Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O massacre da mídia

Não é a primeira nem será a última vez. Sempre que ocorre uma tragédia de grande alcance, a sociedade acaba sendo duplamente impactada. Primeiro, pela brutalidade dos fatos; depois, pela desumana espetacularização do caso. Com o massacre das crianças e adolescentes de Realengo não poderia ser (até que poderia, mas não está sendo) diferente. No vale-tudo da guerra pela audiência, emissoras de TV e rádio, jornais e sites noticiosos põem no front todo o arsenal disponível. No inesquecível 7 de abril de 2011, uma quinta-feira, até o estúdio de tradicional jornal televisivo mudou de endereço e design: em vez do cenário estático da redação, a fachada da Escola Municipal Tasso da Silveira.

Mas esse não foi o principal ato do show em que se transformou o primeiro dia de cobertura do massacre. A caça aos sobreviventes chegou a ser perversa. Vi e revi, sei lá quantas vezes, a menina Jade contando, como se anestesiada estivesse, os momentos de terror que compartilhou com os colegas. A “cachoeira de sangue” que descia pela escada, os pedidos de clemência das vítimas (“Por favor, moço, não me mate…”), a forma como as meninas eram executadas e como fez para se proteger emocionalmente, enquanto a morte a rondava: para não gritar de pavor, concentrou-se, desenhando uma casinha na mão com a caneta que levava consigo.

Alguém há de dizer que extrair os fatos da fonte primária é a função do jornalista. Como a sociedade poderia conhecer detalhes dessa tragédia se os sobreviventes não fossem entrevistados?Ora, não sejamos hipócritas. Como jornalista, também quero ter a primazia de um furo. Chegar onde colega algum pôde chegar e obter a notícia exclusiva. Mas não é isso o que se vê em situações como a da tragédia de ontem. Jade contou, não uma ou duas, mas uma infinidade de vezes o mesmo drama. Foi obrigada a reviver, indefinidamente, a sensação de ouvir cada tiro e cada grito, ver a cachoeira vermelha escorrer escada abaixo, sentir o cheiro de pólvora misturado com o do sangue empesteando o ar…

A inobservância do direito de sofrer em paz

Aqui vai uma necessária explicação. Nem sempre o papel de abutre é exercido de livre vontade pelo repórter em campo. Às vezes, como soldado raso, ele está ali apenas cumprindo ordens. Até dá para imaginar a chefia de reportagem passando instruções via celular, exigindo que a equipe encontre um cenário “bem legal”, um enquadramento “mais bacana”, uma forma “mais impactante” de abordar sobreviventes e demais envolvidos. Muitas vezes é com a alma em pedaços e o rosto em fogo que o profissional acaba cumprindo essas determinações – não raro, para preservar o emprego.

Guardadas as proporções, vivi uma experiência que ilustra essa situação. Era repórter em determinado jornal de Salvador (não vou entrar em detalhes para preservar a identidade das pessoas envolvidas) e chegou à redação a notícia de que uma moça acabara de ser estuprada. Naquele momento, a vítima era ouvida numa delegacia. Imediatamente fui incumbida pela chefia de reportagem de fazer uma “entrevista bem bacana” com a jovem. Eu disse não. Olhei para a colega, mulher e mãe como eu, e respondi: “Se fosse sua filha você ia querer que um jornalista chegasse perto dela?”

Mas nem sempre é possível conduzir com o devido bom senso coberturas de grande repercussão. A morbidez fala mais alto. A disputa por audiência berra mais alto ainda. O resultado é a superexposição de fontes, o desrespeito à privacidade e a absoluta inobservância do direito de se sofrer em paz.

Que se busque o melhor ângulo e se procure captar a frase de maior efeito dita por quem sofre a maior das dores que um ser humano é capaz de suportar, que é a perda de um filho. Mas que não se esqueça de que, no peito de um personagem, também bate um coração. Até porque, ante a imprevisibilidade da vida, nunca se sabe quando poderemos estar do outro lado. Afinal, ninguém está imune à dor.

******

Jornalista, Salvador, BA