Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os resultados de pesquisa sobre vitimização pelo crime

A seção ‘Editoriais’ do noticiário eletrônico UOL publicou matéria que leva o título ‘Dados de insegurança’ e trata dos resultados de mais uma ‘Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios’ (PNAD) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A pesquisa noticiada está baseada em dados de 2009 colhidos pela PNAD/IBGE em 2010, intitulada ‘Características da Vitimização e do Acesso à Justiça no Brasil’.

Trata-se de mais uma PNAD, espécie de enquete que tipicamente utiliza metodologia amostral de domicílios, abordando, dentre outros temas, as percepções de parte da população sobre a questão da segurança. Aplicados sobre uma amostra representativa da população, os resultados/percepções colhidas por mais essa PNAD são generalizáveis para a população do país como um todo. Não menos importante que os resultados específicos sobre o tema da segurança, a matéria do UOL sugere que a PNAD indica falta de informação qualificada e sistemática em prol da formulação das políticas de segurança pública do país.

Em um momento histórico como o atual, marcado por uma séria crise na segurança pública do Rio de Janeiro, é digna de nota a questão da informação válida, confiável e constante sobre o crime, criminosos e questões conexas. E isso não pode ser tido apenas como algo relativo a ‘crises locais’, já que, sabidamente, questões como a do ‘crime organizado’ potencialmente se desdobram ao longo de mais de uma região, inclusive com a chamada ‘migração espacial do crime’.

A ‘cifra negra’

O método de abordagem eleito pela PNAD é o indutivo, já que tem por base a análise e generalização de respostas diretas dos entrevistados sobre diferentes aspectos da temática da vitimização pelo crime e da problemática do acesso à justiça. Os métodos de procedimentos abrangem o método estatístico (materializado por taxas numéricas percentuais), o comparativo (cotejando as taxas de 1988 com as de 2009), o histórico (comparando a ‘série histórica 2009’, a mais atual disponível, com outra do passado, correspondendo ao ano de 1988, abarcando um hiato com descontinuidade iniciada 20 anos atrás) e o tipológico (abrangendo categorias de variáveis referentes à vitimização e questões de acesso à justiça na percepção dos entrevistados, referentes aos 12 meses imediatamente anteriores à realização da pesquisa de 2010).

Estudos como o da PNAD/IBGE possuem o atributo específico de revelar uma ‘face oculta’ de fenômenos abordados e que, por diferentes razões, não pode ser retratada pelo estudo de bases de dados de registros oficiais. Isso decorre pelo fato de que vítimas do crime e/ou com acesso prejudicado à justiça não possam, ou até mesmo não queiram, consignar registros oficiais junto aos órgãos respectivos (polícias e poder judiciário). Isso pode gerar uma ‘subnotificação’ de crimes sofridos, produzindo a chamada ‘cifra negra’.

A descoberta de ‘números ocultos’, ou de uma ‘cifra negra’ diferenciada ‘para mais’ dos ‘números oficiais’, é um fenômeno observado na segurança pública não só do Brasil, como também de outros países do mundo. A cidadania deixa de consignar registros oficiais por diferentes razões, desde o desconhecimento dessa possibilidade, passando pela apatia, para abranger os mais diferentes sentimentos e/ou receios, incluindo o medo e a descrença na efetividade dos resultados obtidos com a consignação dos respectivos registros.

Nos EUA, pesquisa abrange 100 mil pessoas

O que fica revelado pela pesquisa amostral de ‘Características da Vitimização e do Acesso à Justiça no Brasil’, de momento, não permite maiores inferências históricas, já que seus resultados somente podem ser comparados com um único conjunto de resultados homólogos obtidos anteriormente, no já longínquo ano de 1988. Com limitações de comparação e cotejo histórico, a PNAD/IBGE aponta que 47,2% dos entrevistados indicam não se sentir seguros onde vivem, taxa que sobe para mais de 50% quando considerados os entrevistados que vivem em áreas estritamente urbanas. Já a comparação da vitimização por roubos e furtos aponta uma taxa de 7,3% dos entrevistados em 2009, em relação a uma taxa anterior de 5,4% em 1988. A ‘não-notificação’ de crimes sofridos em 2009 é afirmada por mais da metade do número de entrevistados de 2010, com 36,4% deles justificando tal atitude por não acreditar nas instituições policiais e 19,5% por medo da polícia e/ou dos autores dos crimes sofridos.

Em outros países, caso dos Estados Unidos da América (EUA), o chamado ‘Relatório Uniforme do Crime’ (UCR – Uniform Crime Report) vem sendo compilado pelo governo federal daquele país desde 1930, revelando a ‘situação de registros de crimes violentos’, não só de cada ano anterior, como também do ‘quadro acumulado’ do quinquênio anterior inteiro (e dele para trás, até o ano inicial de 1930). Tal relatório é produzido a partir de informações voluntariamente enviadas pelas polícias do país a órgãos pertencentes ao equivalente norte-americano do Ministério da Justiça do Brasil. A ‘cobertura’ obtida perfaz cerca de 97% do território norte-americano. Nestes 80 anos de UCR, uma pequena lista de ‘delitos índice’, para fins de estudo/análise, foi desenvolvida e mantida quase inalterada, com a única exceção de haver incluído um delito a mais (incêndio), aumentando de sete para oito o número de ‘delitos índice’.

Já a ‘Survey Nacional de Vitimização pelo Crime’ (NCVS – National Crime Victimization Survey), elaborada pelo Departamento do Censo dos EUA (parte do Ministério do Comércio daquele país), é um estudo ao qual se assemelha o PNAD sobre vitimização e acesso à justiça elaborado pelo IBGE. O NCVS foi estabelecido nos EUA em 1973 e, portanto, já se estende hoje ao longo de quase quatro décadas. O NCVS é aplicado em cerca de 49 mil domicílios e tem uma cobertura populacional da ordem de 100 mil pessoas (incluindo os maiores de 12 anos residentes/entrevistados em cada domicílio).

O fenômeno criminal ‘translocalizado’

Se o NCVS já retrata a vitimização pelo crime por si só, quando cotejado com o UCR (e seus respectivos registros oficiais), fica possibilitada uma visão ‘interespecífica’ dos ‘crimes efetivamente sofridos’ com os ‘crimes oficialmente registrados’…

A survey (pesquisa amostral) norte-americana tem quatro objetivos básicos: (i) produzir informação detalhada sobre vítimas e consequências de crimes; (ii) estimar o número e tipos de crimes que não são notificados às autoridades pela cidadania (‘cifra negra’); (iii) prover medidas uniformes (‘métricas’) da incidência de tipos especificamente selecionados de crimes e; (iv) permitir comparações entre diferentes séries históricas de dados (considerando a temporalidade do fenômeno criminal), bem como ensejar comparações entre diferentes regiões geográficas afetadas pela criminalidade (espacialização do fenômeno criminal).

A necessidade de estudos abrangendo a espacialização do fenômeno criminal (incluindo ‘mapas do crime’) está relacionada com sua comprovada expressão contemporânea ‘translocalizada’. Ou seja, trata-se de um fenômeno que pode se desdobrar ao longo de diferentes locais ou áreas de circunscrição, diversos municípios, unidades federativas distintas, regiões nacionais diferenciadas, ou até mesmo em ocorrência concomitante em um ou mais países. Talvez por isso mesmo, a realização de estudos envolvendo epidemiologia criminal, como é o caso do tema tratado nessa PNAD/IBGE de 2010, implique na sua centralização sob a égide do governo central.

A formulação de políticas públicas válidas

Falta sistematização e tradição no Brasil acerca da realização de estudos como o recentemente divulgado pelo IBGE. A matéria do UOL também sugere isso… No Brasil, a situação de irregularidade no estudo do crime começa pelos próprios índices, já que não há uma constância histórica em termos de que delitos devam ser regularmente estudados. Os poucos delitos considerados de inclusão essencial e permanente na NCVS dos EUA estão listados segundo duas categorias de vitimização: (i) crimes contra a pessoa (quatro deles) e (ii) crimes contra a propriedade (também quatro). Na primeira categoria estão contidos os delitos de (i) estupro e outros ataques sexuais, (ii) roubos, (iii) assaltos e, (iv) pequenos furtos (basicamente resultantes da ação de ‘batedores de carteiras’); a segunda categoria abrange (i) arrombamentos, (ii) furtos em geral, (iii) furtos de veículos e (iv) vandalismo.

A matéria do UOL aponta muito propriamente uma relação entre a existência de indicadores confiáveis e avanços na área de saúde pública do Brasil. Elabora, da mesma forma, sobre os indicadores para formulação de políticas públicas na educação do país. Finalmente, aponta que ‘não é razoável pretender que a segurança pública possa prescindir do mesmo recurso’. Talvez seja próprio apontar que, no Brasil, até o ano de 2000, o governo federal não esteve mais próximo das questões de segurança pública, ‘debutando’ com seu ‘Plano Nacional de Segurança Pública’ daquele mesmo ano, sob o choque nacional do episódio envolvendo a tomada de reféns do ‘Ônibus 174’. Desde então, começa a esboçar a constituição de bases de dados nacionais agregadas sobre o crime e questões conexas. A grande questão é se essas bases estão sendo constituídas objetivamente com o ‘olhar da gestão’ e das necessidades prementes de informação para a formulação de políticas públicas válidas, confiáveis e oportunas para o setor. Tomara que não seja necessário esperar várias décadas para descobrir ‘que sim ou que não’…

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Professor, Brasília, DF