Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Mais difícil do que parecia

Feitas as avaliações sobre as estratégias de marketing (as atuais ditadoras da democracia), sobre o oportunismo de politiqueiros de plantão, que não hesitaram em utilizar um debate sobre um tema tão grave como a violência social para fazer proselitismo e oposicionismo ao atual governo, e sobre o nítido descontentamento da população com as políticas de segurança pública dos governos brasileiros, aprofundemos a discussão e analisemos o significado da negativa da maioria do povo brasileiro à proibição do comércio de armas e munição e o que isso deve refletir nas políticas de controle da violência.

Sem dúvida, foi decepcionante ver pessoas e entidades com trabalhos reconhecidos internacionalmente no combate à violência tendo todo o seu acúmulo de anos de estudos, pesquisas e experiências contestados, sem qualquer fundamentação, por entidades criadas às vésperas do referendo para servirem de ‘laranjas’ da indústria bélica e por pessoas que têm responsabilidade direta pela incompetência da segurança pública e pela negação histórica dos direitos humanos. Irônico é ver que justamente esses acabaram se arvorando em ‘defensores dos direitos individuais’. Esqueceram de dizer aos eleitores que o direito que defendiam era o de uma pequena elite de indivíduos.

No país campeão mundial em assassinatos por arma de fogo, não é tão surpreendente que a maioria da população não admita a proibição de um instrumento que, afinal, é muitíssimo utilizado. A relação é direta: se a população brasileira não considerasse a arma algo muito necessário, não a utilizaria tanto. Pena que na maioria das vezes a considere necessária para matar pessoas conhecidas por questões tão banais como brigas de família, entre vizinhos, em bares, festas e no trânsito, como bem comprovam todas as estatísticas oficiais.

Mas duas conclusões são obrigatórias para quem quer continuar pensando os rumos das políticas de controle da violência e de participação popular. A primeira, tendo em vista o caráter de protesto do voto ‘não’, é a demonstração de que a sociedade está pronta para manifestar seu descontentamento com o Estado e suas instituições, mas que não pretende fazer qualquer esforço para auxiliar na busca de soluções para os problemas sociais. Soluções que os governos, sozinhos, não estão alcançando. Essa falta de comprometimento com as ações coletivas também fica clara pela escolha da primitiva opção individual de segurança – a arma, descartando-se a opção alternativa apresentada, o desarmamento da população pela proibição do comércio.

Tarefa mais difícil

Isso também deriva de uma visão paternalista de Estado, tendo-o como o ente que deve resolver todos os problemas da sociedade, enquanto o indivíduo se preocupa unicamente com suas questões pessoais. A cultura da participação nas decisões e o sentimento de integrar uma comunidade, tendo responsabilidades com ela que vão além do pagamento de impostos, demonstraram-se realidades distantes da sociedade brasileira.

O sentido maniqueísta dado ao debate, superficializando-o a ponto de dividir a sociedade entre os cidadãos de bem (que podem usar armas) e os bandidos (que deveriam ser desarmados), afastou o real debate, que deve colocar o indivíduo como um dos componentes de uma sociedade que é violenta por refletir a soma das violências individuais.

Partindo dessa premissa, chegamos à segunda conclusão: a banalização da violência como forma de solução de conflitos é mais grave do que se pensava. O povo, em ampla maioria, afirmou que poder matar outras pessoas é um ‘direito’ que não deve ser retirado, admitindo a arma de fogo e sua utilização como a melhor forma de defesa contra possíveis agressões. A disseminação de uma cultura de paz, em contraponto à banalização da violência, será uma tarefa muito mais difícil do que se previa. Essa postura simpática à violência já se demonstrava nos debates públicos durante a ‘campanha eleitoral’ anterior à votação, onde os representantes do ‘sim’ eram habitualmente hostilizados por eleitores do ‘não’. Mais grave, porém representativo da mesma cultura, foi vermos autoridades públicas em demonstração de grande irresponsabilidade ao defenderem abertamente que a solução para a violência é a pessoa estar armada, jamais devendo abrir mão desse direito de matar outros para se defender. Ou seja: ‘armar o cidadão é a solução’. Um profundo desserviço prestado à cultura de não-violência.

Não para sempre

Outra constatação importante é a incrível semelhança da campanha de controle de armas com a campanha pela abolição da escravatura, ocorrida há pouco mais de um século, ambas de abrangência mundial. O Brasil é primeiro lugar em mortes por arma de fogo. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. A população considerou por cerca de 400 anos a escravização dos negros como um direito dos cidadãos de bem (brancos que tivessem condições de comprá-los) e como algo essencial para a economia do país. Qualquer semelhança com os argumentos usados na campanha dos que defendem o armamento não é mera coincidência. A resistência encontrada na sociedade para proibir o comércio de negros foi, por muitos anos, maior do que a encontrada hoje para proibir o comércio de armas. Atualmente, os negros e toda a sociedade ainda sofrem as conseqüências desse ‘direito’ de escravizar, como sofrem com o ‘direito’ de matar.

Contudo, o trabalho dos defensores do Sim está longe de ter sido em vão. Destarte não se haver conseguido proibir o comércio de armas e munição no Brasil ou conscientizar a maioria dos brasileiros do mal que esse comércio representa, por mérito deles o país conta com uma lei de controle de armas apontada pelo ONU como uma das mais avançadas do mundo. Muitas vidas já foram salvas por ela e pela campanha de desarmamento. Segundo a Unesco, o número de mortes por armas de fogo no ano de 2004 foi 15,4% menor do que seria pela média histórica de crescimento desses crimes, diminuindo 8,2% em relação ao ano anterior.

Esses resultados, somados à oportunidade criada para que se fizesse um amplo debate sobre o problema social decorrente da proliferação indiscriminada das armas de fogo, o que resultou em 33 milhões de brasileiros dizendo Sim à proibição de seu comércio, já representaram uma grande vitória. As ações para garantir cada vez mais o controle de armas, no Brasil e no mundo, continuam, porque os interesses financeiros conseguem se sobrepor aos interesses humanitários muitas vezes e por muito tempo, mas não sempre e nem para sempre.

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Advogado criminalista, membro da Anistia Internacional, supporter da campanha Armas Sob Controle/Controlarms e representante da Frente Brasil Sem Armas no RS, estado onde o ‘não’ obteve o maior índice de votos