Sunday, 03 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Obra repleta de qualidades e defeitos

O professor Muniz Sodré deu duas contribuições bastante elucidativas e honestas sobre o escritor Monteiro Lobato (‘O princípio do avestruz‘ e ‘Monteiro Lobato vai para o trono?‘). Passei partes da mais verde infância assistindo ao Sítio do pica-pau-amarelo pela televisão. Tomei contato com as obras de Lobato já na idade adulta depois de ter crescido numa casa sem livros, ou pelo menos sem o hábito da leitura. A pouca literatura infantil com que tive contato na idade mais apropriada foi na escola e essa, apesar de boa, não incluía os escritos de Lobato. Hoje sei que sua obra completa está nas estantes de boa parte das bibliotecas de escolas públicas, mas pelo que tenho observado duvido que seja o que as crianças preferem ler. Procurei a obra de Lobato depois de adulto justamente pelo aspecto afetivo impregnado na infância pela televisão, mas não a compulsei toda.

Estudiosos de várias áreas das ciências humanas dedicam suas pesquisas a esse autor. Não apenas nos textos, mas vários dos ilustradores de seus livros desmereceram a população negra. Concordo que os poucos personagens negros do mundo ficcional de Monteiro Lobato são representados de forma preconceituosa, às vezes até monstrualizada, ou animalesca. Ainda não estou certo sobre se as crianças devem ser privadas da obra de Lobato.

Mesmo tendo lido os textos do professor Muniz Sodré que trazem algumas referências a cartas mencionando a população negra, também ainda não estou certo do tipo de racismo que pululava nas linhas desse clássico controverso. Li em algum lugar, que não pretendo citar, que um clássico não é apenas clássico pelas suas qualidades, mas também por seus defeitos. Parece que a obra de Lobato é repleta de ambos. Numa de suas crônicas, João Ubaldo Ribeiro o eleva ao patamar de melhor escritor que já leu ou maior escritor do mundo, não lembro ao certo. O fato é que Lobato foi um escritor que criou um universo ficcional bastante profícuo. Agora um de seus contos me faz pensar sobre o tipo seu racismo.

Dimensão importante

No conto ‘A violeta orgulhosa’, a boneca Emília tem um canteiro cheio de violetas roxas e uma dessas, cuja cor destoou das outras, pois era branca, começou como que a discriminar suas colegas de canteiro. A reação da boneca é chamar alguém que possa convencer a florzinha que não tem motivo para desprezar as colegas de canteiro. Entra em cena o sábio Visconde de Sabugosa que explica o motivo de a violetinha branca não ser superior. A explicação dada pelo Visconde é de que as violetas brancas assim o são justamente por não terem melanina, uma substância que dá cor, e é justamente essa ausência de melanina que faz a violeta branca, que não tem essa substância, inferior. ‘Está vendo, sua ariana’, é o que lhe diz a boneca Emília depois da aula do Visconde.

Claro que um pequeno conto não é o bastante para definirmos a posição de seu autor. O racismo de Lobato é inquestionável. É bom lembrar que no mesmo conto o autor se refere à ‘boa negra’, Tia Nastácia. Uma expressão aparentemente inocente, mas que também dá margem para a leitura de que outros negros podem ser ruins ou não bons. E como frisou o professor Sodré num de seus textos, as expressões racistas estão lá para quem quiser ver. Agora, e já venho me debatendo com essa questão há algum tempo, Lobato era de fato um propugnador e ou difusor das teorias racistas que estavam em voga no Brasil no fim do século 19 e primeira metade do século 20?

Nunca me dediquei sistematicamente a essa questão e confesso que estava mais propenso a acreditar que seu racismo era, digamos, involuntário (ponto de vista difícil de defender depois de ler os textos do professor Muniz Sodré). Pensava isso comparando-o a seu coetâneo Caio Prado Júnior, autor de Formação do Brasil Contemporâneo, obra seminal, mas também repleta de expressões preconceituosas em relação a negros e indígenas.

Um autor do porte de Monteiro Lobato tinha consciência do papel que desenvolvia como escritor de literatura infantil. Entendi que assim pensa o professor Muniz Sodré e venho aqui concordar como é difícil pensar os problemas da obra de um autor que, quando lembrado, o é primeiramente pela dimensão afetiva que sua obra traz. Com relação ao argumento de que o público ao qual as obras desse autor são destinadas deve ser protegido por ser frágil, estou propenso a discordar. Primeiro porque não vejo tanto interesse das crianças de hoje em dia nas obras de Lobato. Acho que o autor deve e merece ser discutido nos seus problemas até mais do que já o é e a exposição que está tendo nos últimos tempos pode até contribuir com isso. Contudo, não dispor sua obra pode ser também um passo tranquilizador para esconder uma dimensão importante de nossa sociedade que Lobato traz, o racismo.

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Professor de História, Ponta Grossa, PR