Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Invasão provoca atrito na mídia gaúcha

Nunca os problemas do meio ambiente, da economia (e, em particular, do agronegócio), bem como seus reflexos na mídia estiveram tão interligados como nesses últimos dias, durante e após a invasão de uma unidade industrial da Aracruz Celulose, perto de Porto Alegre.


As imagens e as notícias da pequena cidade de Barra do Ribeiro já percorreram o mundo: as agências européias e norte-americanas se encarregaram de divulgar a invasão das duas mil mulheres da Via Campesina, na madrugada de quarta-feira (8/3), Dia Internacional da Mulher. Até mesmo locais bem distantes do Brasil, como o Catar, já estão informados via AlJazeera.net.


Em geral, o tom do noticiário da mídia gaúcha é de condenação e indignação. O principal jornal de Porto Alegre, Zero Hora, do Grupo RBS, deu em manchete (quinta, 9/3): ‘Ação violenta do MST ameaça investimento de US$ 1,2 bilhão no RS’.


Reconhecido como o porta-voz do agronegócio no Rio Grande do Sul, o jornal Correio do Povo deu em manchete (10/3): ‘Estado rompe relações com a Via Campesina e intima líderes’. O governador interino, jornalista Antônio Hohlfeldt, declara na matéria de capa do Correio: ‘A Via Campesina não terá espaço para praticar seus atos hediondos no RS, pois será acompanhada de cima pela Brigada Militar’.


Motivo principal


Os fatos ocorreram durante a realização, na capital gaúcha, da 2ª Conferência Mundial sobre Reforma Agrária, promovida pela FAO, organismo das Nações Unidas para alimentação e agricultura, com a presença de representantes de 81 países, que debateram a questão até sexta-feira (10/3).


A manchete do Zero Hora coloca, com precisão, pelo lado empresarial, o foco de toda a questão: seriam mais de 1 bilhão de dólares que viriam para o estado, com uma nova fábrica de celulose da empresa, além de uns 50 mil empregos diretos e indiretos. E que estariam ameaçados pela invasão das mulheres camponesas.


Mas por que a invasão? Um ato de vandalismo, sim, certamente. Mas um ato que sinaliza para uma grave situação que se espalha pelos vizinhos Uruguai e Argentina. Como se sabe, grandes multinacionais européias estão construindo, no Uruguai – fábricas de celulose, as ‘papeleiras’, como dizem os ambientalistas. A reação do lado argentino, na fronteira com o Uruguai, foi rápida: barreiras de militantes verdes impedem, há dois meses, o trânsito pelas pontes que ligam os dois países.


O governo uruguaio defende as ‘papeleiras’ com o argumento divulgado, aqui, por Zero Hora: é investimento bem-vindo e proporciona os postos de trabalho tão necessários por lá.


A questão, a raiz do problema, é o eucalipto. Sabidamente, essa árvore altera o solo e afeta a biodiversidade. E, mais que tudo: agrava as secas no Sul do continente, seja no Rio Grande do Sul como no Uruguai e Argentina. Isto porque o eucalipto precisa sugar toda a água possível, em seu redor, para se desenvolver. Em apenas sete anos, por aqui, o eucalipto já oferece a fibra necessária para fabricar papel.


Talvez esteja aí o principal motivo pelo qual as multinacionais de celulose se deslocam, cada vez mais, para a América Latina para produzir aqui o produto que lá estão impedidas de fazer, em função de leis ambientais mais rigorosas.


Atos de violência


‘Eucalipto: vilão ou solução?’. Esta é a manchete de um suplemento especial do jornal gaúcho , de dezembro de 2005, sobre projetos das ‘papeleiras’. Em oito páginas, o suplemento já antecipava muitas das questões que, três meses após, incendeiam agora as manchetes da grande mídia gaúcha.


O suplemento resumia os debates de encontro com 200 participantes promovido pela Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e pela Agência de Notícias Ambientais – Ambiente JÁ – no auditório da Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Com a ausência da Aracruz – agora no centro das primeiras páginas locais –, o evento serviu para debater os projetos da Votorantim Celulose e Papel e da Stora Enzo, que vêm comprando terras no município de Rosário do Sul para o plantio de eucalipto.


Ambientalistas, acadêmicos, líderes do agronegócio e técnicos debateram a questão ao longo de todo aquele dia (30/11/2005) para chegar à conclusão apresentada pelo jornal : permanecem as dúvidas sobre os impactos ambientais da adoção de nova monocultura no pampa gaúcho. Houve momentos de muita tensão no debate, relata o jornal, entre os representantes das ‘papeleiras’ e os ambientalistas gaúchos.


Agora, toda esta tensão terminou contaminando a mídia gaúcha: na quinta-feira (9/3), sucederam-se notas e comentários de diretores de jornalismo no site Coletiva.Net, envolvendo fatos relativos à cobertura da invasão das militantes camponesas à unidade da Aracruz em Barra do Ribeiro.


‘Invasão da Aracruz gera estremecimentos na área da Comunicação’, informou uma manchete do Coletiva.Net. Os jornalistas das emissoras de TV Band-RS, Pampa-Record e SBT-RS acompanharam, de cima, os fatos e registram em seus noticiários.


A RBS TV ficou de fora. E não gostou. Em comunicado interno, sob o título ‘O orgulho de não dar o furo’, o diretor de telejornalismo da RBS TV, Raul Costa Jr., diz que ‘pela primeira vez’ ficou ‘feliz’ de ‘não dar antes uma notícia’. Na mensagem, o diretor da RBS TV ainda afirma: ‘Não somos confiáveis pra fazer propaganda de um crime’.


O diretor da Band-RS, jornalista Leonardo Meneghetti, rebateu em outra nota também divulgada pelo Coletiva.Net:




‘Lamento que ainda tenhamos profissionais que prefiram criticar a concorrência quando são furados. Jornalismo também se faz noticiando invasão de campo ou de empresa. E quem considera que isto é crime ou conivência mostra sinais de estar ultrapassado nas suas idéias. (…) Sonegar isto ao público é sonegar informação, e a Band não faz isso. (…) Sempre é mais fácil e cômodo criticar a vitória do concorrente do que reconhecer o erro’.


Respondendo, em uma nova comunicação, o diretor da RBS TV disse que ‘não julgou o comportamento dos concorrentes’, limitando-se a dizer que ‘as opções éticas de cada veículo devem ser julgadas pela sociedade, que retribui com audiência e credibilidade’.


Em outra nota, a editora regional de Jornalismo do SBT-RS, Cristiane Finger, diz: ‘Temos preocupação imensa com a ética e estamos chocados com o que vimos na unidade da Aracruz em Barra do Ribeiro’. Contestando versões divulgadas pelo Grupo RBS, ela revela que o SBT não foi avisado, previamente, sobre o que aconteceria:




‘Pessoalmente, recebi a informação de que algo aconteceria paralelo à 2ª Conferência Internacional de Reforma Agrária, que acontece na PUC-RS. Fizemos nossos trabalho de apuração. Nossa equipe seguiu os manifestantes da Via Campesina. Sem saber para onde e o que aconteceria’.


Antes de colocar as imagens no ar, em editorial, o SBT-RS, depois de frisar que não compactua com atos de violência, afirmou: ‘Não cabe à imprensa julgar. E sim apenas mostrar os fatos’. Para Finger, a preocupação com o ‘furo’, manifestada no comunicado da RBS TV, ‘é pura vaidade’.


Mais jornalismo


Os presidentes do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, José Carlos Torves, e da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), Ercy Torma, também analisaram o confronto entre os jornalistas das TVs gaúchas. Para Torves, não há nenhum problema no procedimento adotado pelos veículos que acompanharam a invasão da Aracruz. Ele entende ser legítimo o acompanhamento de ações dos movimentos sociais pelos jornalistas.


Torma afirma ao Coletiva.Net: ‘Imprensa não deve se omitir’. Mas a imprensa deveria ou não ter acompanhado a invasão?, pergunta o site. ‘Seria lamentável se ficássemos sabendo do fato sem ter nenhuma imagem’, diz o presidente da ARI. Ele acrescenta que a imprensa não cria os fatos e tem a obrigação de fazer a cobertura do que está acontecendo. ‘Foi um ato criminoso e de banditismo e a imprensa tem que tratar isso como tal’, entende Ercy Torma.


Na edição de sexta-feira (10/3), Zero Hora prossegue denunciando, em manchete de capa: ‘Ataque em Barra do Ribeiro teve origem em orientação do Exterior’. E acrescenta que haveria organizações internacionais – sem citar seus nomes – pregando a expulsão de multinacionais e o fim do agronegócio. Colunistas do mesmo jornal prosseguem, na mesma edição, na sua antiga linha de criminalizar os movimentos sociais, ‘transformados em verdadeiras empresas, com planejamento, estratégia e marketing’.


Não é segredo para ninguém: a RBS está rompida com os movimentos sociais há alguns anos. Coerente com o posicionamento pró-empresarial, seus órgãos não deveriam, contudo, tentar brigar com a notícia. Ainda mais quando os fatos ocorrem dentro de sua área de atividades. Ou se orgulhar, como diz a nota do diretor de telejornalismo da RBS, ‘de não dar o furo’. Ou ficar feliz ‘de não dar antes uma notícia’.


Como lembra o presidente da ARI, falta à mídia gaúcha – e, por que não, nacional? – mais exercício de jornalismo. O que significa: mais jornalistas fora das redações, lutando sempre pela notícia. E apurando e relatando o fato com a máxima acurácia. Seja ela uma invasão de empresa. Ou um simples buraco na calçada.

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Jornalista