Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Por quem os sinos dobram

Quando o último homem, Luis Urzua, deixou no final da noite de quarta-feira (13/10) o poço escavado para retirada dos mineiros soterrados na mina de San Jose, sob a terra escaldante do deserto de Atacama, no Chile, pessoas respiraram aliviadas em todo o mundo.


O que pode explicar esse sentimento de solidariedade que uniformizou as manchetes da mídia em escala planetária?


Talvez a resposta esteja próxima do que escreveu o poeta inglês John Donne, no século 16, e que desde a Guerra Civil espanhola está associado ao romancista norte-americano Ernest Hemingway. Donne disse que ‘a morte de qualquer homem me diminui porque sou parte da humanidade e, por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti’.


Os mineiros soterrados sob quase 700 metros de rochas na mina de cobre falida, das várias que existem no Chile, levaram cada um de nós com sentimento de humanidade às profundezas e ao calor úmido do corpo da Terra. Daí o sentimento de alívio de se respirar o ar fresco e contemplar as estrelas cintilando sob o véu escuro da noite, no aconchego dos braços de amigos e familiares, eles mesmos aquecidos por fogueiras quase tão antigas quanto a humanidade.


Areia cósmica


‘Acidentes’ como esses, que mais uma vez afetaram o Chile, sempre sob os golpes imprevisíveis da Terra, talvez contem uma história mais profunda e rica do que aquela possível de ser assimilada num primeiro momento. Reafirmam, evidentemente, a sede insaciável de lucro por parte de alguns homens, organizados sob a forma de empresas, para explorar os demais mesmo ao custo da própria vida.


Críticos cínicos e apressados talvez retirem de uma frase como esta a idéia do mais ingênuo romantismo, idealismo sem sustentação no que costumamos chamar de realidade, ainda que este seja um conceito mais complexo que estão dispostos a aceitar. Pouco importa. O que talvez valha a pena considerar é a expressão de solidariedade como a contida no poema de Donne, título de uma das mais conhecidas obras de Hemingway, versando, paradoxalmente, sobre enfretamento entre humanos levado às últimas conseqüências pelo recurso bruto das armas.


Essa solidariedade é o que, neste momento, perturba a superfície deste mundo plano em que o planeta foi transformado por uma sociedade global anestesiada pela banalização do que quer que seja. Agora, palavras de ordem de lógica fácil e inconseqüente substituem como próteses grosseiras a reflexão que já foi mais frequente e profunda em tempos ainda recentes.


Friedrich Nietzsche e Ortega y Gasset, entre tantos outros, estão nos livros que escreveram para testemunhar a emergência dessa era de alienação profunda. Numa situação que encheria de horror o coração do grande chefe Seattle – o indígena que se recusou a negociar com o governo americano a frescura do vento e a água límpida, o verde das planícies e o mugido dos bisões que então compartilhavam a terra com seu povo –, mutilamos profundamente o planeta em que vivemos. E mesmo os mineiros, como os soterrados do Chile, têm parte de uma culpa involuntária em tudo isso.


São eles que, em alternativa de sobrevivência, ferem profundamente o corpo da Terra perseguindo veios de minérios: cobre, ouro, diamante ou o que seja, para saciar uma demanda infinita de consumo. Então a eles cabe, periodicamente, com os critérios tortuosos da tragédia, pagar por isso com a própria vida.


Não paramos um único minuto para refletir sobre a origem dos veios de minérios que se infiltram profundamente no corpo da Terra, até o ferro e urânio ricos em seu coração incomparavelmente mais quente que a superfície do Sol. Se tivessem conhecimento dessa origem tão remota no espaço e no tempo não só os mineiros, como todos os demais moradores dessa nossa casa cósmica, certamente teriam mais moderação em seus apetites pantagruélicos.


O cobre, o ouro, o ferro e tudo mais que os cientistas organizaram na tabela periódica foram forjados no interior de uma estrela de grande massa que explodiu quando a Galáxia era bem jovem. Ao menos mais jovem que agora. Durante muito tempo, após essa explosão cósmica, essa nuvem expandiu-se fertilizando o meio interestelar como uma incontrolável tempestade de areia num deserto seco e agressivo como o Atacama. Mas depois, por acontecimentos que seriam longos demais para serem narrados aqui, tudo voltou a se contrair.


Por um processo que os astrônomos chamam de acreção, essa grande tempestade de areia cósmica se contraiu lentamente – e essa é a gênese do nascimento de nosso sistema solar, no braço de Órion da nossa galáxia.


Ponta de esperança


Quando os humanos emergiram como dançarinos imprevisíveis contra o fundo leitoso da Galáxia, que chamamos de Via Láctea, outro capítulo de uma longa história começou e se estende até agora. A presença dos humanos alterou tudo o que existia até então, porque a imaginação humana é capaz de proezas inacreditáveis. Entre elas mergulhar nas entranhas de Terra, como fantasmas dissimulados, para entender o sofrimento do ‘outro’, aquele em que a humanidade de cada um reflete-se como na superfície de um espelho.


Certamente as cenas das últimas semanas na terra nua e seca do Atacama – de onde telescópios de grande porte perscrutam vigilantemente estrelas e outros astros do espaço profundo – serão diluídas já nos próximos dias.


Outras tragédias virão.


Sob a forma de eventuais resultados eleitorais com a dissimulação de candidatos agarrados a rosários como se fossem pios desde os primeiros tempos, a outras manifestações de desagrados da Terra pelos ferimentos que sofre a cada dia. Ninguém mais se preocupa em tratar essas chagas – como outro mineiro recomendou, em 1948, na belíssima parábola de John Houston, Tesouro de Sierra Madre.


Até quarta-feira (13), no entanto, apesar de toda a destruição, dissimulação e aparente indiferença ainda havia uma ponta de esperança de que os humanos podem se reconhecer uns em relação ao outros no que podem parecer as piores adversidades.


Por quanto tempo esse sentimento ainda pode durar é uma pergunta que talvez ninguém tenha condições de responder.

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Jornalista especializado em divulgação científica, editor de Scientific American Brasil, mestre e doutor em ciências pela USP