Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Na política, como na vida, não existem certezas

O advogado José Luís Oliveira Lima, do condenado José Dirceu na Ação Penal 470, entregou memoriais aos ministros do STF querendo diminuir as eventuais altas penas a que seu cliente estará sujeito nos próximos dias. Tal pedido é baseado no passado de resistência de Dirceu em prol da sociedade, mediante a luta contra a ditadura e pelo retorno da democracia.

Como dizia Tim Maia, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa – e vice-versa.

Não se podem justificar atos presentes com base na respeitabilidade passada. Os fatos criminosos pelos quais responde são contemporâneos e merecem, como mereceram, a reprimenda social e judicial. Aliás, para aqueles que ainda esperneiam diante das condenações, vale a pena lembrar – não é mais a imprensa ou a oposição que dizem – que o mensalão existiu. Por mais que alguns de nós nos sintamos desconfortáveis ou mesmo envergonhados, quem disse que houve crimes, demonstrados e provados, foi o Ministério Público Federal, pela denúncia do procurador-geral da República (indicado e nomeado pelo governo Lula) e julgados por maioria da mais alta Corte do país (cuja maioria dos ministros foi indicada pelos governos Lula e Dilma), num julgamento legal e justo, onde se respeitaram os princípios constitucionais do acesso ao Poder Judiciário, do direito ao processo, da ampla defesa e do contraditório, além das regras processuais contidas no Código de Processo Penal.

A justiça é via de mão dupla que serve para absolver e condenar e isso foi feito.

Sentença não se gosta ou se desgosta

As paixões de partidários e pessoas do povo são inevitáveis em julgamentos rumorosos ou de grande repercussão, principalmente diante da tradição de impunidade dos poderosos que sempre frustrou a opinião pública. Por isso, o senso de vingança privada sempre se exacerba porque o ódio e repúdio popular passam a ser as únicas formas de sanção aplicadas pelo imaginário do povo.

Os juízes, na plena vigência do Estado Democrático de Direito, com argumentos e pontos de vista baseados nos autos (documentos, depoimentos, testemunhos e perícias) proferiram seus votos (aqui cabe lembrar os princípios do livre convencimento do magistrado e da fundamentação do ato de decidir).

O julgamento foi público, cujo princípio da publicidade, para além das praxes processuais atinentes às partes e seus advogados, voltou-se à pública opinião, inclusive com a transmissão ao vivo pela televisão e pela rádio. Houve comentaristas nas emissoras para traduzir ao leigo os detalhes técnicos do julgamento, o que pode ter contribuído para a formação cívica e democrática dos cidadãos brasileiros, tão carentes desse tipo de contato com os nichos do poder. O que resta é o direito de espernear àqueles que não gostaram da decisão. Mas sentença não se gosta ou se desgosta. Cumpre-se.

O risco da incerteza

Como advogado, tenho visto, no mais das vezes e com honrosas exceções, que alguns clientes ao perderem a demanda sempre procuram a culpa em fatores fora deles mesmos ou de suas ações. Isso é da natureza humana. O alter, e não o ego, é o culpado.

Com José Dirceu isso também acontece. Ele, na absoluta crença de sua ação política legitimada por um partido de viés popular e classista, inflado na disciplinada partidária e militante – fez da sua inocência uma missão de sobrevivência pessoal e política; quase uma cruzada. Pensa, alega e apregoa que não cometeu os nefandos crimes pelos quais foi denunciado e condenado. Principalmente aquele que o erige no chefe de uma organização criminosa reunida em quadrilha (ou bando?) para delinquir. Não interessa se em proveito próprio ou alheio. O seu ativismo de militante, que teve exponencial trajetória política de líder estudantil, interrompida pelo golpe militar e seus Atos Institucionais posteriores, passando pelo exílio em Cuba e, finalmente, na clandestinidade no interior do Paraná, fê-lo ressurgir, reerguer-se e, já na democracia, fundar um dos mais bem estruturados partidos políticos de esquerda, tanto ideológica quanto organicamente. Cultivou-o, fazendo-o assumir o poder em municípios, estados e, finalmente, no governo federal.

Contudo, tendo vivido os anos 1960 e, talvez, lembrando a experiência do episódico governo João Goulart, onde a esquerda não passava de um arremedo populista sem bases populares ou apoio articulado dos movimentos sociais, não quis colocar em risco o projeto de governabilidade de uma coalização de centro-esquerda que tinha, a princípio, uma minoria no Congresso Nacional. Precisou cercar-se de certezas absolutas do apoio incondicional e irrestrito de outros partidos e lideranças avulsas que, sabe-se, são venais e corruptíveis. Correu o risco da incerteza de sucesso da empreitada, indo por vias tortuosas, sem volta, no desvão do reles cometimento de crimes comuns.

Impunidade abençoada

Uma temeridade? Um mau cálculo na cena política? Talvez. Eu, particularmente, não creio nisso. Só duas pessoas, em momentos distintos da nossa República Nova, em minha opinião, tiveram a leitura completa do intricado tabuleiro onde se movem as peças do jogo político: Golbery do Couto e Silva e José Dirceu. Podia tratar-se, pois, de uma mera vingança tramada contra as elites partidárias tradicionais, que se curvariam, mediante régia soldada, ao novel governo, sendo-lhe fiel, do mesmo modo que o foram desde que por aqui se abriram os portos às nações amigas. A fina ironia de Dirceu seria conduzida com a mão de ferro de quem sabia dar as cartas. No entanto, algo de muito errado aconteceu. Aquele elemento chamado de “imponderável”, que destrói as mais absolutas certezas.

Agora, que o rei é posto, em seu íntimo Dirceu continua insistindo que sua ação foi politicamente correta e houve a conspiração da direita aliada à mídia vendida, que bolaram muito bem uma sórdida perseguição política. Pois bem. Se assim for, como verdadeiro militante de esquerda, que cumpra a pena de cabeça erguida, certo da sua íntima inocência. Assim fizeram tantos militantes e próceres da esquerda, perseguidos pelas ditaduras, ao longo da história do Brasil, mesmo injusta ou ilegalmente, o que no caso sempre é o pior, cumpriram suas penas. Assim foi com Luís Carlos Prestes, com Graciliano Ramos, com Dionélio Machado, com Dilma Rousseff, entre tantos outros. Com José Dirceu não pode ser diferente e, creiam-me, não será diferente, pois a princípio, “todos são iguais perante a lei”, não por seu passado ou por seu presente.

Talvez esse seja o seu arrogante erro. Pensar que a Pátria e Nação lhe devem mais do que ele realmente merece. Em política, como na vida, não existe certezas de nada. Nem de apoio irrestrito, nem de impunidade abençoada.

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[Ben-Hur Rava é professor universitário e advogado]