Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Karla Dunder

‘No clima dos confetes e serpentinas chega a edição deste mês da revista Nova História. A publicação editada pela Biblioteca Nacional traz um interessante artigo sobre a relação entre o samba e a censura do Estado Novo, do professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia Adalberto Paranhos. O texto questiona e argumenta contra a idéia de passividade dos trabalhadores no período do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Em Os Desafinados do Samba na Cadência do Estado Novo, o autor mostra como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) perseguia e censurava a vadiagem e, em especial, os sambistas. Músicos e compositores eram vigiados e os discos obrigados a trazer o número de registro desse órgão.

Na onda de desenvolvimento capitalista, o regime impôs o culto ao trabalho, nada de exaltar a malandragem ou a boêmia nas canções. E a mulher? Claro, no seu devido lugar, em casa cuidando dos filhos.

Apesar de todas essas pressões, não foram poucos aqueles que burlaram esse sistema. O trabalho era apresentado, em muitas letras, como um fardo. Não faltam canções que retrataram a difícil luta pela sobrevivência, como as lavadeiras ‘lesco-lesco’, que davam duro no batente enquanto os homens ficavam na boa-vida. Ou como a famosa Amélia, aquela que era mulher de verdade, de Mário Lago. Essas mulheres também viravam a mesa, como mostra Oh! Seu Oscar, de Ataulfo Alves e Wilson Batista: ‘Cheguei em casa cansado do trabalho/Logo a vizinha me falou:/ Oh! Seu Oscar, tá fazendo meia hora/Que tua mulher foi-se embora.’ Também quebravam as regras do Estado Novo e caíam na boêmia.

Rodrigo Elias coloca pimenta na discussão sobre as origens da feijoada. Segundo o senso comum, a iguaria de feijão preto e carne de porco foi uma invenção dos escravos nas senzalas. Eles juntariam os restos de carne da casa-grande ao feijão. Mas não foi bem assim. Como relatam os viajantes, o feijão preto era a paixão nacional, como observou o francês

Saint-Hilaire, o alimento era indispensável na mesa do rico e praticamente a única opção do pobre. O prato costumava ser servido com carne-seca e toucinho. Já os escravos comiam feijão com farinha de mandioca e frutas. Nada de carne.

Elias aponta para um prato que misturava vários tipos de carnes, legumes e verduras do Império Romano. Aí estaria a gênese da feijoada. Esse tipo de mistura são tradicionais na Europa, como o cozido em Portugal, o cassoulet na França e a paella na Espanha e chegaram ao País, como feijoada.

Ainda, uma longa entrevista com o bibliófilo José Mindlin. O colecionador conta como nasceu sua biblioteca, o amor pelos livros e suas lembranças como agente da História brasileira. Sua atuação como secretário de Estado da Cultura, Ciência e Tecnologia em 1975, o caso Wladimir Herzog e o convite, do governo do presidente Fernando Collor para ser ministro da Fazenda.

Vale a pena ler o texto de Lilia Moritz Schwarcz, uma análise do trabalho de Nicolas Antoine Taunay por meio do quadro Cascatinha da Tijuca e Escravos de Escravos, de Antonio Risério.’



OSCAR CENSURADO
Adriana Pavlova

‘Tapem os olhos, crianças!’, copyright O Globo, 22/02/04

‘É bem provável que os bocejos aumentem. Ou então que poucos agüentem a maratona televisiva até o fim. No próximo domingo, pela primeira vez na história das transmissões do Oscar, está tudo armado para que não aconteça nenhuma surpresa que sacuda o público sentado em frente da TV para ver as estrelas do cinema. Quem estiver em casa estará vendo a cerimônia com cinco segundos de atraso técnico, os tais ‘cinco segundos de decoro’ usados pela rede ABC para evitar performances imprevistas, como a de Janet Jackson, no ínicio do mês, mostrando o seio no show de intervalo do Super Bowl.

A decisão que pode pôr por terra o que restava de espontâneo na maior festa da indústria cinematográfica é, até agora, a conseqüência mais evidente da onda de moralismo vivida pelos Estados Unidos desde que Janet deixou um dos seus seios escapulir da blusa, tendo 90 milhões de pessoas como testemunha. Depois da ceninha dela com Justin Timberlake muita coisa mudou por lá.

– O conservadorismo moral nos Estados Unidos não é de agora. Podemos dizer que esse é um traço da cultura americana. Esse conservadorismo se pronunciou nos anos 80 com a chegada do republicano Ronald Reagan ao poder. W. Bush surfa na mesma onda – afirma Williams Gonçalves, professor de relações internacionais da UFF e da Uerj. – A base de apoio do presidente é bastante conservadora. Além disso, é um ano de eleições e há uma atenção maior com a base governada por Bush.

Clipe de Britney teve horários proibidos

As reações contrárias à performance de Janet foram imediatas. A rede CBS de televisão deu a partida criando o tal atraso técnico na transmissão da premiação do Grammy. Janet não deu as caras e todos os artistas se comportaram tão direitinho que a rede ABC anunciou em seguida que copiaria o modelo de delay . Na esteira do peito nu de Janet, o último videoclipe de Britney Spears, no qual ela surge em cenas eróticas, teve horários proibidos na MTV. Britney, aliás, já havia escandalizado muita gente quando recebeu um beijo na boca, com língua e tudo, de Madonna, no último MTV Awards.

Tudo muito estranho para os brasileiros, que, nos próximos dias, vão ver no desfile de carnaval mulheres com tudo de fora ou, na atual temporada, divertem-se com o dia-a-dia desinibido dos participantes do ‘Big Brother 4’ e com as cenas de sexo da novela ‘Celebridade’. Será que essa postura conservadora dos americanos, exacerbada com os últimos acontecimentos, é conseqüência direta do governo W. Bush? Ou será um traço cultural muito anterior?

José Luiz Aidar, professor doutor da pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC-SP, tem certeza de que a onda moralista americana é anterior ao governo de W. Bush, mas, ressalta, as atitudes conservadoras ficaram mais fortes depois dos atentados de 11 de Setembro. A partir daí, as diferenças – em todos os níveis – dificilmente são bem assimiladas no território americano, embora a globalização seja um fato concreto:

– Seria bom pensar, sim, num conservadorismo da era Bush e da era Arnold (o ator Arnold Schwarzenegger, governador do estado da Califórnia) , em que a imagem do Exterminador foi confundida com a do governador. Mas há um conservadorismo americano que elegeu Bush, portanto que não foi só produzido por ele. Depois dos atentados de 2001, o território e a identidade americanos tornaram-se sites inseguros, subiram às superfícies textuais esses traços mais puros do conservadorismo que caracterizam o núcleo duro da identidade do americano médio. É o apoio a Bush quando ele fala em vingança e retaliação. É a união do povo contra o inimigo externo, o muçulmano, o terror do mal.

A tese da negação das diferenças e a conseqüente homogeneização do pensamento são defendidas por outro pesquisador de cultura contemporânea da PUC de São Paulo. Norval Baitello Júnior diz que o ‘discurso moralista e tacanho do governo dos Estados Unidos’ está apoiado em pesquisas de opinião pública. Ele é enfático: – As pesquisas apontam para o crescimento da mesquinhez, do individualismo e da miopia de horizontes de amplas faixas da população americana média, cujos horizontes culturais foram historicamente entregues à entidade aparentemente abstrata chamada mercado. Trata-se dos desdobramentos da arrogância de se acharem sozinhos no topo e passarem a se auto-referir, apagando, anulando, ignorando e até mesmo destruindo fisicamente o outro, o diverso, o diferente, ‘o-que-não-é-espelho’.

O escritor Silviano Santiago concorda que o comportamento público nos Estados Unidos é historicamente ultraconservador, só que com alguns relâmpagos de vanguarda, como o Festival de Woodstock. Para ele, a reação moralista do grande público diante do seio de Janet é coerente. Ele prevê mais reações em cadeia:

– Cada vez mais vão usar essa tática de atrasar as transmissões ao vivo e outra tendência é jogar para mais tarde os programas que tenham comportamentos mais permissivos.

Para a feminista Rose Marie Muraro, sexo está diretamente relacionado à falta de sexo. Radical, Rose Marie diz que os trabalhadores dos EUA só são tão eficientes porque têm por trás uma ética protestante baseada na repressão sexual. Daí o conservadorismo que volta a se espalhar: – O trabalhador brasileiro aproveita a vida muito mais. Nos Estados Unidos, por causa de tanta repressão sexual em busca da eficiência profissional, as pessoas acabam se tornando pervertidas. Ou então, já que são reprimidas, usam essa força para guerrear. Daí tanta vontade de brigar.

Nos Estados Unidos, qualquer exibição de sexualidade é considerada uma ação contra o Império. Por isso não me espanta a reação hipócrita deles em relação ao caso do ex-presidente Bill Clinton com a Monica Lewinsky.

Mas por outro lado, por ser mulherengo, Clinton não fez guerra. Hitler era impotente. Todos os grandes assassinos são impotentes.

Gilberto Braga alterou cenas fortes

O professor Carlos Alberto Messeder Pereira, da Escola de Comunicação da UFRJ, olha para o escândalo Janet como um retrato da era das celebridades. Ele também cita o affair de Clinton com a estagiária da Casa Branca para comparar reações:

– A lógica das celebridades tem regras próprias para o bem e para o mal. Às vezes, o público tolera algo para depois recusá-lo no dia seguinte. Quem diria que Clinton iria se safar do escândalo com Monica Lewinsky? O que é um peito comparado com essa história no Salão Oval? Há o conservadorismo, sim, no caso de Janet, mas a mídia também é um componente forte nesse jogo de eleger ou não temas para serem explorados.

Pode ser que o Efeito Janet tenha se globalizado e chegado ao desinibido Brasil. Gilberto Braga, que brinca com celebridades na atual novela das oito, acredita que os beijos de Madonna e o seio escorregadio de Janet são jogo de cena de estrelas. O autor admite, no entanto, que até ele teve que dar uma meia trava nos personagens de sua novela: – No início da novela havia situações mais fortes que o público conservador não recebeu muito bem. Acho uma pena, porque era o que eu mais gostava. Basicamente, a relação Laura-Marcos (Cláudia Abreu e Márcio Garcia) e Vladimir (Marcelo Faria) com as duas moças (os personagens de Deborah Secco e Juliana Paes) . Foi tudo bem atenuado, eu não estou aqui para ofender a ‘família brasileira’. É difícil, em televisão, a gente saber até onde pode ir.’



Frank Rich

‘Minha heroína, Janeth Jackson’, copyright Folha de S. Paulo, 22/02/04

‘Pode ser um trabalho sujo, mas alguém tem que fazê-lo. Três semanas depois do escândalo do busto, quase ninguém saiu em defesa de Janet Jackson. Eu o faço de todo coração. Ao expor um seio por dois segundos em um golpe publicitário muito eficiente, a cantora expôs, igualmente, quanta gente boba temos nos EUA. E devemos agradecê-la pelo serviço público genuíno que ela prestou.

Seria possível argumentar que Janet Jackson é a única figura honesta nesse Super Bowl da hipocrisia. Os objetivos dela eram transparentes -ressuscitar uma carreira em decadência, às vésperas do lançamento de seunovo álbum-, e Jackson conseguiu o que queria. Não está fingindo muito remorso, aliás. Jackson se recusou a aparecer na entrega do prêmio Grammy porque a rede de televisão CBS havia solicitado que se submetesse a um canhestro e lacrimoso ritual de pedir desculpas ao país pelo crime cometido uma semana antes. Em contraste, Justin Timberlake fez o que lhe mandaram, como um menino de escola enviado ao escritório do diretor para uma reprimenda.

Para que os protestos generalizados tivessem justificativa, seria preciso acreditar que as famílias da nação foram apanhadas completamente de surpresa pelo ‘pas-de-deux’ de Janet e Justin enquanto assistiam a um espetáculo do gênero ‘Mulherzinhas’. Como disse Laura Bush, ‘os pais não estavam prevenidos, para desligar seus televisores antes que aquilo acontecesse’. Não estavam? Antes do ocorrido os pais viram uma apresentação na qual Nelly, com a mão na virilha o tempo todo, dava a ordem para que uma multidão de ‘cheerleaders’ arrancasse as saias. Que sinais esses adultos pobres e indefesos estavam esperando antes de afastar seus filhos do televisor? Aparentemente, só uma cena de estupro simulado serviria como alerta suficiente.

E, depois do fato, a audiência simplesmente não conseguia parar de assistir. O serviço de busca Lycos, na internet, informou que o número de buscas pela expressão ‘Janet Jackson’ bateu o recorde dos atentados de 11 de Setembro, estabelecido pouco depois dos ataques.

Para as pessoas que ainda não estavam saciadas, os canais de notícias na TV a cabo não paravam de repetir o vídeo, para nos lembrar o quanto a cena fora deplorável. Mesmo que a essa altura as redes de televisão estivessem ocultando o seio com um borrão eletrônico, ainda havia certa emoção erótica a ser extraída: um homem arrancando a roupa de uma mulher era tão excitante para a platéia quanto a carne revelada pelo gesto, ou talvez até mais. Mas admiti-lo em voz alta é tomar um caminho que nossos guardiões morais não aceitam. A regra não escrita de nossa cultura é a de que o público está sempre certo. A idéia de que as pessoas poderiam exercer o livre arbítrio e desligar a TV nos programas de mau gosto, ou evitar a televisão de vez jamais é mencionada na TV, por motivos óbvios relacionados aos interesses fiscais das redes. Não é certo insultar os fregueses.

Já que o público não tem nenhuma responsabilidade sobre cenas como a do Super Bowl, quem deve ser responsabilizado? Se estudarmos as admoestações dos programas sobre o assunto, ou as tiradas dos editoriais do ‘Wall Street Journal’ e de organizações direitistas, o padrão descoberto será revelador: a MTV, a CBS e sua matriz, Viacom, são os únicos alvos de invectivas. Já a National Football League (NFL), organizadora do Super Bowl, escapa praticamente sem menção. Culpar a operação esportiva de mais alta audiência no país, afinal, acarretaria o risco de insultar os espectadores de futebol americano, aos quais esses vigilantes da respeitabilidade moral atendem, em busca de diversão e de lucros.

Há quem preveja que retardar as transmissões de eventos ao vivo em alguns segundos para impedir a ocorrência de novos ‘defeitos de guarda-roupa’ (como acontecerá durante a transmissão da cerimônia do Oscar na noite do próximo dia 29) será a morte da TV espontânea, ao vivo. Mas assim que a audiência de um programa de premiação cair, esse novo profilático eletrônico será discretamente abandonado.

Jackson, a grande vencedora de todo o episódio, já está de volta às telas. Sua reabilitação oficial começou logo depois do Super Bowl, quando a BET (Black Entertainment Television) começou a transmitir uma série de dez programas curtos sobre o ‘mês da história negra’, em que Jackson apresenta perfis de figuras históricas importantes como Harriet Tubman e Sidney Poitier.

Diz o comunicado da rede sobre a série: ‘A sra. Jackson usa um clássico conjunto preto nos programas’. A roupa de dominatrix que ela usou no Super Bowl não era preta e clássica, também? Bem, jamais subestimem o poder da sinergia. Afinal, a BET é mais uma subsidiária controlada integralmente pela Viacom.

Tradução Paulo Migliacci’