Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Depois da transcendência, a sala de espera

‘O Rei é morto, viva o Rei!’ – o antigo axioma impôs-se já no dia seguinte às exéquias de Karol Wojtyla. Os jornais de sábado (9/4) ainda estavam impregnados pela plasticidade do cerimonial católico, as manchetes ecoavam a emoção da multidão que gritava ‘santo!’, mas, ao mesmo tempo, deslizavam para a esfera temporal, terrena, a única na qual conseguem viver.


Um dos ‘milagres’ de João Paulo II operou-se ali mesmo na praça de São Pedro, na missa de corpo presente, quando a ordem alfabética do protocolo diplomático juntou os presidentes do Irã e Israel (Mohamed Khatami e Moshe Katzav, inimigos declarados porém conterrâneos, que conversaram em farsi), ou quando o mesmo Katzav e o dirigente sírio Bashar al-Assad, em fileiras diferentes, cumprimentaram-se cerimoniosamente.


A magnífica foto de Max Rossi, da Reuters, tomou conta do alto da primeira do Estado de S.Paulo e do Globo, mas o livre-arbítrio dos respectivos editores mostrou como a mesma imagem-mensagem pode produzir efeitos diferentes. O jornalão carioca abriu-a em oito colunas e talvez tenha produzido a foto mais tocante do ano com as esvoaçantes sobrepelizes cardinalícias e as páginas do exemplar dos Evangelhos viradas pelo vento. O barroco na era digital. O concorrente paulista, preferiu a modernidade. Gosto não se discute – nem no Juízo Final.


Conquistadas as boas-graças, O Globo permitiu-se acabar com o caderno especial sobre a morte do papa antes mesmo de terminar o luto e, junto com os concorrentes, tirou o leitorado brasileiro da excelsa esfera na qual foi envolto durante uma semana.


Voltamos ao de sempre: correria, tropeços, descuidos e banalidades. Mostrou-se o presidente Lula comungando e deixou-se implícita a crítica por não se ter confessado: impossível, para isso teria que haver um sacerdote que falasse português. Nas missas solenes aboliram-se as confissões.


Todos entraram na torcida pela papabilização de dom Cláudio Humes mas o Estadão, embora discreto, levou a melhor: o cardeal paulista é seu colaborador.


No relato sobre o enterro, na Folha de S.Paulo (9/4, Caderno Especial, pág. 7), um dos enviados especiais resolveu comparar o enterro de Iasser Arafat com o de Karol Wojtyla e decretou que em Ramallah o clima de emoção foi ‘muito mais intenso do que o vivido ontem em Roma’. As próximas edições do Manual da Redação terão que fornecer um aparelhinho para medir a emoção das multidões.


A Operadora


Irrelevâncias. O mais importante é que já na edição de domingo (10/4) os holofotes da mídia brasileira, afinal, tiraram da sombra a poderosa e misteriosa Opus Dei – a Obra de Deus ou simplesmente, A Obra. Quem o fez não foi o Estadão ou O Globo (arautos da Universidade de Navarra, representante acadêmica desta ordem leiga), mas o jornal até agora mais arredio à sua influência – a Folha de S.Paulo.


A aproximação começou dias antes, logo em seguida à morte de João Paulo II, e ganhou dimensão na edição de domingo (10/4), quando o jornalão excedeu-se em generosidade e acolheu em espaços diferentes – ambos nobilíssimos – duas matérias sobre a Opus Dei, veiculadas pela mesma pessoa, o eminente tributarista Ives Gandra Martins, um dos expoentes da ordem no Brasil [leia os textos de Juan José Tamayo-Acosta e Ives Gandra da Silva Martins na rubrica Entre Aspas, nesta edição].


A primeira manifestação deu-se logo na página 3, com um artigo assinado pelo advogado sob o título ‘Os Papas e a Opus Dei’; a outra foi estampada em manchete da página 5 do Caderno Especial, sob forma de entrevista.


Duas matérias sobre o mesmo assunto e vocalizadas pela mesma pessoa na mesma edição constituem um tipo de deslize que acontece nos melhores veículos, não chega a ser infração. Às vezes é casualidade pura e simples, outras vezes – como agora – é causalidade: a repetição foi provocada pelo percurso não-natural e não-espontâneo de uma ‘pauta’ soprada pelo andar de cima antes de se transformar em matéria.


O que torna a Opus Dei tão importante?


Para este Observador trata-se de uma entidade da Igreja Católica como outra qualquer, com doutrina, devoções, desígnios, estatutos e procedimentos adequados à jurisdição religiosa/espiritual. Se tem semelhanças com a antiga ordem dos dominicanos (domini canis, os cães do Senhor), que controlou durante séculos o aparelho da Inquisição e quase levou o padre Antônio Vieira à fogueira, é mera curiosidade histórica.


A Constituição garante plena liberdade de crença. Eventuais especulações ou questionamentos sobre A Obra enquadram-se na esfera intelectual da teologia, filosofia ou historiografia. A mesma Constituição determina a separação entre Religião e Estado, garantindo o direito de crer, descrer e, principalmente, de manifestar-se.


Como ordem religiosa ou para-religiosa, a Opus Dei tem forte atuação na área empresarial – o que é perfeitamente legítimo. Tem penetração maior ainda na área da comunicação social. E esta influência se faz a partir da Universidade de Navarra, na Espanha, seu braço empresarial-acadêmico (doravante denominada A Operadora). Aqui, esta legitimidade não é tão líquida.


Colher de chá


A Opus Dei começou a atuar intensamente na mídia espanhola e portuguesa nos anos 1980. Quem derrubou Felipe González, no início dos anos 1990, foram os jornais a ela ligados, que jogaram pesado. Não apenas como veículos de informação, mas através de suas conexões políticas e empresariais. Na Espanha, aparentemente pacificada cerca de seis décadas depois do fim da Guerra Civil (1936-1939), a morte de sacerdotes católicos nas mãos de anarquistas, comunistas e socialistas ainda é lembrada pelos setores mais radicais do catolicismo. Ives Gandra, na entrevista, pareceu muito sensível à questão ao lembrar em meio a considerações teológicas o ‘assassinato de seis mil religiosos’.


Da Península Ibérica, o braço comunicador da Opus Dei transferiu-se para a América Latina. Conseguiu infiltrar-se na influente SIP (Sociedad Interamericana de Prensa, com sede em Miami) e, a partir desta, em meados dos anos 1990, aninhou-se no seu capítulo brasileiro, a ANJ (Associação Nacional de Jornais).


Às vezes diretamente, sem intermediários, outras por meio de consultorias internacionais (com base também em Miami), a verdade é que A Obra & A Operadora reformaram e reformularam não apenas grande parte dos jornalões nacionais mas também grande parte dos regionais no desastroso período denominado ‘Bolha’ (fim dos anos 1990), em que as tradições, compromissos cívicos e culturais da imprensa brasileira foram atropelados sem contemplação pelas reengenharias e pela monetização do processo de informar.


Incrustada dentro da ANJ, A Obra & A Operadora conduziram seminários, cursos, congressos, armaram pools e, principalmente, estabeleceram paradigmas. Vigentes até hoje. Embora criacionistas em matéria teológica, adotaram nas redações um darwinismo muito especial: são eles que decidem quem pode aparecer, quem pode crescer, comandar, manifestar-se sobre a profissão e quem pode sobreviver dentro dela.


A Folha de S.Paulo foi o único jornalão que ao longo da última década conseguiu resistir às investidas da Obra e da Operadora, embora capitulasse quando suas idéias eram filtradas pela ANJ (da qual foi uma das mais engajadas patrocinadoras).


A canhestra repetição do domingo é, certamente, um fato isolado. Não parece ser uma tomada de posição pró-Opus Dei, nem sugere qualquer simbologia ou avaliação criptográfica. É apenas uma colher de chá ao ‘amigo da casa’.


***


Grandes mudanças serão produzidas a partir do cenáculo ora reunido em Roma. Pela primeira vez nesta Era da Informação a imprensa ficará de fora, na sala de espera, impedida de agir, influenciar e comandar os acontecimentos. Pela primeira vez, sua premência estará submetida à tradição milenar. Teste inédito, espécie de quarentena. Ou penitência. A mídia saberá que consumou-se a escolha do próximo pontífice na hora em que os sinos de Roma bimbalharem e a fumaça branca aparecer na chaminé do Vaticano. Mediados e mediadores estarão em pé de igualdade.


A mídia criou o clima de transcendência, agora terá que contentar-se com a insignificância. Amém.