Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A cobertura do horror

“As principais agências internacionais de notícias apresentam o Brasil como uma nação assombrosa, oscilando entre paraíso tropical e inferno dantesco.” (Peter Burke, 2006)

Outra vez o Brasil ganhou enorme espaço no limitado e disputadíssimo cenário jornalístico internacional. Temos que agradecer esse duvidoso privilégio ao trágico incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS). Afinal, com mais de 233 mortos e outros tantos feridos, além de outros desastres naturais regulares e previsíveis o Brasil é referência e fonte inesgotável de más notícias na imprensa internacional.

A tragédia em Santa Maria é o segundo incêndio mais mortal e a quinta maior tragédia da história do Brasil. Diante de tantas notícias ruins, estamos todos de luto. Mas o nosso pesar e tristeza não deveriam ser confundidos com indiferença, descaso ou o pior e mais provável: o esquecimento.

O incêndio de Santa Maria não é um evento singular, raro ou excepcional em nosso país. Desastres naturais e grandes tragédias frequentam nossos noticiários com incrível e inaceitável regularidade. Apesar de “campeões em tragédias”, o incêndio em Santa Maria deveria ser uma oportunidade para mudarmos muitas coisas no país.

Temos que aproveitar o desastre e a tristeza para repensar nossas atitudes em relação à segurança de casas noturnas no Brasil, e cobrar mais responsabilidade dos proprietários, funcionários, autoridades e do público que frequenta essas “arapucas noturnas”.

Ou seja, todos nós temos uma parcela de culpa em nossas tragédias.

Velhas doenças

Grandes ou pequenos eventos no Brasil são convites abertos a tragédias anunciadas. Ainda mais às vésperas da Copa do Mundo e das primeiras Olimpíadas no Brasil, eventos gigantescos que criarão situações perigosas semelhantes à tragédia de Santa Maria. Copa do Mundo não acontece somente nos estádios. Os atletas, autoridades, jornalistas e turistas virão em grande número para frequentar os eventos esportivos e nossas “arapucas diurnas e noturnas”.

A responsabilidade de organizar grandes eventos internacionais no Brasil nos coloca ainda mais em evidência diante da opinião pública internacional. Hoje, mais do que nunca, o Brasil é destaque no noticiário. Estamos sendo observados em nossa capacidade para gerar soluções inovadoras e criativas para resolver problemas recorrentes. Mas também estamos sendo cobrados em relação a velhas “doenças”, como violência social, corrupção generalizada, descaso e incompetência de empresários e das autoridades.

Brasil na mídia

Em relação à cobertura internacional, a tragédia de Santa Maria é uma oportunidade excepcional para entendermos melhor o papel da mídia na divulgação de notícias positivas e negativas sobre o país, e a construção da imagem do Brasil no exterior pelos correspondentes e sua relação com o controle ou manipulação da opinião pública mundial.

Ao contrário do que gostariam muitos governantes que gastam fortunas em campanhas para garantir a difusão de notícias consideradas “positivas” sobre o país, cabe aos correspondentes e agências internacionais a difusão dos fatos sobre o Brasil.

Como a maioria dos habitantes do planeta, tudo ou quase tudo que você conhece sobre esses países foi visto na TV e nos telejornais graças ao trabalho dos correspondentes. A maioria das pessoas não se interessa ou viaja para países periféricos, como Brasil, Iraque, Afeganistão ou Costa Rica. Elas costumam se interessar somente por seus próprios países. A TV costuma ser a sua única janela para o mundo. E as emissoras preferem divulgar as notícias ruins, as desgraças, as pautas consideradas negativas. Dessa forma, são responsáveis pela construção da imagem dos países.

Nesse cenário, as agências de notícias são as empresas jornalísticas especializadas em difundir informações e notícias diretamente das fontes para os veículos de mídia, como as emissoras de TV. As agências operam por meio de escritórios locais, em diferentes cidades e países, que transmitem sua apuração para as centrais – as quais, por sua vez, redistribuem o material para os clientes (jornais, revistas, rádios, televisões, websites etc.).

No domingo (27/1), a cobertura das agências internacionais de notícias foi intensa em busca de imagens para mostrar e explicar a trágica e recorrente história brasileira em Santa Maria. Uma cobertura dramática como essa permanece no imaginário internacional durante muito tempo e confirma os piores estereótipos sobre o nosso país.

Mas, ao contrário da expectativa geral, a nossa imagem no exterior não é resultado exclusivo do trabalho de jornalistas internacionais. É, sim, resultado da nossa própria percepção sobre o país. A imagem do Brasil no exterior é produto de uma autoimagem, traduzida e divulgada pelos correspondentes baseados no país, que se utilizam do noticiário brasileiro como fonte primária para a construção da imagem do Brasil no exterior. Ou seja, apesar dos estereótipos culturais dos correspondentes, são os próprios brasileiros que fornecem a matéria-prima para o noticiário internacional sobre o país.

As agências internacionais para TV, como a Associated Press e a Reuters, utilizaram intensamente as imagens da Rede Globo. Sites de jornais – como o americano TheNew York Times, o espanhol El País e o francês Le Monde –publicaram notícias e fotos do desastre que foram fornecidas pela imprensa brasileira.

A TV ainda é a principal fonte de informações para a maioria das pessoas. Associated Press e Reuters têm praticamente o monopólio de notícias internacionais para os telejornais e são muito, muito parecidas.

Vale também destacar a matéria do New York Times divulgada domingo (27), com enorme repercussão internacional. As principais conclusões e citações do texto foram extraídas da imprensa brasileira:

“De forma mais ampla, o incêndio chama a atenção para questões de responsabilidade no Brasil e aponta para a aplicação relaxada de medidas destinadas a proteger os cidadãos em uma economia que possui base sólida. Desastres evitáveis costumam ceifar vidas no Brasil, como ficou evidente pelo desabamento de prédio, explosões de bueiros e desastres com os bondes no Rio de Janeiro. ‘A burocracia e a corrupção também causam tragédias’, disse André Barcinski, colunista da Folha de S.Paulo, um dos maiores jornais do Brasil” (ver íntegra aqui).

Este é um exemplo significativo da cobertura do New York Times sobre a tragédia de Santa Maria que utiliza os jornais locais como fonte primária para a construção da imagem do Brasil no exterior.

Em relação à cobertura internacional, é importante distinguir o que é uma notícia positiva ou negativa de um país tão diverso e complexo como o Brasil. O que seria uma notícia verdadeira ou mentirosa sobre determinado país? Afinal, as imagens a que assistimos na TV e que tanto nos apavoram e entristecem são as mesmas que milhões de estrangeiros verão sobre o Brasil em seus telejornais.

Provavelmente, serão as únicas informações que receberão sobre o enorme e desconhecido país da América Latina chamado Brasil. Como dizia o editor de agência de notícias internacionais para quem trabalhei durante muitos anos, “no Brasil, se não é violência, é queimada ou enchente”.

Éramos responsáveis pela construção, ou melhor, pela “desconstrução” da imagem do Brasil no exterior. Meu editor nunca tinha vindo ao Brasil e sabia muito pouco sobre nossa cultura. Mas decidia o que milhões de telespectadores de todo o mundo assistiriam sobre os acontecimentos no Brasil.

Mundo injusto

Há muitos anos, trabalho e pesquiso o poder dos correspondentes e das agências internacionais para informar e desinformar milhões de telespectadores de todo o mundo (ver “A construção da imagem do Brasil no exterior: um estudo sobre as rotinas profissionais dos correspondentes internacionais“).

Essas grandes empresas fornecem a quase totalidade de notícias sobre o que consideram mais importante em praticamente todos os países. Elas seriam as verdadeiras responsáveis pela construção das imagens nacionais. Países que tendem a conferir uma enorme e exagerada importância à sua própria imagem. Não à sua imagem interna, aquela construída para consumo nacional, mas à imagem externa, isto é, aquilo que os outros percebem sobre a nossa realidade. Os jornalistas criam, manipulam e muitas vezes “denigrem” imagens ou estereótipos nacionais.

Os jornalistas não criam a nossa imagem lá fora. Eles simplesmente retratam um cotidiano repleto de fatos inacreditáveis em suas matérias. A nossa realidade há muito tempo parece ficção.

Em certo sentido, os brasileiros costumam ser cúmplices dos estrangeiros na criação de uma autoimagem pouco elogiosa. Ao contrário da grande maioria dos países, adoramos falar mal de nós mesmos. Mas jamais admitimos que os “outros” – os tais estrangeiros – nos critiquem. Almejamos o controle absoluto do que os outros pensam de nós.

Positiva ou negativa, verdadeira ou falsa, talvez essa imagem não seja muito diferente daquela que temos de nós mesmos e que vemos em nossa TV. O equilíbrio entre as boas e as más notícias seria o ideal. Mas o mundo é um lugar injusto.

Olho no Brasil

Em relação à cobertura nacional de mais uma tragédia anunciada no Brasil, ficou evidente o despreparo e a incompetência não só dos seguranças da boate Kiss, mas também o despreparo de nossos jornalistas – principalmente em canais de notícias 24 horas, como a GloboNews – para enfrentar esse tipo de situação. Cometem sempre os mesmos erros. Na falta de imagens e de informações, os apresentadores permanecem no ar durante horas tentando explicar o que não sabem.

Algum dia, nossas televisões deveriam deixar de considerar os desastres ou tragédias como eventos imprevisíveis ou inesperados. Deveriam, sim, investir mais no treinamento de profissionais para cobrir desastres e fazer um jornalismo de melhor qualidade. Um jornalismo que busque as causas dos desastres e que exija medidas concretas para evitá-los no futuro. Pode não dar tanto Ibope, mas pode salvar muitas vidas.

Não sabemos quando e onde, mas desastres e tragédias sempre acontecem. São eventos muito importantes para a cobertura jornalística e não deveriam nos surpreender. Não podemos viver eternamente acreditando em improvisações, amadorismos ou jeitinhos de última hora para mostrar a mais recente tragédia. Hoje foi em Santa Maria, mas a próxima tragédia já está em construção. Mera questão de tempo.

E já que eles são recorrentes e talvez inevitáveis, precisamos no preparar mais para cobrir os desastres e tragédias. O jornalismo de prestação de serviços precisa continuar relevante e atuante. Grandes tragédias podem significar grandes coberturas jornalísticas. Mas precisamos nos preparar.

Se bombeiros fossem jornalistas, todos os incêndios ou inundações também seriam enormes desastres. Bombeiros e profissionais de segurança treinam intensamente para enfrentar as surpresas da natureza, os acidentes ou a irresponsabilidade de empresários ou governantes. Jornalistas também deveriam se preparar para cobrir o inevitável.

Tragédias ou desastres são o grande momento de qualquer tipo de jornalismo. Ainda mais na TV. Não podem ser previstos ou planejados, mas a cobertura dessas tragédias pode ser preparada, equipes podem ser treinadas e os resultados finais podem ser avaliados.

Assim como devemos evitar tragédias como o incêndio de Santa Maria, no jornalismo temos que aprender a cometer erros novos. Bom jornalismo, assim como a imagem de um país, não se improvisa.

O mundo está de olho no Brasil.

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[Antonio Brasil é jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina]