Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Regular ou regulamentar a imprensa?

O acordo a que os três principais partidos políticos da Inglaterra chegaram a respeito do novo instrumento de regulação da mídia britânica revelou que entre alguns jornalistas, a sociedade e a política brasileira ainda existe confusão entre regulação e regulamentação da imprensa. Quando David Cameron afirmou que tudo o que ele e seus aliados queriam evitar era uma “lei de imprensa”, o primeiro-ministro quis dizer que não apoia a regulamentação da imprensa escrita. O que ele não quer é a lei diretamente envolvida com os jornais impressos. Mas ele vê com bons olhos a regulação da imprensa.

A Inglaterra possuía um sistema assimétrico de regulação, até que o escândalo das escutas estilhaçou o modelo: a imprensa era autorregulada pelo PCC (Comitê de Queixas sobre a Imprensa), e as mídias eletrônicas estavam debaixo de legislação estatal, através do Ofcom, o escritório estatal de comunicações da ilha britânica. O novo padrão de regulação não mudará o sistema de regulação do país, de modo geral. O país não quer adotar uma lei geral de imprensa. A Inglaterra não quer a regulamentação da imprensa, mas a regulação da mesma. A imprensa será regulada, não regulamentada.

Regulação e regulamentação são coisas diferentes. Mas alguns canais da mídia online brasileira usam os dois termos como se fossem sinônimos, algumas vezes alternando os dois no mesmo texto. Na verdade, toda a discussão sobre a regulação da mídia está impregnada dessa confusão. Vejamos alguns exemplos onde encontramos problemas em estabelecer a distinção essencial entre regular e regulamentar na discussão sobre um marco regulatório do nosso país.

Regulamentação nos EUA existe desde o new deal

O Último Segundo (21/03) publicou o seguinte parágrafo:

“Dilma também nunca escondeu que é contra qualquer projeto de regulação da mídia. O maior defensor de alguma forma de regulamentação dos meios de comunicação é o ex-presidente Lula, que em quase todos os discursos faz ataques à grande imprensa.”

O Portal Imprensa (18/3) intitulou sua pequena matéria com a palavra “regulamentação”, enquanto na nota constava a palavra “regulação”. Uma pequenina nota que não fez diferença no cotidiano da imprensa. Grandes erros também cabem em pequenos comentários.

O periódico Sul21 (4/11/2011) publicou a posição do chefe de redação do jornal O Sul, Elton Primaz, que acreditava que nos Estados Unidos já existia regulação de mídia desde 1930. Nunca houve regulação de mídia impressa nos Estados Unidos. Primaz deveria ter feito a distinção entre a imprensa não regulada e não regulamentada, e as mídias audiovisuais regulamentadas e reguladas pela FCC (Comissão Federal de Comunicações) através de seus vários escritórios especializados. Regulamentação dos meios eletrônicos de comunicação existe desde os tempos do new deal do governo Roosevelt.

Ministro ignorava a distinção

Os Estados Unidos têm um órgão que regulamenta as mídias eletrônicas (menos a internet), o FCC, que foi criado por deliberação do Congresso em 1934 e tem seus integrantes nomeados pelo presidente da República. Não é um órgão de regulação, mas de regulamentação. Naquele país os jornais impressos não são alvo de qualquer tipo de restrição, fiscalização, regulação ou regulamentação, graças à Primeira Emenda da Constituição. Problemas de imprensa são resolvidos com regras e legislação específica baseada em precedentes acumulados ao longo da história do país.

As mídias eletrônicas, entretanto (rádio, TV, radar e outras transmissões eletrônicas que cruzam o espaço norte-americano, além da telefonia e da banda larga), estão sujeitas as normas e regulamentos do FCC. Regulamentação de mídia existe nos Estados Unidos apenas para os meios audiovisuais. Não é uma lei de imprensa e não tem qualquer poder sobre os jornais impressos.

Mas, afinal, qual é a diferença entre regulação e regulamentação da mídia? Mariana Mazza é uma jornalista especializada em telecomunicações e acredita na importância de deixar bem nítida a diferença entre os dois conceitos. Em artigo de 2012, publicado no site de notícias da Band-UOL (12/11), ela demonstrou que o ministro Paulo Bernardo também não soube estabelecer a diferença entre as duas categorias jurídicas. Na discussão sobre a neutralidade da rede (internet), que previa “a não discriminação dos pacotes transmitidos na rede de acesso à internet salvo em situações específicas”, o ministro queria que a Anatel fosse responsável pela “definição das exceções”. Mariana relata que o deputado Alessandro Molon (PT-RJ) confundiu mais ainda o ministro, ao deixar claro que a regulamentação da neutralidade da rede não é da competência da Anatel. Que é um órgão de regulação, e não de regulamentação. Molon estava certo, e acabou por deixar Paulo Bernardo em má situação: um ministro das comunicações deve, ou melhor, tem a obrigação de saber diferenciar os dois conceitos. Ficou claro que, pelo menos até o final de 2012 o ministro ignorava a distinção entre regulação e regulamentação.

Sistema combinado

A regulamentação é um privilégio da Presidência da República: “Cabe ao presidente sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir os decretos e regulamentos para sua fiel execução. Estes atos, que compõem a função de exercer as políticas públicas nada mais são do que a regulamentação”, explicou a jornalista. Quando David Cameron disse que “felizmente não teremos lei de imprensa”, na Inglaterra, ele quis dizer que não haverá regulamentação para a imprensa escrita. Não vai haver lei de imprensa na Inglaterra. Mas os jornais serão regulados.

Regular significa “agir e interferir na atividade econômica de um país para proteger o interesse público dos efeitos das atividades privadas e públicas nesta esfera”, ensina Mariana Mazza. A regulação serve com ponte, como mediadora entre os interesses do público e, aqui no caso em questão, da mídia. Seu pressuposto básico é a defender o interesse público. Um órgão de regulação não edita regulamentos, mas normas e resoluções. Tem poder normativo e não pode regulamentar nada.

O novo modelo inglês será um compromisso entre a regulação civil não estatal, para a imprensa escrita, e a regulamentação, para as mídias eletrônicas. A Inglaterra não vai alterar seu padrão assimétrico de regulação. Os jornais serão regulados por uma agência civil. A rainha da Inglaterra dará as garantias ao novo órgão de regulação por meio de antigo instrumento monárquico, a Carta Real (Royal Charter). O sistema combinado dos britânicos, depois de sua reforma, pode vir a ser a escolha certa porque protege o cidadão dos abusos da imprensa com um órgão regulador cidadão com poder de punir e multar, e utiliza a regulamentação do Estado para as mídias eletrônicas. É o melhor dos dois mundos porque deixa completamente livre de ingerência estatal a imprensa escrita enquanto protege com regulamentação do Estado os abusos dos grandes oligopólios da mídia eletrônica que ameaçam os interesses públicos. Os meios eletrônicos audiovisuais têm um alto impacto sobre a população e devem ser regulamentados e regulados.

Meios eletrônicos e impressos

O modelo da Inglaterra não seria má ideia para o Brasil, desde que observadas as diferenças históricas, jurídicas, econômicas e culturais entre os dois países. Um sistema misto e assimétrico de regulação civil não estatal para a imprensa escrita e que inclua a regulamentação do Estado para as mídias eletrônicas poderia ser uma boa opção para o Brasil. Nosso país tem, engavetado no gabinete do Ministro das Comunicações, um anteprojeto de regulamentação (e não regulação) que inicialmente envolveria todos os meios de comunicação. No entanto, em entrevista publicada no site Telesíntese (20/6/2012), o ministro Paulo Bernardo afirmou que o novo marco regulamentador vai deixar de fora jornais, revistas e o jornalismo e “incluir a internet e a TV conectada”.

O anteprojeto não menciona a criação de nenhuma instância, social ou estatal, para regulação da imprensa. Apesar disso, eu apoio o tratamento diferenciado para as mídias impressas e eletrônicas na lei de imprensa brasileira. A imprensa escrita deve ser regulada, mas não necessariamente regulamentada por lei federal. A necessidade de uma lei de mídia que inclua jornais e revistas é discutível. Restringir por lei a liberdade de impressão pode fragilizar a liberdade de expressão.

Uma lei que não faça distinção entre os meios de comunicação eletrônicos e impressos e não delegue poderes reguladores a nenhuma agência poderia assumir a condição de um ordenamento legal de tendência monolítica e absoluta, a depender de quem esteja no poder. Potencialmente poderia plasmar-se em hegemonia indesejável do Estado e da política, sujeita a partidarização e todos os tipos de manipulações. O Estado e os políticos estariam a mediar os interesses da mídia e sociedade diretamente através de uma lei geral e única, sem nenhuma instância mediadora de regulação. No caso da mídia, a regulação civil da sociedade é um complemento necessário da regulamentação da lei. Ofícios em sequência. Sem os dois juntos, não há garantias de equilíbrio de interesses ou defesa dos interesses públicos.

Debate partidarizado

Estou convencido de que precisamos de regulação para a mídia, tanto impressa quanto eletrônica. Mas a regulamentação deve ser mantida apenas para os meios eletrônicos. O ministro das comunicações parece pensar do mesmo jeito. A mídia impressa deve ser regulada por uma instância civil da sociedade (com o concurso da imprensa), e não pelo Estado. Não se trata de estabelecer nenhum “controle social da mídia”, mas evitar a partidarização que pode interferir de forma danosa na atividade da imprensa e prejudicar o interesse público.

Sei que estou muito longe da realidade nacional sobre a regulação e a regulamentação da mídia. Meu ponto de vista é deliberadamente idealista. No nosso cotidiano político, o debate sobre a regulamentação foi excessivamente partidarizado e sequestrado por interesses políticos. E muitos políticos, via de regra, não sabem a diferença entre regulação e regulamentação. Se não houvesse tamanha falta de conhecimento, seria muito mais fácil convencer os adversários da regulação de sua necessidade em todas as plataformas em que se a mídia se apresente. Desde a tinta e o papel até as mídias de difusão eletrônica.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor