Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os sinos dobram pelos imparciais

Se guerras são lapsos de sanidade é possível acompanhá-las – ou cobri-las – de forma ponderada? Repórteres, mesmo os oriundos de outros países, podem deixar de se emocionar – ou solidarizar-se – com o que observam no campo de batalha?


E os gatekeepers, os editores, teoricamente preservados do contágio de sentimentos nas protegidas redações a milhares de quilômetros de distância, conseguem impedir que ao seu lado não se formem partidos e indignações?


Chega de repetir o adágio de que a verdade é a primeira vítima da guerra. A coisa é muito mais simples: fotógrafos da Reuters em Beirute que retocaram ou dramatizaram as fotos dos bombardeios israelenses não mentiram [ver ‘Reuters admite manipulação de fotos‘, nesta edição]. Os ataques realmente aconteceram, as vítimas realmente morreram, mas a convivência com a soma de pequenas adulterações pode produzir tremendas mistificações.


O número de mortos na carnificina de Qana no domingo (30/7), foi menor do que o inicialmente divulgado. Não foram 57, mas 29. Não faz a menor diferença. É igualmente terrível. Aparentemente, não houve má-fé, foi erro na contagem dos corpos. Mas O Globo nos dias seguintes (segunda e terça) repetiu a palavra ‘massacre’ na manchete. E, quando a informação foi corrigida, o registro foi insignificante. Massacre pressupõe intencionalidade, e não foi o caso.


Logro, embuste, falácia


Quantos mortos compõem uma chacina? Veteranos repórteres de polícia não conseguem precisar. Quantos gols fazem uma goleada? Depende de quem joga e de quem comenta.


Massacres efetivos e maiores ocorrem quase todos os dias no Iraque, em geral perpetrados por sunitas (que obedecem a Saddam Hussein) contra xiitas (que apóiam o Hezbollah). Às vezes escolhem-se mesquitas nas sextas-feiras sagradas, às vezes festas de casamento, mas estas mortandades planejadas não chegam às primeiras páginas. O Líbano está mais perto do Brasil, temos mais libaneses aqui do que lá.


A guerra é a mesma, as vibrações são diferentes. Em Beslan, no dia 3 de setembro de 2004, havia mil reféns naquela escola e 330 foram mortos pelos [terroristas? guerrilheiros? insurgentes?] tchetchenos, a maioria crianças. Comoção mundial. Conviria examinar o comportamento da imprensa brasileira, não nos primeiros momentos, mas 10 dias depois. Quantos intelectuais protestaram contra aquele massacre, quantas manifestações de rua contra o terrorismo?


E por que jogaram uma bomba numa sinagoga ortodoxa em Campinas, no último fim de semana?


A objetividade jornalística não se mede em centímetros, a eqüidistância exige medições de outra ordem. A constatação vale para coberturas eleitorais, escândalos e guerras. O mensalão é o maior escândalo político da história brasileira? Qual a importância dos rankings?


Proporções e desproporções, quando se trata de horrores, são caricaturas de racionalidade.


Quando este observador traçou o perfil jornalístico-literário do rebelde Joseph Roth [Berlim, Companhia das Letras, 2006, posfácio] incluiu uma frase atribuída ao austríaco: ‘Objetividade é uma patifaria’. Cabe aos germanistas decidir se Schweinerei (do original alemão) traduz-se como patifaria ou porcaria (Schwein, porco). Ou logro, embuste, falácia, velhacaria etc., etc.


A sexta guerra


Cultor dos relatos intensos e esmerados, Roth radicalizava sempre: ‘Não sou repórter, sou jornalista. Não sou redator, mas poeta’ [em alemão, Dichter é artista]. Seu subjetivismo poderia ser mais veraz, mais humano e menos fugaz do que a isenção e a imparcialidade medidas em número de caracteres (o próprio programa Word, da Microsoft, relativiza quando oferece duas medições – com ou sem espaços).


Socialista e monarquista, Roth recusava as filiações porque também seriam patifarias. A objetividade de um militante político é igual a zero. Nula e perigosa. O preconceito adora as estatísticas. Exemplo: as quotas para afro-descendentes em universidades ou empresas certamente diminuirão as diferença, mas não evitarão a intolerância racial, o horror ao diferente. A tolerância e a solidariedade pedem outro tipo de avaliação.


Há poucos anos, num debate acadêmico, este observador foi brindado com a seguinte constatação de um dos presentes: ‘Um jornalista judeu não pode ser isento’. O problema, na sua essência, é apenas este.


A sexta guerra do Oriente Médio, não terá vencedores e, por isso pode ser a última. Desde que deixemos as trincheiras. E as calculadoras.


Nunca é demais lembrar o poeta e sermonista John Donne (1572-1631) – e Ernest Hemingway, que o popularizou – ao dirigir-se aos guerreiros e beligerantes:




‘A morte de qualquer homem me diminui porque estou envolvido com a humanidade. Por isso nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.’


***


Tempos de guerra


Boris Fausto # copyright Folha de S.Paulo, 6/8/2006


Começo este texto dizendo que não tenho nem uma remota simpatia por movimentos como o Hizbollah e afins, que até hoje se negam a reconhecer o direito à existência do Estado de Israel. Nem creio que o anti-semitismo seja um fenômeno do passado, permanecendo latente ou expresso, em maior ou menor grau, em todo o mundo.


Mas essas circunstâncias não justificam a guerra desencadeada por Israel no Líbano em resposta às ações de guerrilha do Hizbollah, e muito menos os bombardeios indiscriminados dos quais são vítimas milhares de civis inocentes e alguns observadores da ONU. Isso sem falar na destruição de um país que, a duras penas, ressurgira das cinzas de uma longa guerra civil e da ocupação.


Podemos estar certos de que o resultado dessa guerra não será a eliminação dos radicais e muito menos a obtenção da paz, à qual o povo judeu, como o povo palestino, tem direito. O próprio primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert, declarou que, embora o Hizbollah deva sair do conflito muito abalado, seria ilusório acreditar que o movimento possa ser inteiramente destruído.


Seja como for, as conseqüências da ação israelense irão muito além dos destinos deste ou daquele movimento radical, tomado isoladamente. Entre outras coisas, líderes abomináveis, como o presidente do Irã, Ahmadinejad, estão ganhando crescente prestígio com as massas árabes, e o anti-semitismo, nesse quadro, tende a se espraiar. Além disso, lembremos que a fratura exposta do Oriente Médio se aprofundou com a ação israelense, e a paz, buscada há mais de 50 anos, ficou agora ainda mais distante.


Há um aspecto preocupante em tudo isso que, como brasileiros, nos interessa mais de perto: as repercussões do conflito nas comunidades sírias, libanesas e israelitas do Brasil.


Não creio estar vendo fantasmas, e, antes que certos sintomas ganhem corpo, convém apontá-los com todas as letras. Um desses sintomas é a reação insultuosa que têm provocado artigos de colunistas que analisam a situação do Oriente Médio, condenando fortemente o comportamento do governo israelense e a aliança entre Israel e os Estados Unidos.


Quaisquer que sejam as opiniões a respeito do tema, por mais que se considere que ele mobiliza sentimentos profundos, não é admissível que se reaja a argumentos com insultos. Insultos são um atentado à liberdade de expressão e se chocam com a vertente judaica iluminista.


É preciso assegurar a convivência pacífica entre as etnias síria, libanesa e judaica que convivem no Brasil há muitos e muitos decênios. São comunidades das quais só temos razões para nos orgulhar.


Quantitativamente menos importantes do que outras, elas ganharam destaque, a princípio, como ‘etnias comerciantes’, cuja emulação se situou, e em parte ainda se situa, no terreno da concorrência. Com o tempo, essas comunidades se diversificaram profissionalmente e deram, entre outras, uma importante contribuição à assistência hospitalar na cidade de São Paulo.


É o caso de dois empreendimentos que trazem marca de origem, mas que têm suas portas abertas a cidadãos de qualquer procedência, realizando também um importante trabalho social. Quase seria desnecessário dizer que estou me referindo ao Hospital Sírio-Libanês e ao Hospital Israelita Albert Einstein.


O bom entendimento tem resistido aos seguidos conflitos no Oriente Médio. Esperemos que ele se mantenha na atual conjuntura.


Não creio que uma atitude adequada seja a da ‘política do avestruz’, enterrando na areia os problemas como se eles não existissem. Necessariamente, a situação do Oriente Médio está no coração dos descendentes de sírios, libaneses e judeus e as perdas de vidas e as destruições são impossíveis de esquecer. Expressões contraditórias acerca do tema, mais do que compreensíveis, são necessárias. Mas é preciso não reproduzir aqui a exaltação nacionalista e o fanatismo fundamentalista que tantos males têm causado na região do conflito.


Se a convivência racial entre brancos e negros em igualdade de condições e de oportunidades é um mito da história do Brasil, o mesmo não acontece com o processo da imigração em massa, iniciado nos últimos decênios do século 19. Sem negar o preconceito de que foram alvo preferencial, mas não exclusivo, japoneses e judeus, esse processo desembocou num êxito -um dos poucos êxitos que temos para enaltecer.


Não podemos permitir que ele seja manchado, a qualquer pretexto, com as marcas da intolerância. [BORIS FAUSTO , historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, A Revolução de 30 (Companhia das Letras)].