Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Patriotismo e manipulação de consciências

A imprensa se comporta, com freqüência, de acordo com algumas passagens bíblicas onde é mais fácil uma montanha de tolices passar pelo buraco de uma agulha que umas poucas questões serem minimamente analisadas.

A referência à passagem bíblica é apenas um recurso de comparação antes que críticos espumantes enxerguem aqui qualquer outro viés.

A tolice dos últimos dias está em criticar, como se ainda vivêssemos sob a ditadura militar, um pretenso chauvinismo, o que não tem qualquer relação com a realidade.

Surpreendida por um crescimento na produção econômica, queda nos índices de desemprego e um bom porcentual de aprovação popular por parte do governo do PT, entre outras referências que deveriam ser bem recebidas, a ‘oposição’ e parte da mídia se esforçam para encontrar o que a ironia popular chama de ‘pêlo em ovo’.

Não que o governo esteja isento de críticas.

Milton Santos, um dos maiores geógrafos brasileiros, e que teve negado em sua terra, a Bahia, uma homenagem que deveria ser prestada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sempre disse que a obrigação dos intelectuais é fazer a crítica ao poder.

Milton Santos é outra dessas metáforas poderosas.

Quase desconhecido no Brasil, até ser cultuado no exterior, ao final da vida teve parte do mérito que lhe é devido reconhecido por um círculo que nunca chegou a ser amplo.

Negro como a noite, elegante no vestir e em se comportar, Milton Santos passou por dissabores ao longo da vida, em aviões e outros ambientes vetados a despossuídos, especialmente pela cor de sua pele. Ignorantes e pavlovianamente condicionados, os serviçais desses ambientes desconheciam quem era aquele homem bem vestido, de sorriso largo e cultura imensa, comprometida com a dignidade humana.

A recusa da Bahia em prestar-lhe homenagem durante o último encontro da SBPC em Salvador é apenas um indicativo do ponto a que pode chegar o simplorismo e a estupidez, mesmo de setores supostamente esclarecidos como os que se abrigam na universidade.

Em Salvador alegaram qualquer coisa que ele teria feito ao tempo do governo Jânio Quadros e a homenagem, com a saúde dele seriamente comprometida, não pôde ser feita.

Oligarquia atrasada

A crítica que pontuou na mídia ao longo da semana passada e se repetiu na véspera do feriado de 7 de Setembro é de um pretenso nacionalismo, algo à la Garrastazu Médici, estimulada pelo governo Lula.

A Folha de S. Paulo, durante a semana, chegou a publicar um box sobre o ambiente de ufanismo da ditadura. E voltou à carga na véspera do 7 de Setembro. Ditadura, aliás, bem suportada pela Folha, que durante todo aquele período não publicava editoriais e tinha, além de um jornal explicitamente simpático aos militares, a Folha da Tarde, parte de sua segurança feita por homens que eram policiais do sistema de poder.

Talvez os jovens repórteres e os não tão jovens articulistas da Folha, febris pela disputa insana que a direção do jornal instila na redação, não tenham tido tempo de conhecer um pouco a história da publicação onde trabalham. Ou tenham lido apenas o que escreveram os bajuladores, ainda que em teses acadêmicas.

O fato é que se trata de uma necessidade psicológica profunda melhorar a auto-estima dos brasileiros (do brasileiro, como prefere a mídia) e desenvolver um certo patriotismo. Não há nada de errado nisso e uma iniciativa como essa não pode ser confundida com ufanismo histérico combinado a pretensas superioridades sobre outros povos ou nações.

Nossa auto-estima já nasceu embotada por versões equivocadas sobre o que ocorreu na história.

Aprendemos na escola que o Brasil começou a ser colonizado por criminosos. Nossos professores primários só não disseram, porque também não sabiam, que essa gente havia cometido crimes contra a igreja e que essa igreja, da Contra-Reforma, era corrupta, atrasada e tinha as mãos sujas de sangue pelos crimes da Inquisição.

Nossa condição de colônia de um país que foi alijado da Revolução Industrial, após um período de exploração do planeta que deitou as bases da revolução científica do século 17, tem uma relação estreita e profunda com nossa auto-estima.

Aparecemos em todo o mundo como um país de gente alegre, receptiva e generosa, mas nossas mulheres se prostituem no exterior denunciando uma injustiça social e falta de perspectiva que vêm de longe, produzidas por uma oligarquia rural escravista, atrasada em todos os sentidos, despudorada quanto a princípios mínimos de dignidade humana.

O sinhozinho

Boa parte dos representantes dessa mentalidade está hoje na ‘oposição’. De lá vem algumas dessas ‘críticas’ ressentidas que parte da imprensa endossa estupidamente ou reforça movida pelo mesmo sentimento de inconformismo.

O governo do príncipe dos sociólogos, Fernando Henrique Cardoso, para citar dois exemplos, enterrou 10 bilhões de reais no Banco Nacional e nos levou de volta às cavernas com o apagão que, desde então, produziu um novo tipo de artesanato: as tochas que antigamente iluminavam as cavernas e que, agora, podem ser compradas em redes de supermercados.

Recorremos a velas, lampiões e lamparinas, mas FHC, que fala inglês e francês, embora ninguém entenda o que ele diz ou escreveu, mesmo em português, ainda assim é identificado com a modernidade por certa percepção de realidade.

Modernidade que a Folha de S. Paulo ajudou a difundir em reportagens de páginas inteiras propagandeando morbidades como festas do peão boiadeiro que, como um vírus, se disseminou de Barretos para o Brasil inteiro.

Isso é que era. Chapeuzão de caubói, cinturão imitando os que Bush usa no seu rancho e um delírio de ser de alguma forma norte-americano.

Claro que o governo do PT tem uma série enorme de problemas. Por que não teria?

A começar do presidente e do insulto tolo que fez recentemente aos jornalistas, acusando-os indiscriminadamente de covardes. Talvez ela tenha se esquecido do confronto que teve com Fernando Collor quando acabou derrotado. A figura do sinhozinho abateu Lula e ele entregou os pontos. Gilberto Freyre e Sigmund Freud ampliariam suas obras analisando cenas como essa.

Promessa segura

Em relação à ‘onda patriótica’ que ocupou outras três páginas da edição da Veja, no entanto, a questão é inteiramente distinta. Lula tem experiência pessoal e profunda do que é ser excluído social, retirante que passou fome, e agora se empenha em fazer com que essa experiência dramática seja ao menos minimizada.

Os que nunca tiveram essa experiência interpretam a proposta como exótica. Faz sentido de um ponto de vista psicanalítico, para dizer o mínimo.

De uma ou outra forma há uma recuperação de ânimos visível a olho nu neste país. Pode ser pelo futebol, pela conquista de algumas medalhas olímpicas em Atenas, ou pela performance da economia. Mas há, e isso é fundamental para a qualidade de vida dos brasileiros.

Talvez nunca tenha havido um movimento discreto, mas crescente, de solidariedade, de ONGs e outras associações empenhadas em minimizar os problemas sociais. É uma reação desejável ao crescimento de uma violência estrutural. Isso enfurece a ‘oposição’, representantes de usineiros do Nordeste, gente que se vê com direito de sequer pagar impostos, auto-identificados como os donos ou a expressão do poder.

Ou seus equivalentes em outras regiões.

É preciso, sim, não resgatar (não se resgata o que não se teve), mas construir uma noção de pátria baseada em identificação cultural, preocupação com o país, determinação de vencer nossos próprios desafios para não repetirmos fiascos e brutalidades históricas como a Guerra do Paraguai, como buchas de canhão de interesses internacionais.

É preciso refutar a Lei do Gerson, esta sim construída pela ditadura militar, as frases de efeito duras e excludentes como o ‘ame ou deixe-o’ forjadas pela direita truculenta e intolerante.

É profundamente necessário um convite à reflexão sobre as potencialidades do Brasil. Da riqueza antropológica representada por povos indígenas que ainda se mantém arredios ao contato, ao potencial econômico, passando pelas belezas naturais e as perspectivas de criação na ciência e tecnologia. O Brasil formou, no ano passado, 8.500 doutores. São novos pesquisadores e a promessa mais segura de expansão de conquistas científico-tecnológicas. É preciso inseri-los na produção.

Iniciativa saudável

A propósito, este ano, completa 100 anos de um caso exemplar de campanha movida pela oposição/imprensa contra projetos cidadãos: a Revolta da Vacina – ou Quebra-Lampiões –, no Rio de Janeiro.

Para os leitores que não se lembram mais disso, vamos recordar que Oswaldo Cruz, médico-sanitarista nascido em São Luiz do Paraitinga, terra do professor Aziz Nacib Ab’Saber, no Vale do Paraíba, ocupava a direção do Instituto Manguinhos (Instituto Soroterápico, em 1902), quando irrompeu uma epidemia de febre amarela no Rio, a então capital do país.

Oswaldo Cruz, pesquisador de prestígio internacional, inicia uma campanha de combate aos focos de mosquitos e sofre resistência por parte de positivistas (uma praga que a França nos legou), políticos de oposição ao governo de Rodrigues Alves e de vários jornais do Rio de Janeiro.

O combate à febre amarela (que deixava de quarentena navios brasileiros em portos estrangeiros, mesmo latino-americanos) estimulou uma revolta na Escola Militar com repercussão popular que ameaçou o governo de Rodrigues Alves. Subjugada pelo comandante da guarnição federal, Hermes Rodrigues da Fonseca, a revolta não inibiu o trabalho de Oswaldo Cruz. Em 1903, o número de óbitos estava em 584 casos, em 1904 subiu para 589 e em seguida decresceu: 39 em 1906, 4 em 1907 e nenhum em 1908.

Em conseqüência disso, o júri do XIV Congresso Internacional de Higiene, em Berlim, deu o primeiro prêmio, uma medalha de ouro ao Brasil, entre os 123 países presentes ao encontro.

Como se vê, de um ponto de vista histórico as coisas mudam, mas nem tanto. Por isso mesmo, estimular um mínimo de consciência patriótica, de melhoria de auto-estima, longe de bravatas inconseqüentes, é uma iniciativa saudável.

Certamente é isso que irrita a oposição e parte da imprensa. Oswaldo Cruz conheceu bem o significado disso.