Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Notícias do Líbano

De Beirute a Jerusalém, do jornalista Thomas L.Freedman, de 1989, é um dos livros mais impressionantes já escritos sobre uma guerra. Relata a loucura em Beirute, submetida à guerra civil e aos ataques de Israel desde 1975, na temporada que Freedman assistiu e da qual participou, a partir de 1979. Ao fim de cinco anos acompanhando de perto os acontecimentos, sua conclusão é de que ‘não há, de fato, cura para os males do Líbano, somente curativos paliativos sobre um corpo político minado por um câncer’.

O diagnóstico sobre a origem desse câncer sempre provoca discussões apaixonadas, mas o relato do correspondente do New York Times (já de volta aos Estados Unidos) não deixa dúvida sobre o avanço da doença. Haverá quem não aceite o tom distanciado e levemente irônico do texto, que pode ter desviado o autor do cerne de algumas questões. Mas não era essa a sua intenção. Ele quis mostrar o irracionalismo, através da reconstituição de uma cidade na qual muitas mortes não têm como ser explicadas (porque não têm mesmo uma causa), pontes têm placas advertindo tanques a ali não estacionar, cidadãos sofisticados praticam seu golfe ao lado de locais bombardeados, como se tudo isso constituísse uma ‘caixa de Skinner’ ao vivo, o homem de volta a um primitivo estado de natureza hobbesiano.

Como o ser humano sobrevive nesse caos, que o ameaça permanentemente de morte, sem que possa supor quando, de onde e em que circunstâncias ela se lhe apresentará. Freedman conta uma história que exemplifica à perfeição esse processo seletivo que assegura a sobrevivência humana em circunstâncias assim tão desfavoráveis.

Guerra perdida

Uma mãe e sua filha estavam em um apartamento localizado na parte ocidental de Beirute, sob bombardeio da artilharia israelense. Encolhidas no meio do apartamento para evitar os tiros e os estilhados que eles provocavam, viram um pequeno rato cinzento sair de uma tábua solta do piso. Esqueceram tudo, os tiros, os vôos rasantes dos aviões militares, as luzes sinalizadoras da mira das armas e saíram à caça do roedor. ‘Posso suportar um bombardeio, mas não agüento um rato dentro de casa’, explicou Ihsan Hijazi.

Mesmo no conforto da distância desses acontecimentos atrozes, freqüentemente acionamos mecanismos de despiste como esse para suportarmos a carga que desaba sobre a nossa consciência. Mas na segunda-feira retrasada, cumprindo meu ritual de leitura inicial dos jornais, no banheiro, ao deparar com a foto do bebê morto pelos canhões de Israel, dentro de sua casa, dormindo, o mecanismo de proteção entrou em colapso. Amassei o jornal e o joguei o mais longe que pude. Esmurrei a desgastada porta do banheiro, de folha de compensado, e chorei até me acalmar e retomar os procedimentos de início de uma semana de trabalho ‘normal’, na guerra não-declarada de Belém do Pará.

Não há razão que explique a morte brutal daquela criança da fotografia. Israel perderá essa guerra, mesmo que a ganhe, se provocou pelo mundo inteiro reações como a de um pacato morador da distante Belém do Pará.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal