encontro entre o que me acomete, o texto, e a experienciação do texto pelo outro.

O escritor, autor, jornalista, narrador, como viajantes, como Marco Pólo a narrar e construir suas cidades invisíveis [referência ao livro As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino] a Kublai Khan. O retorno do viajante. Re-construir sentidos, significações, edificar cidades, homens, memórias e desejos – as estórias cotidianas –, a partir do compartilhamento de experiências, de olhares, silêncios. A irrupção, por entre as palavras-imagens-narrativas, dos mundos, das identidades, na sua diversidade, polifonia, gestos, espaços e temporalidades fragmentárias, transitórias, invisíveis.

Narrar a (ou uma) realidade não significa perdê-la, ou perder as marcas que nos levam ao sensível dessa realidade. Mas é buscar por entre essa indicialidade os fragmentos que nos significam, que nos conformam um olhar, uma experiência, uma afecção que nos atravessa e permite a escrita do acontecimento, seu ordenamento, sua compreensão, seu estar no mundo e narrá-lo [Duarte, Rodrigo (org). Mimeses e Expressão. Ed. UFMG].

A busca pelo ‘ressurgimento’ das marcas textuais no jornalismo, sua reflexividade – a opacidade do discurso –, a mão que escreve e pensa o mundo. O texto que se oferece como construção, como olhar, como experiência. O jornalista-viajante, Marco Pólo contemporâneo, o jornal-discurso, a tecer e desenhar o mundo que o põe em movimento, que se apresenta em seus conflitos contradições, que se organiza na impossibilidade da mostração de uma totalidade do mundo e sua verdade [também estes conceitos construídos]. E a escrita que se mantém, que resiste, que resta – como os restos das falas ordinárias e cotidianas, como ‘as imagens dignas de serem lembradas’, como os pequenos resplendores diários e insignificantes que nos atravessam e à escrita e sua produção. A atualidade dos acontecimentos que é a atualidade do próprio texto – disperso, fragmentário, intermitente, atravessado por afetos e durações que resistem na escrita.

O discurso jornalístico

O discurso jornalístico, resultado de uma prática e de um ato discursivos, apresenta-se ancorado em pilares rígidos o suficiente para fazer com que a discussão sobre a ambigüidade que lhe é inerente – por que assim acontece a qualquer ato discursivo – se encerre nas bases conceituais que o sustentam. O contexto de enunciação, sob essa lógica, torna-se o menos relevante, porque não se apresenta, aparentemente, como lugar onde o enunciado se constitui. O mundo, sob essa perspectiva, é totalmente externo ao texto, como se todo texto prescindisse do homem que constrói e vive o mundo [Resende, 2002. pp 68-9.].

A verdade, toda a verdade e algo mais que a verdade [Cosson, Rildo. O romance-reportagem: o gênero. Brasília, UnB, 2001. pp 33].

A partir do momento em que se assume o jornalismo como prática discursiva, torna-se premente a busca pelos elementos que constituem e regem essa prática, que a configuram. As estratégias narrativas que permitiram ao discurso jornalístico se estruturar de tal forma que levasse ao próprio velamento dessa estrutura, que se tornasse antes uma natureza que uma forma, uma escolha.

‘Mais importante do que as limitações de ordem ideológica ou política, são as limitações de ordem estética, pois lá [na Globo] você não pode questionar o produto que você está fazendo. Aquilo que você faz não pode inclusive ‘aparecer como produto’, mas como um ‘naturalismo’. O limite da televisão é seu naturalismo.’ [Coutinho, Eduardo. ‘O real sem aspas’ (entrevista). In: Filme e Cultura, ed. 47, 1984]

As limitações de ordem ideológicas ou políticas talvez se resolvam no momento em que o texto aparece como discurso – sabe-se de quem é a voz que narra, e como narra e de onde narra. A questão não se fundamenta tanto na ideologia que perpassa o texto (ou a imagem), – escrever o mundo é percebê-lo e ‘julgá-lo’ e refletir sobre ele, é estar no mundo, e enunciá-lo. ‘A verdade e toda a verdade’ pretendida pelo jornalismo [e busca contínua do jornalista] assume, então, uma ideologia perversa, onde o maior alcance da realidade se dá no (falso) distanciamento e escamoteamento daquele que narra. O grau de eficiência desse discurso [e porque não anunciá-lo como um discurso de poder] é a medida da criação de textos tomados como verdade, isentos, objetivados, imunes à contradição e ao conflito. Os acontecimentos nos jornais tornam-se, assim, espelhos da realidade. E dessa maneira, não há o que ser contestado, pois o fato se deu como apontado no jornal – antes o ponto de vista da verdade que a experiência do olhar.

Mas, quais os recursos utilizados para que seja possível a construção deste espelho? Essa (re)presentação transparente e naturalizada da(s) verdade(s) dos homens e do mundo? Podemos aqui citar alguns elementos que constituem essa verdade factual, como a verossimilhança do relato, a impessoalidade, a objetividade, a factualidade, a economia da narrativa, a explicação dos fatos. ‘Afinal, a informação não permite o intercâmbio de experiências e valoriza o próximo, ao contrário da ‘narrativa’, que envolveria um saber, ‘que vinha de longe’, espacial e temporalmente’ [Leal, Bruno. Do testemunho à leitura: aspectos da evolução do narrador jornalístico, hoje.]. Uma narrativa que viria, enfim, da experiência, da partilha, da troca e do conflito de olhares, posições e memórias.

Porque mesmo a presença de diversas vozes no texto jornalístico está a serviço dessa objetividade e verdade factual. Buscam-se fontes diversas, legítimas, ainda que contraditórias para reforçar a isenção do veículo e/ou do jornalista frente ao acontecido. E a teia de faticidade engendrada pelo narrador torna-se mais uma vez apagada e a verdade narrada, indiscutível. Sobre essa teia de faticidade que estrutura o discurso jornalístico e sustenta a necessidade pragmática que temos de nos relacionar com o real, nos diz Cosson,

‘… nem só de puros fatos vive essa verdade tão cara à credibilidade das informações jornalísticas. Ao contrário, sua efetivação, nas páginas dos jornais, depende muito do que a autora [Gaye Tuchman] denomina, com muita propriedade, de teia da faticidade, isto é, de uma rede de referências cruzadas de fatos, na qual ‘um fato justifica o todo (essa história é factual), e o todo (todos os fatos) legitima este fato (este referente particular)’. [Cosson, R. pp 34.]

A teia de faticidade – a determinação e ordenamento dos fatos dentro e em conjunto com outros fatos – assegura assim a legitimidade do discurso. E a verdade do acontecimento. Soma-se a isso, a busca pela documentação de depoimentos e fatos relatados com provas de realidade – fotografias, gravações, mapas, estatísticas e números. Índices e dados que garantem o pacto de veracidade estabelecido entre o jornalista (o suporte), o leitor e o texto. Dessa maneira, aponta Cosson,

‘os fatos relatados em um jornal trazem, já explícitas e asseguradas no discurso jornalístico, as marcas da factualidade, as ‘molduras’ que autorizam a leitura pragmática desses fatos como verdades a serem discutidas e comentadas no cotidiano, a leitura da verdade factual e a credibilidade do jornal’. [Cosson, R., pp 36.]

Assim, recebemos todos os dias em nossas casas, seja pela TV ou pelos jornais e revistas, um mundo ‘requentado’ com ares de real, uma narrativa pobre e isenta com a função social de ser senão a apresentação de uma realidade conformada, que prescinde da experiência e estórias dos homens que constroem, transformam, vivem e narram o mundo.

‘Vista assim do alto, mais parece um céu no chão’ – ou o contrário de tudo, essa massa amorfa e marrom onde se escondem os vestígios e as estórias dos homens (ou de alguns homens. ou mesmo de uma comunidade inteira) –, a violência absoluta da Rocinha no Jornal Nacional.

O trabalho que por ora se desenvolve buscou apontar e problematizar, ainda que de maneira dispersa e fragmentária, questões que se fazem presentes hoje na prática e no pensar jornalísticos – a questão do narrador, as construções das verdades jornalísticas, as representações [absolutas] do mundo. Neste segundo momento, buscaremos compreender, através da identificação e desvelamento de elementos que estruturam, constituem, sustentam o discurso jornalístico, como foi construído o real de uma certa reportagem. Quais variáveis asseguraram a construção de um real [narrado] verossímil, e qual a realidade desenhada nesse discurso.

Nos reportemos então ao Jornal Nacional de uma segunda-feira, 12 de abril de 2004. Havia quatro dias o morro era invadido por traficantes de outras bocas do Rio de Janeiro.

A música, antigo apontamento do jornal, dá o sinal de que o mundo agora se apresentará em fatos e notícias no horário nobre da TV. Na tela, um travelling sobre a redação do jornal e sobre ela, os âncoras – Willian Bonner e Fátima Bernardes – sérios, graves [como devem ser os apresentadores das grandes verdades], anunciam os fatos que viraram notícias no dia:

‘Sociedade civil se une para apresentar propostas contra a violência/ O ministro da Justiça não descarta o uso das forças armadas no combate ao crime organizado/ Medicina celebra uma vitória contra uma doença rara/ Rebeldes iraquianos fazem mais reféns/ Os heróis do futebol/ Agora. No Jornal Nacional.

Está estabelecido o pacto [de verdade que permeia a leitura do jornal]. Na próxima hora, o corpo e o pensamento se conformam na sala, copa ou quarto, é hora do mundo se apresentar (ou o que dele é digno de nota) (Mas, atenção, isso não é um bloco de notas. Mas a verdade notificada).

A edição do Jornal Nacional levou ao ar, nesse 12 de abril, três reportagens sobre a invasão da Favela da Rocinha pelos traficantes. Seria de fato enriquecedor se fizéssemos uma análise mais aprofundada das três ‘diferentes’ apresentações da favela e da questão da violência presentes nessas reportagens. Afinal, vistas mais de perto e com mais atenção, perceberíamos que as reportagens ali apresentadas se constituíam e se conformavam num mesmo discurso, embora aspirassem três momentos distintos: a apresentação do dia de hoje na favela; a organização da sociedade civil no combate à violência e, por fim, as declarações e o que pensam as autoridades competentes.

No entanto, da primeira à última reportagem o que prevalece é a apresentação de depoimentos de fora do morro – as fontes competentes, as autoridades, a polícia – a sociedade civil requerida na reportagem são cientistas políticos, ministros, antropólogos e diretores de movimentos sociais. Às vozes do morro que aparecem é dado o caráter de ilustração e confirmação dos discursos autorizados e competentes: a gravação de uma criança que chora com medo; uma breve sonora com um líder de associação de bairro que pede aos moradores que fiquem em casa se não têm nada melhor para fazer. Todo o discurso apresentado é exterior ao morro, a seus moradores, às suas ruas e becos e casas. Toda a Rocinha é hoje o discurso da violência; e seus habitantes, tipos, arquétipos dessa mesma violência e medo, que servem de sustentação aos depoimentos das gentes do asfalto (e das instituições que afinal têm nas mãos e nas palavras a verdade e a solução para aquela realidade aterradora). Vejamos então, como em uma dessas reportagens, se conforma a verdade de (mais) um dia na Rocinha.

Apresentador Boa noite. Os moradores do Rio de Janeiro começaram a semana ainda aterrorizados com a guerra que tem sido travada há quatro dias por traficantes de drogas. Hoje, mais de mil e duzentos policiais ocuparam a favela da Rocinha. Mais dois suspeitos morreram e outros ficaram presos.

Mas de quem é a voz que narra? Não importa aqui se essa voz se materializa no âncora ou no repórter. Como veremos a reportagem se desenvolve sob uma voz impessoal e distante que observa e descreve o acontecimento – mais um dia de guerra na favela da Rocinha. Os fatos são apresentados cronologicamente, o acontecimento presentificado no ordenamento de suas ações, e a narrativa permeada por pequenos detalhes ‘insignificantes’ [Barthes, R. ‘O efeito de real’. In: O rumor da língua. Lisboa: edições 70, 1987] que asseguram o caráter realista do relato.

Off um homem baleado é trazido por policiais e chega morto ao hospital. Hoje foram mais duas vítimas da guerra da Rocinha.

Sob a voz que apresenta o fato a imagem de um camburão da polícia, policiais dispersos na rua, um corpo baleado e a sirene… e um caixão de um qualquer enterro.

Off a polícia disse que eram traficantes. Dez pessoas já morreram nos tiroteios que começaram na madrugada de sexta-feira./

Já no princípio da reportagem nos é apontada a fonte privilegiada da matéria – a polícia. Ela funciona aqui como a voz que, indiretamente, sustentará o discurso do repórter, embora, aparentemente, este se valha da voz policial como elemento de garantia de veracidade de seu relato. Os policiais estão lá, no morro, nos becos, eles viram e participam do que acontece na Rocinha e nós estamos com ele, acompanhando suas ações. A eles é dado o privilégio de nos apontar (tacitamente) a leitura pragmática dos fatos desenrolados desde sexta-feira. Estamos ao lado dos homens que experienciam a violência no morro. Sob a voz de um repórter que os acompanha (ainda que na base da favela) e nos mostra o que é a verdade daquele dia de terror. No entanto, veremos como essa fonte se apresenta não como um ponto de vista, mas como a visão da realidade. Não há, em nenhum momento da tessitura da reportagem, o questionamento, a problematização, a reflexão sobre a voz pela qual se optou.

Off mais cinco bandidos foram presos. Um dos suspeitos usava uniforme camuflado do exército// Dois homens de rostos tapados [como cabe aos criminosos] sentados no carro da PM e um homem que é levado pelo braço pela polícia avalizam a informação.

Sonora (fulano. Policial) ele estava armado. Estava com rádio e conseguiu dispensar o rádio// close de um walkie-talkie. Policiais com binóculos observam o morro de um mirante.

Off é pelo rádio que os criminosos continuam se comunicando e fazendo ameaças// na tela, a imagem de um rádio e os caracteres de uma conversa entre presumíveis traficantes:

‘Sabe como é que é meu irmão. O negócio é meter balas neles’

Quem é ‘meu irmão’? Eles? A voz que fala pelo rádio? O recurso ora utilizado vem fortalecer o discurso da polícia. Não é uma polifonia que parece se estabelecer, mas a confirmação de uma voz autorizada. O rádio e a voz gravada tornam-se mais um índice da veracidade dos fatos que se apresentam e sustentam o fato maior da invasão dos traficantes na Rocinha, a violência do RJ, e a ação da polícia (…)

Off eles também monitoram a polícia. A voz de um traficante anuncia a chegada de policiais no morro//

‘tô vendo daqui. O camburão tá entrando, hein.’

A imagem de carros e um camburão da polícia desfocado toma a tela.

Já se configuram também os personagens principais dessa trama e seu desenrolar: os policiais, os traficantes, uma cidade em pânico e a ordem por vir (…)

Repórter a polícia reforçou ainda mais a ocupação da favela agora. Todas as entradas do morro estão controladas por tropas fortemente armadas. São mais de mil e duzentos policiais espalhados pela favela// daqui, de onde estamos [em frente à TV] avista-se a base do morro e centenas de policiais armados que correm pelas ruas.

Off eles vasculham ruas, becos e entram pela floresta. Revistam quem passa a pé ou de carro// cenas de blitz policiais, pessoas, carros, e a floresta no morro.

Off a chegada das tropas é anunciada com fogos pelos bandidos// plano geral de fogos de artifícios que estouram no morro.

Off o batalhão de operações especiais subiu a estrada e passou pelo mesmo lugar onde ontem à noite morreu o pedreiro Divino Alves Cláudio. Ele estava na varanda de casa quando foi atingido// policiais armados se dirigem para o morro, carros passam pela rua. [Divino Alves Cláudio é apenas um nome. E uma profissão.]

Off de madrugada traficantes impediram que policiais socorressem uma moradora grávida. Sem socorro, a mulher teve que descer o morro a pé. O bebê acabou nascendo na rua. Depois, foi atendido na ambulância dos bombeiros// e a imagem da favela então se apresenta – uma vista aérea que nos mostra a Rocinha em toda sua extensão e majestade, e em toda a sua homogeneidade, um aglomerado de casas marrons ruas e becos tortuosos [onde nasce se desenvolve e se encerra a violência].

Ali não se apresentam vidas e rostos e espaços. Na Rocinha tudo aponta a violência – um homem morto e uma mulher recém-parida, proibida de receber auxílio médico, o sufocamento de seus caminhos estreitos. A violência, fique claro, vem de dentro e somente de lá. No lado de cá, paira a tentativa de ordem, invade-se e priva-se em nome da paz. Os nossos personagens ordinários [tomados pelo medo ou pela violência. Porque é assim que as pessoas vivem nos morros – com o medo e com a violência] aparecem mais uma vez não como sujeitos dotados de experiências e vidas e desejos que desconhecemos, mas detalhes que dão força à narrativa, a tornam verossímil, verídica, legível. Corroboram o discurso apresentado pelo repórter [ou polícia?]: o morro invadido por traficantes perigosos que cerceiam a vida dos moradores e impingem a violência.

Os números, os dados concretos da invasão nos são apontados a todo instante – os números de mortos, o volume de policiais. E tudo se passa agora, no momento deste relato. São notícias frescas, que se desenrolam sob o olhar atento do repórter que não deixa nada [do movimento da polícia] de fora. Todos os pequenos acontecimentos – as vozes no rádio, a cena do enterro, o homem baleado – sustentam e legitimam a narrativa apresentada.

Off a polícia acredita que os traficantes que invadiram a Rocinha já fugiram pelo mato. Na fuga, eles fizeram reféns num condomínio usado pela seita religiosa Santo Daime [as pequenas descrições que acentuam o efeito de real].// imagens aéreas de blitz policiais, plano geral do morro, reserva florestal com placa de proteção do IBAMA.

Off o bandido que controla o tráfico tem uma casa de luxo na favela, e também está foragido// fotos do bandido e sua casa são apresentadas na seqüência. A fonte das fotos é apresentada (arquivo do jornal O Globo) [garantem a legitimidade das imagens que vemos].

Off hoje os policiais usaram dois helicópteros ao mesmo tempo para procurar os esconderijos// cenas de helicópteros sobrevoando a favela [Porque na TV é preciso mostrar até a exaustão o que se narra. A fixação do sentido pelo esvaziamento da imagem. Vejam vocês, a realidade está aí. Vejam com seus próprios olhos. Afinal, dispomos dessas imagens na tela transparente do seu televisor. O que se vê é o que se presenciou (e presenciar não é uma experiência, mas uma constatação). O desenho de uma realidade pré-existente] [A violência é isto. A Rocinha é essa massa marrom por onde sobrevoamos minutos antes. Os traficantes vivem em casas como estas apresentadas em fotos] [e a polícia mantém ou luta para manter a ordem, conforme pudemos demonstrar] [a narrativa conforme a realidade – a narrativa conformada] (…)

Off um movimento no alto do morro chamou a atenção da polícia. A PM foi até o local, mas não achou ninguém// plano geral de parte do morro onde se avista um homem caminhando. A tomada é feita do posto de observação da polícia, policiais de binóculos e novamente o morro agora sem nenhum suspeito. Policiais vasculham o local.

Sonora (fulano. Coronel da PM) [Porque não só os homens que morrem ou as mulheres que têm filhos são apenas um nome e uma profissão. Também as fontes privilegiadas trazem este carimbo. Se no primeiro caso, percebemos que a denominação acentua o caráter realista da narrativa, no segundo, sustenta a legitimidade da voz autorizada] o grupo que resta aqui na favela da Rocinha é um grupo reduzido. Agora temos que permanecer para evitar que outros grupos que venham de diversos pontos da cidade para apoiar aqueles que estão escondidos aqui na mata e em algumas residências conforme algumas informações que nós temos recebido.

Enfim, a quase resolução do conflito. Não há mais um grande perigo que circula no morro. A tensão da narrativa se afrouxa. Estamos aqui para assegurar o fim da ação dos traficantes. Em breve a ordem será restaurada…

Após essa reportagem, os âncoras anunciam as medidas concretas da sociedade civil em relação à contenção da violência e as medidas governamentais. Nas duas reportagens que se seguem a mesma estrutura é mantida: um repórter impessoal, sonoras com especialistas e homens do poder, gravações de vozes do morro que vêm confirmar o medo e a violência apontados pelos especialistas, e a necessidade de contenção daquela imensa e amorfa massa na zona nobre da cidade abraçada pelo cristo, [quiçá a construção de um muro ou qualquer outro símbolo semelhante de contenção da violência… e dos traficantes e pedreiros e mulheres que têm filhos e crianças que têm medo].

Ao longo da exposição da matéria, percebemos como as marcas da construção narrativa se apagam em nome de uma pretensa imparcialidade, objetivação e explicação do fato. Como os detalhes (nomes de moradores, casos dispersos, números e fotografias) reforçam o caráter realista da narrativa. A repetição e a redundância das palavras e imagens como fixação de sentido. A teia de faticidade que ordena e estrutura a construção do fato apresentado. A verdade factual. O caráter fundamentalista do discurso jornalístico – essa indústria produtora de verdades absolutas acerca da vida e da história dos homens.

Não me preocupei aqui em dar conta de todos os sentidos que escapam à estrutura da reportagem. Ainda que a construção seja rígida demais para permitir a abertura de fissuras gritantes [há ainda outras leituras possíveis], há os leitores, os ouvintes, aqueles que como Kublai Khan pensam ainda a partilha de significados, a construção de cidades e estórias invisíveis, que buscam na rigidez da forma o transbordamento e a resistência de algum gesto, de uma fala, de um acontecimento que atravesse a moldura estática de uma tela de TV, ou a página de um jornal e provoque um deslocamento, um pensamento, ou uma outra imagem possível. E há ainda a(s) realidade(s) e os homens, que a despeito do espetáculo e do discurso [invisível] de poder, vivem, sonham e caminham em suas vozes e traçados dissonantes, ordinários, [quase] silenciosos. Personagens e estórias que interessam não pelos seus critérios de noticiabilidade e histórias fantásticas, mas pelos pequenos rasgos e ruídos que imprimem nas narrativas, nas molduras – essa opacidade que trazem em suas estórias e provocam fissuras abertas, traçados outros sobre as frágeis certezas da imparcialidade objetividade e distanciamento de tudo aquilo [o texto jornalístico] que ‘comunica’.

******

Jornalista; texto do trabalho apresentado no Instituto de Educação Continuada da PUC-MG, disciplina Jornalismo: Práticas Contemporâneas, professor Bruno Leal