Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Marcio Moreira Alves

‘O ambiente político tornara-se progressivamente pesado desde o princípio de março. No dia 13, o comício pelas reformas de base, promovido pelo presidente João Goulart na praça fronteira à Central do Brasil e ao Ministério da Guerra, parecia tornar inevitável o confronto entre as forças conservadoras e a esquerda. Carlos Lacerda, velha vivandeira dos quartéis, declarou ter sido aquela noite a última em que as Forças Armadas teriam garantido a segurança de comunistas. Miguel Arraes, governador de Pernambuco, comparecera contrariado, por temer uma intervenção federal no Estado. O embaixador Araújo Castro, ministro das Relações Exteriores, declarou que ir a comícios não fazia parte de suas obrigações e ficou no Itamaraty, a 200 metros do palanque.

Na verdade, a crise final do governo João Goulart começou em outubro de 1963, quando o presidente teve de retirar do Congresso um pedido de estado de sítio. Interpretado como um primeiro passo para a implantação de um regime de exceção, o pedido foi negado, inclusive pela maioria do PTB, partido presidencial, e pelas esquerdas. Em março de 1964 as crises se acumularam dia a dia. Os episódios decisivos foram a revolta dos marinheiros, liderados pelo Cabo Anselmo, agente da CIA infiltrado, que ocuparam o Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Presos pelo Exército no Batalhão de Guardas, foram logo libertados por ordem do presidente da República, uma quebra da hierarquia militar que resultou no pedido de demissão do ministro da Marinha e de seu chefe de Estado-Maior. Finalmente, no dia 30, João Goulart compareceu a uma reunião de cerca de dois mil sargentos no Automóvel Clube, no Centro do Rio, quando pronunciou um discurso inflamado, anunciando que faria as reformas de base na lei ou na marra.

Entre os militares não eram as reformas nem a retórica presidencial que indignava. Era a quebra da disciplina e da hierarquia, pilares centrais da organização das Forças Armadas.

Toda essa movimentação era amplamente coberta pela imprensa e apresentada pelos jornais conservadores, os de maior tiragem, como a preparação de um golpe destinado a implantar uma república sindicalista, com conotações comunistas. O medo das classes médias era estimulado por manifestações religiosas, como o ‘Rosário em Família’, liderado por um padre americano, nascido na Irlanda, Patrick Peyton. Foi ele um pioneiro das pregações religiosas pelo rádio e TV. Convidado a vir ao Brasil em 1964, mobilizou católicos nas principais cidades com o lema ‘a família que reza unida permanece unida’. Em seguida, organizaram-se as marchas da família com Deus pela liberdade, com o apoio dos governadores de São Paulo, Adhemar de Barros, do Rio, Carlos Lacerda e muitas organizações patronais. A marcha paulista, a 19 de março, mobilizou cerca de 300 mil pessoas. A do Rio, já depois da vitória do golpe, trouxe dois milhões para as ruas, a 2 de abril.

A efervescência política provocada por essa série de acontecimentos dividiu as redações. No ‘Correio da Manhã’, velho e prestigioso jornal liberal, as discussões racharam a equipe dirigente, cuja maioria terminou ficando a favor da derrubada de João Goulart. Três dias antes do golpe o jornal começou uma série de artigos de primeira página cujos títulos definem sua posição: ‘Chega!’ ‘Basta!’, ‘Fora!’. É que, na nossa memória histórica, uma intervenção militar deveria ser rápida, seguida pela devolução do poder aos políticos civis. Para nós, uma ditadura militar prolongada era inimaginável no Brasil. Afinal, não éramos nenhuma república bananeira, pensávamos. Detalhe curioso: os três violentos editoriais contra Jango foram escritos por um trotskista histórico, o editor chefe do jornal, Edmundo Moniz. Acabaria, como muitos de nós, inclusive a dona do ‘Correio da Manhã ‘, a indomável Niomar Moniz Sodré, exilado e com os direitos políticos cassados.

José Serra, que era o presidente da UNE, entidade então consultada pelos dirigentes da República, acha que Goulart cometeu premeditado suicídio político. Não tinha nenhuma proposta concreta para as reformas nem conferira a solidez do chamado ‘dispositivo’ de seu chefe da Casa Militar, general Assis Brasil. Mesmo assim, tentara prender Carlos Lacerda e preparava uma intervenção em Pernambuco para depor Miguel Arraes. Bravatas puras.

Depois de ouvir pelo rádio o primeiro ato institucional, que transferia aos militares o poder de legislar e de cassar mandatos executivos e parlamentares, fui à casa de meu pai, prudente militante do PSD mineiro, que me disse que os militares se preparavam para ficar 20 anos no poder. Achei um absurdo. Mas Santiago Dantas, com quem trabalhara, disse-me:

– Ao contrario da inteligência, que não é contagiosa, burrice pega. E esses militares são burríssimos. Vão ficar enquanto puderem. Prepare-se.’



Laura Mattos

‘Programas relembram os anos de chumbo’, copyright Folha de S. Paulo, 28/03/04

‘Serão poucas, mas boas as opções de programas sobre os 40 anos do golpe militar no Brasil. A partir de hoje, a televisão relembra o 31 de março de 1964 com uma série de documentários, reportagens, debates e até show.

A programação mais voltada ao assunto será a da TV Cultura. Com uma semana inteira temática, torna-se a principal alternativa entre as redes abertas.

Os destaques são os documentários ‘AI-5, o Dia que Não Existiu’, do jornalista Paulo Markun, e ‘Marighella – Retrato Falado’, do cineasta Silvio Tendler.

O primeiro reconstitui com atores uma sessão histórica da Câmara, de 12 de dezembro de 1968, na qual parlamentares votaram contra a licença para cassar o então deputado Márcio Moreira Alves -que havia proferido discurso pregando boicote aos militares.

‘AI-5’ reproduz célebre discurso de Mário Covas (1930-2001), que gravou depoimento para o documentário meses antes de morrer. Outro ponto forte são áudios com declarações marcantes, como a do presidente Costa e Silva ao tornar público, em 68, o Ato Institucional nº 5, dando início à fase mais violenta da repressão.

O longa sobre Marighella (1911-1969) explora depoimentos de pessoas próximas ao guerrilheiro, que lutou contra as ditaduras de Vargas e militar. As revelações mais interessantes ficam por conta de sua mulher, Clara Scharf. Seus relatos misturam forte conteúdo histórico com ar pitoresco.

Ela conta, por exemplo, que na primeira vez que foi preso, nos anos 30, o marido adquiriu problema na visão por ter sido torturado com luz nos olhos. Teve de usar óculos, o que detestava. Certo dia, comprou um livro dos EUA com dicas de como ‘se livrar’ dos óculos. Devorou a leitura e disse: ‘É a primeira vez que concordo com um americano’.

A maratona da Cultura começa nesta noite, às 23h30, com uma seleção de curtas sobre o período, no ‘Zoom’ (veja quadro ao lado).

Amanhã, o ‘Roda Viva’ entrevista o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa sobre o período. Na mesma linha seguirá o ‘Observatório da Imprensa’ (da TVE do Rio), terça, com depoimento do cineasta Nelson Pereira dos Santos, entre outros. Além disso, a educativa produz o show ‘Pra Não Dizer que Eu Não Falei das Flores’, no Rio, na quarta. Estarão no palco, entre outros, Dudu Nobre, Chico César e Biquíni Cavadão. Vai ao ar em 4 de abril.

Uma visão mineira virá com o documentário ‘Crônica de um Golpe’, da Rede Minas. Didático, traz uma cronologia do regime, com entrevistas de personagens perseguidos, como Fernando Gabeira, Frei Beto, Miguel Arraes e Ignácio de Loyola Brandão.

Até o ‘Cartão Verde’ entra no pacote, com a ditadura nos esportes. A programação termina com o ‘Vitrine’, no qual Marcelo Tas faz uma análise da propaganda institucional do governo militar.

A Globo não investiu na data. Fará só cobertura dos eventos relacionados a ela. Haverá uma série de reportagens na Globo News. A primeira vai ao ar na quarta, e a última, em 21 de abril, 20º aniversário do comício pelas Diretas na Candelária. O ‘Jornal da Band’ trata do assunto de amanhã a sexta, com entrevistas de Delfim Neto, Gabeira e dos ‘Josés’ Serra, Genoino e Dirceu. (Colaborou Marcio Pinheiro, free-lance para a Folha)’



Cássio Starling Carlos

‘Filme traz à luz o lado mais negro da ditadura’, copyright Folha de S. Paulo, 28/03/04

‘Sabe-se que documentários se distinguem de ficções porque neles predomina uma fidelidade a fatos, um poder revelador de verdades, em suma, uma certa objetividade. Em alguns casos, porém, o formato do documentário consegue apreender algo além do factual, ultrapassar a almejada objetividade e revelar subjetividades.

É o que se vê em ‘Tempos de Resistência’, dirigido por André Ristum, que será exibido na próxima quarta, aniversário do golpe de 64, no festival É Tudo Verdade.

O filme é construído a partir de depoimentos de ‘sobreviventes’ dos anos de chumbo, militantes de esquerda que participaram da luta armada contra a ditadura militar. Suas falas se encarregam de testemunhar primeiro os ideais (o combate ao regime, a luta por uma sociedade igualitária ou ‘comunista’); depois, a crise de suas utopias (com o recrudescimento da repressão -a partir do AI-5- e o desmantelamento das guerrilhas urbana e rural); por fim, os fantasmas da luta armada (com a tortura, a morte e o exílio).

É com essa ‘evocação’ que o documentário ultrapassa os limites do factual e traz à tona o que de fato assombra. Das vozes dos ex-guerrilheiros emana não apenas a memória e a saudade dos companheiros mortos. Por meio delas, ‘Tempo de Resistência’ consegue registrar aquilo que suas imagens jamais mostram -o torturador, fantasma onipresente que move a máquina da dor ou a ‘manivela que dispara o choque elétrico’, como relata em detalhes uma de suas tantas vítimas.

Em vez de opor ‘bons’ e ‘maus’ ou de isentar os convertidos à luta armada de toda responsabilidade (como se não tivessem feito, eles mesmos, escolhas, inclusive por atos terroristas), ‘Tempo de Resistência’ acerta ao exibir o que mais se esforça para não se mostrar aos olhos da história celebratória: o horror. TEMPO DE RESISTÊNCIA. Quando: quarta (31/3), às 21h. Onde: Cinesesc (r. Augusta, 2.075, tel. 0/xx/11/3082-0213). Quanto: entrada franca.’



Ives Gandra da Silva Martins

‘Os 40 anos de revolução’, copyright Jornal do Brasil, 25/03/04

‘Em 1965, com a edição do Ato Institucional nº 2, enviei uma carta ao senador Mem de Sá, à época vice-presidente do Partido Libertador, informando-lhe que até que o Brasil voltasse a ser uma democracia, não participaria mais de atividade partidária.

Tinha dirigido por 3 anos o Diretório Metropolitano da Cidade de São Paulo, como seu presidente, por indicação de Mem de Sá, Raul Pilla, Brito Velho e Paulo Brossard, vencendo, na ocasião, em eleições para a presidência, o anterior presidente Rodrigues Alves.

Apesar da Constituição de 1988, não voltei à vida política, pois entendo que o Brasil ainda não é uma democracia, visto que a infidelidade partidária transforma cada parlamentar em um estelionatário eleitoral, sempre que sua eleição não for devida a votos próprios, mas àqueles acrescidos pela legenda. Só tem, a meu ver, direito de mudar de partido aquele deputado que se elegeu com seus votos, sem necessidade dos adendos partidários.

Na minha visão de intransigente defensor da democracia, não posso deixar, todavia, como estudioso da história e membro de dois Institutos Históricos (São Paulo e Rio Grande do Norte) e da Academia Paulista de História, de tecer considerações não sobre a preferência política, mas à guisa de diagnóstico dos fatos que levaram àquele movimento insurrecional, em 1964.

É de se lembrar que o presidente Jango Goulart pretendia impor uma ditadura sindicalista no país, inclusive subvertendo a hierarquia militar, ao escolher pessoa de patente inferior para comandar uma das armas da República. Seu discurso de 13 de março foi um discurso preparatório para um golpe de Estado, a que a nação brasileira respondeu com a famosa marcha de 19 de março, reunindo, na Praça da Sé, quase um milhão de pessoas.

É impressionante verificar que o povo, à época, rejeitava Jango Goulart, mas pelo fato de o regime ser presidencialista e não parlamentarista – o PL que eu presidia era um partido que sempre lutou pelo parlamentarismo no Brasil -, o choque inevitável entre os desejos de uma ditadura sindicalista e de esquerda e a rejeição popular a esse objetivo terminou por implantar um regime de exceção – não sangrento, no período de Castelo Branco – que eliminou direitos políticos próprios da democracia, ainda que não completamente, pois, ao criar, com o A.I. nº 2/65, dois conglomerados (Arena e MDB), admitiu eleições parlamentares, com limitações de poderes, postando-se os Atos Institucionais, acima da Constituição.

Tal conformação do regime é que me levou – após o A.I. nº 2 – a abdicar da política partidária.

Não posso, todavia, deixar de reconhecer – nada obstante contrário ao sistema e a qualquer tipo de ditadura – que os frutos decorrentes daquele período nem sempre foram maus. Muitos deles foram bons. Ao caos econômico na época da queda de Jango, sucedeu período, de 1964 a 1980, em que a economia cresceu de tal forma que se pôde falar em ‘milagre brasileiro’ e, se não fosse o 2º choque do petróleo, talvez o Brasil e os demais países emergentes continuassem, na década de 80, a se desenvolver. Fatores externos e não internos abalaram, pois, a economia, na década de 80.

O fato, todavia, mais relevante é que, naquele período, os direitos dos contribuintes eram consideravelmente mais respeitados pelas autoridades governamentais que nos dias atuais, lembrando-se que, sob Roberto Campos e Bulhões (1964 a 1969), a carga tributária estava em torno de 24% e não nos escandalosos e confiscatórios 38% da atualidade.

Quem sustentava o poder – o contribuinte – sempre foi muito melhor tratado pelas autoridades fiscais e governamentais no regime de exceção, do que é tratado na atualidade, transformado que foi – para um país que não presta serviços públicos – em autêntico escravo da gleba.

Outro aspecto relevante diz respeito à forma pela qual o país saiu da exceção para a democracia, visto que o Brasil tinha uma ‘ditadura’ sem ‘ditadores’, em face do rodízio dos generais no poder, segundo os períodos eleitorais pré-estabelecidos. Mesmo ‘sem chances eleitorais’, meu particular amigo Ulisses Guimarães concorreu – assim como um general da reserva – perdendo a eleição no Congresso Nacional, por insuficiência de votos dos parlamentares daquela época.

O certo, todavia, é que o próprio povo, que desejou a revolução contra Jango – a marcha da família, de 19 de março, a que assisti, foi inequívoca demonstração de repulsa a seu governo -, exigiu a volta à democracia, tendo participado, como presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo, do Movimento por uma Constituição exclusiva.

O exame, na atualidade, do Movimento de 31 de março de 1964, deve não perder sua perspectiva histórica e ser feito sem a emoção política, pelos que ainda atuam no cenário partidário do país. O que deve prevalecer é a visão que leva à ponderação, pelo historiador, dos fatos que constroem ou destroem a humanidade.

E, como todos os movimentos políticos, a revolução – pouco sangrenta, se comparada às revoluções de todos os países hispano-americanos, como, por exemplo, as da Argentina, do Chile e de Cuba – tem aspectos negativos, o principal deles a quebra do regime democrático, e aspectos positivos, como o crescimento da economia, o pleno emprego até 1980 e o respeito ao direito dos contribuintes e ao Poder Judiciário.’