Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Lula, honoris causa e o preconceito

Deparei com a manchete de uma coluna da revista Veja, segundo a qual Lula, por ‘trucidar’ a língua portuguesa, não mereceria ganhar o título de honoris causa oferecido pela Universidade de Coimbra no dia 30 de março de 2011. Veja aqui.

Muitas pessoas que pensam de forma semelhante à da revista Veja podem estar se questionando quão absurdo foi ter sido concedido, de acordo com o texto da coluna de Augusto Nunes, ‘o título de doutor honoris causa a um homem que nunca leu um livro nem sabe escrever’. Gostaria de tornar pública minha indignação em relação a esse amontoado de preconceitos de toda ordem veiculados naquele pequeno texto daquela coluna. Encaremos os fatos e assumamos que esse homem que, segundo a coluna da Veja, ‘nunca leu um livro nem sabe escrever’, foi o presidente que mais apoiou financeiramente a educação no Brasil de todos os tempos.

Vamos fazer um pequeno esforço para nos lembrar – e nem faz tanto tempo assim – que durante a era FHC os professores universitários da rede federal, que, além dos mestrandos e doutorandos, são os pesquisadores do Brasil, ficaram oito – oito! – anos sem 1 centavo de aumento. Durante a era Lula, investiu-se em melhores salários, no aumento do número de universidades públicas, no aumento do número de bolsas de mestrado e doutorado, no aumento das bolsas do Prouni, entre outras ações que visaram à melhoria do sistema educacional do Brasil e, de forma metonímica, do Brasil como um todo.

O pior do pior

Já FHC, doutor, último catedrático da USP e ex-professor da Sorbonne, ofereceu tão somente condições de sucateamento com vistas à privatização das Universidades públicas. Imagine como seria um país que não produz conhecimento, que não faz pesquisa? É público e notório que a grande maioria das universidades particulares visam apenas ao lucro e são raras as que têm um programa de pesquisa ou de extensão.

Por fim, a afirmação da coluna da revista segundo a qual Lula ‘trucida’ o português revela uma ideologia segundo a qual – e infelizmente ainda muito corrente no imaginário popular – o português de Portugal é mais puro, melhor, mais correto que o do Brasil por se aproximar mais da gramática normativa. Vejamos um trecho primoroso da coluna de Nunes:

‘Faz mais de 500 anos que o idioma oficial do Brasil chegou a bordo das primeiras caravelas. Mas os governantes da antiga colônia ainda não aprenderam a falar português.’

Àquele texto, segundo o qual Lula ‘trucida’ o português, ainda subjaz um preconceito maior ainda: se o português do Brasil é inferior ao de Portugal, o português do nordestino é o pior do pior, já que o Nordeste é uma região historicamente estigmatizada no Brasil.

Visão restrita e distorcida

Acontece que a gramática normativa foi construída sobre as normas do português de Portugal, e não sobre as do português do Brasil. E mais: as normas gramaticais nada mais são que a escolha de um certo tipo de variante, baseadas em alguns textos literários de uma determinada época. Portanto, nada mais arbitrário que a gramática normativa. Eu, como jornalista e linguista, duvido muito que qualquer brasileiro, ou qualquer jornalista da revista Veja, siga cegamente todas as regras dessa gramática, o que seria, no mínimo, ridículo.

Seguramente, os professores de Coimbra, uma das universidades mais antigas do mundo, têm uma visão muito mais ampla sobre conhecimento, política e sobre a própria língua portuguesa que aquela restrita e distorcida visão de mundo que se apreende daquele texto infeliz.

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Jornalista e doutorando em Semiótica e Linguística Geral pela USP