Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O jornalista e o pastor

O conceito de “âncora” está ligado à credibilidade, mas bem mais do que isso. É ligado à maneira como o jornalista é capaz de falar com seu espectador. Para ter sucesso nisso, tem que combater de saída o que a própria televisão lhe sugere.

Porque a televisão trata o espectador como débil-mental. Faz parte de seus vícios mais entranhados. Antes de rodar o conteúdo, o apresentador já determinou que o espectador fique quietinho no seu canto, aguardando as coisas maravilhosas que a televisão tem para lhe dizer. Há uma relação vertical que hoje é difícil quebrar porque a TV é dona não apenas do que vai dizer ao espectador como também, e sobretudo, de como o espectador vai se sentir. A sonorização leviana de matérias jornalísticas, ou sua edição cafajeste, já não espantam mais ninguém. O espectador não é posto numa posição de se espantar, mas de aceitar.

A maior exceção contemporânea a isso é Ricardo Boechat. Jornalista que sabe do que fala e sobretudo sabe como falar com o espectador, estabelecer uma relação horizontal que lhe permite dialogar e não vomitar verdades. Desde o Jornal de Vanguarda a televisão brasileira não produziu nada igual, salvo, talvez, o pouco tempo dado a Joelmir Betting como apresentador. Boechat conhece a notícia, a sua interpretação e a maneira de envolver o espectador.

Mudanças sensíveis

Envolveu-se numa polêmica com Silas Malafaia. São unidades diferentes. Na escola, dizia-se que isso é o mesmo que misturar laranjas com maçãs. Boechat é o apresentador mais sensato e relevante da TV brasileira. Malafaia, um pastor homofóbico cujas palavras não podem em qualquer ambiente ser levadas a sério.

Em um programa jornalístico da rádio Band News, o âncora extrapolou. Levou seu coloquialismo ao paroxismo. Sugeriu a Malafaia que fosse procurar “uma rola”, mas certamente não é o que pretendia dizer dentro de um estúdio de rádio. Levou a conversa irremediavelmente para o campo do bate-boca.

Mas não há bate-bocas possíveis entre laranjas e maçãs. De concreto existe somente o fato de que Boechat revolucionou a ancoragem na televisão brasileira, colocou o diálogo entre apresentador e espectador num outro patamar. O que ele tem feito pelo telejornalismo brasileiro é inestimável. De todos os telejornais brasileiros, são o Jornal da Band e o Jornal da Cultura, com Willian Correa e seus comentaristas do nível de Marco Antonio Villa, os únicos que respeitam o espectador, que o tratam como um ser inteligente. Sugestões de descobertas fálicas para um pastor que tanto teme a homossexualidade em nada empobrecem a extraordinária mudança que Boechat tem ajudado a promover na televisão aberta brasileira.

Leia também

Quando a crítica reproduz o preconceito – Sylvia Debossan Moretzsohn

***

Nelson Hoineff é jornalista e cineasta