Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O preço da ignorância

Dizem que o ex-presidente José Sarney não usa roupa marrom em hipótese alguma. Outros presidentes, como Charles de Gaulle e Ronald Reagan consultavam astrólogos. Crendices e superstições, como a de acreditar que roupa marrom dá azar ou ler o horóscopo, não são privilégio de nenhuma classe social, e quando permanecem na esfera pessoal não trazem maiores conseqüências além de talvez pequenos embaraços para quem as têm, ou quem sabe alguma chacota por parte dos amigos. Quando ultrapassam o âmbito pessoal e passam a interferir, ou mesmo nortear, as decisões dos que detêm o poder, os resultados muitas vezes são catastróficos.

A julgar pelas numerosas cartas enviadas pelos leitores do Observatório da Imprensa criticando o artigo de Muniz Sodré [‘Do État-gendarme ao Estado-pastor’, remissão abaixo], não é difícil imaginar um cenário de catástrofe em potencial. Muitas delas enfatizam o fato de que a imprensa critique a atuação de um pastor em assunto do Estado, mas que não tenha a mesma postura em relação aos padres. Embora a posição do autor pareça ser crítica não só a pastores, mas sim ao fato de o Estado deixar-se ‘desbordar pelo religioso’, sua opinião em relação aos padres não é explícita no texto, e cabe a ele esclarecê-la ou não. O aspecto mais preocupante nas cartas, no entanto, foi a reação dos leitores às críticas que o articulista fez à postura da governadora Rosinha Matheus em relação à evolução das espécies.

Crença e gosto

Carl Sagan em O Mundo Assombrado Pelos Demônios relata o caso do Sheik Abdel-Aziz Ibn Baaz, da Arábia Saudita que, com base nas Escrituras Sagradas editou um decreto religioso segundo o qual a Terra seria plana, e os que afirmassem que ela seria redonda não acreditavam na palavra de Deus, portanto deveriam ser punidos. O ano: 1993. Ainda mais recentemente, em meio à trágica expansão da Aids no continente africano, testemunhamos a relutância do presidente Thabo Mbeki, da África do Sul, em aplicar programas de prevenção e de tratamento por não acreditar que o vírus HIV fosse o causador da doença.

Quando conceitos já amplamente reconhecidos e bem fundamentados no meio científico estranhamente não encontram a mesma aceitação na população geral, é sempre preocupante. Principalmente quando esse desconhecimento atinge os governantes, que supostamente deveriam ser muito bem assessorados. Mais ainda quando essa ignorância norteia decisões do poder público. As declarações da governadora Rosinha Garotinho dizendo-se criacionista, ou seja, afirmando descrer da evolução das espécies, já são, em si, alarmantes. Quando chegam a originar uma iniciativa de se estabelecer o ensino do criacionismo nas escolas públicas, ainda que restrito às já questionáveis aulas de religião patrocinadas pelo contribuinte, tornam-se uma vergonha nacional.

Grupos religiosos costumam justificar a inclusão do criacionismo nas escolas em nome de uma suposta defesa da pluralidade de idéias, por acreditarem que os alunos deveriam ter acesso a diferentes pontos de vista. Mentira. Ou será que alguém pode imaginar uma igreja abrindo espaço em seus cultos religiosos para que um cientista explique por que a ciência acredita na evolução? Ou para que um historiador demonstre as dúvidas que existem sobre certos relatos bíblicos? Ou para que um ativista dos direitos humanos explique por que a discriminação contra homossexuais é inaceitável?

A pluralidade que as igrejas defendem parece aplicar-se somente quando se trata de abrir espaços para introduzir suas próprias idéias. De qualquer forma, ciência não é algo que se defina por crença pessoal, gosto ou popularidade. Felizmente. Existem algumas teorias científicas que são realmente controversas, e a estas sim faria sentido dar igual espaço no sistema educacional.

Sem desculpas

Não é esse, no entanto, o caso do criacionismo, não importando a popularidade que tenha. Assim como não é o caso de se ensinar o modelo geocêntrico do sistema solar, ou a teoria do ‘calórico’ para a transferência do calor, do ‘éter luminífero’ para a propagação da luz, ou mesmo a da Terra plana, não importa qual autoridade religiosa a defenda.

Algumas das cartas criticando o artigo de Muniz Sodré mostram como esse desconhecimento generalizado em relação à evolução e a ciência em geral é preocupante. Em muitas delas repetiu-se o velho chavão segundo o qual a evolução seria ‘apenas uma teoria’ e portanto ‘quem quiser acredita’, como se em ciência ‘teoria’ significasse algo sem comprovação, uma espécie de lei de segunda categoria. Isso é sinal de que grupos criacionistas têm feito uma campanha de desinformação eficiente.

Nos EUA, instituições como o ICR e o Discovery Institute possuem orçamentos milionários e, embora declarem ter supostos interesses científicos, não fazem nada que se pareça com ciência e se dedicam a elaborar argumentos que possam convencer pessoas leigas de que a teoria da evolução tem falhas, que estaria em crise, ou que sua aceitação tivesse diminuído no meio científico.

Além dessas instituições, é claro, religiões fundamentalistas também fazem seu trabalho, passando adiante argumentos como esse que se refere a ‘teorias’, e outros igualmente questionáveis, como a fantasiosa história de Lady Hope, segundo a qual Darwin teria renunciado à sua teoria antes de morrer, também mencionada nas cartas ao Observatório. O fiel, é claro, jamais é exposto a nenhuma fonte de referência científica, ou qualquer das abundantes fontes de refutação desses argumentos, por isso o desconhecimento por parte do crente é até compreensível. Mas por parte de uma governadora de um dos estados mais importantes do país, e que supostamente teria acesso a quanta informação e assessoria quisesse, é inadmissível. Não tem desculpa.

A tragédia da Aids no continente africano despertou a iniciativa da Declaração de Durban, assinada por 5.000 cientistas do mundo inteiro, reafirmando que o vírus HIV causa a Aids. Nos EUA, ataques criacionistas ao sistema educacional fizeram com que 72 ganhadores do prêmio Nobel assinassem um documento colocando-se a favor da evolução. Aqui no Brasil a SBPC já se posicionou contra o ensino do criacionismo nas escolas do Rio. Esperemos que os cientistas sejam ouvidos. Ou que a governadora escolha uma crença mais inofensiva como, quem sabe, parar de vestir marrom.

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Editor do Dicionário do Cético (http://www.cetico.cjb.net)