Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Quem nasceu primeiro, a corrupção ou o corrupto?

São 57 anos de idade. Comecei a ler aos 4; portanto, 53 de leitura; a maior parte, textos jornalísticos. Ainda alcancei tempos em que as pessoas se aglomeravam em torno de uma banca de revistas e comentavam a manchete que enfocava um misterioso caso de assassinato numa favela. Isso foi antes da banalização da violência, nos tempos em que, pelo menos no cinema, a gente distinguia mocinho de bandido.


Tudo parecia claro, imaginava-se que na vida real ambos os lados estariam bem definidos. Até que, num filme brasileiro, baseado na história de um famoso bandido romântico dos olhos verdes, o personagem principal soltou a sua mais famosa frase: ‘Polícia é polícia, bandido é bandido’. Era o Lúcio Flávio, O passageiro da agonia, tentando botar ordem na ‘brincadeira’, conforme a gente fazia durante a infância, quando escolhíamos os personagens de nossas lúdicas imitações daquilo que exibiam nas matinês dos cinemas.


A frase do lendário bandido, que fora barrado quando tentou exercer seu ofício na política, correu o Brasil. Era como se o inconsciente coletivo tivesse despertado para uma nova realidade, e aquilo que para todos nós seria o óbvio já não parecia assim tão óbvio. Virou bagunça, e, de repente, uma coisa era outra coisa, e outra coisa é uma coisa.


Alguém já compôs, e ainda cantamos em pagodes de mesa de bar: ‘Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão’. Porém, dessa fase já passamos, pois agora, se gritar ‘Pega ladrão’, por exemplo, no Congresso Nacional, muita gente se engalfinha – a categoria anda desunida, agora é um tentando agarrar o outro. José Sarney, por exemplo, quer ver a carcaça do governador Jackson Lago e seus sobrinhos; Jackson quer ver a caveira de Sarney e de sua filha, que já foi agarrada por José Serra, que pode ser agarrado a qualquer momento em que abrirem o dossiê dos sanguessugas, que ‘tá assim!’ de deputado, senador, prefeito, empresários e autoridades judiciárias. Alguns até já caíram na navalha, no furacão e em tantas outras operações da Polícia Federal.


Especial de TV sobre a PF


Durante muitos anos, exigimos um basta! Cansamos de ver na mídia bandido pé-de-chinelo, peito de fora e bermudão surrado, entrando em camburão da polícia. Repetimos exaustivamente a frase ‘No Brasil só se prende ladrão de galinha’. Descobrimos que, do tráfico de drogas, só se prendem os chefões do terceiro escalão, aqueles que têm condições de melhorar a renda de policiais e agentes carcerários. São os que mantêm o tráfico nos presídios; consumidores em potencial, pagam bem por um celular e pelas visitas íntimas. A raia miudinha é massacrada, não tem direito a prisão, vai direto para o cemitério. Exceto alguns escolhidos para servir como material de referência da produtividade das delegacias e de laranja nos presídios.


Alguns parlamentares da oposição ao governo Lula insinuaram que as atividades da Polícia Federal, desde o início do primeiro mandato, teriam um caráter revanchista. Também tentaram relacionar as operações da Polícia Federal com a campanha da reeleição do presidente. Chegaram a falar em Estado Policial. Entretanto, o governo Lula estava (está) apenas cumprindo uma promessa de campanha, talvez, paradoxalmente, a única implementada a contento: o combate à corrupção. Por que o paradoxo? Certamente porque esta seria a promessa mais difícil de ser cumprida.


Conglomerados jornalísticos brasileiros, controladores de importantes complexos multimidiáticos, agindo a qualquer custo, inclusive à custa do próprio descrédito de alguns órgãos de imprensa que trabalharam a cabeça da classe média durante décadas, tentam fazer a população crer que a corrupção no nosso país foi inventada no governo Lula. Nenhum canal de televisão se dispôs a produzir um programa do tipo Globo Repórter, Linha Direta, SBT Repórter, ou documentário especial, abordando as ações da Polícia Federal nos últimos dez anos. Melhor: um especial sobre a história do Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça da República Federativa do Brasil. Tal produção certamente provocaria constrangimento em muita gente e pasmo na maioria da população. Principalmente quando tratasse do período compreendido entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.


Até ameaça de despejo


Outro dia escrevi:




‘No governo FHC do PSDB, no qual o PFL não passava de esquadrão lambe-botas, o verdadeiro crime organizado não tinha o que temer. As máfias enclausuradas nas mansões à beira-mar e nos jardins paulistanos, ou turistando mundo afora, se mantiveram intocáveis. FHC quase fechou as portas dos principais setores da PF, que, em seu governo da impunidade, mal servia para expedir passaporte. A média de prisões efetuadas pela Polícia Federal no governo FHC foi de apenas 27 por ano. Num país com as dimensões do Brasil, acho que isso representa um índice abaixo do que pode ter ocorrido, por exemplo, no Haiti.’


Ano passado, o jornalista e apresentador de programa de TV Paulo Henrique Amorim escreveu:




‘Todo brasileiro deveria se orgulhar de ter uma Polícia Federal que não parece se intimidar com a possibilidade de subir a rampa do Palácio do Planalto. É muito diferente do que acontecia no governo Fernando Henrique Cardoso.’


Mas… o que acontecia no governo FHC? Nos oito anos do governo da privataria, a Polícia Federal foi praticamente desarticulada. Algumas unidades não dispunham de verbas para reparos em suas instalações, em outras os aluguéis foram atrasados e chegaram a ser ameaçadas de despejo. Telefones e eletricidade foram cortados por falta de pagamento das contas, nenhum concurso para agentes, enquanto muitos se aposentavam. A Polícia Federal, nos dois últimos anos do governo FHC, realizou 20 operações e prendeu 54 pessoas. O mais famoso foi o juiz Lalau, que só foi grampeado porque desafiou escancaradamente as autoridades do país.


Problema dos ratos


Agora, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o DPF foi reabilitado, e todos nós (ou quase todos), brasileiros, temos orgulho de ter uma Polícia Federal atuante, científica. Em pouco mais de quatro anos, realizou 353 operações, as quais resultaram na prisão de milhares de criminosos, entre eles juiz de direito, desembargador, banqueiro, políticos (muitos!), chefes do tráfico de drogas, empresários sonegadores e associados ao crime organizado, policiais federais e estaduais, funcionários públicos graduados e organizados em verdadeiras quadrilhas. Até um ex-governador, além de filhos, sobrinhos e parentes de influentes autoridades, foram algemados e conduzidos às carceragens das diversas unidades da PF em todo o país.


Se ainda não tivemos o tão esperado espetáculo do crescimento econômico, temos, pelo menos, a faxina moral que prepara o Brasil para novos tempos; basta que se mantenha a corruptália sob cabresto e algemas.


Porém, em vista da determinação do governo Lula, que demonstra empenho em moralizar as instituições públicas, quem não está acostumado a isso, estranha. Ou se faz de surpreso, ou ainda tenta fazer a população crer que, no passado, o país era governado pelas mais virtuosas vestais. Até parece que só agora se rouba no Brasil. Sabemos que não é nada disso, pois a verdade é, como já nos disse Milton Pomar, geógrafo e profissional de marketing: ‘[no Brasil] Nunca se viu tanto ratos, é verdade; mas nunca se caçou tanto os ratos.’


Trechos de um crítico de arte


Visitando os blogs dos amigos, li o artigo ‘Os hipócritas subiram no telhado’, de Miguel do Rosário.


Eis alguns trechos do texto:




‘Os mesmos que, há pouco, bradavam contra a chaga da corrupção; os mesmos que, há dias, elogiavam a ação da Polícia Federal como uma das maiores derrotas infligidas às históricas organizações criminosas do país, agora vêm a público repercutir a estranhíssima queixa de certos setores nacionais contra os métodos da mesma PF para desbaratar as ditas quadrilhas.’


‘Vejam a contradição. A PF conseguiu desbaratar as quadrilhas, que agiam há décadas, desviando bilhões dos cofres públicos e com isso (as quadrilhas) sendo co-responsáveis pela miséria e subdesenvolvimento da nação. E a mídia golpista agora vem lançar sombras sobre os métodos bem-sucedidos, acusando-os de lembrarem a ditadura militar. Deslavada mentira. Na época da ditadura, não se prendiam corruptos. Prendiam políticos, ou subversivos, segundo o jargão do tempo. As ordens de prisão partiam diretamente do Executivo. Hoje, os métodos são aprovados pelo Judiciário. Ou seja, o Estado de Direito está preservado. Muito curioso que a mídia repercuta, acriticamente, o protesto de advogados contra a invasão de escritórios jurídicos suspeitos de corrupção. Quando a polícia de São Paulo, por exemplo, sem nenhuma autorização judiciária, matou mais de 600 pessoas durante a guerra entre o Estado e o PCC, os mesmos advogados e a mesma mídia não acusaram nenhuma semelhança com a ditadura militar, nem repercutiram com a mesma intensidade as queixas das organizações de direitos humanos, nacionais e internacionais, contra a matança de inocentes, a maioria negros e pobres, da periferia paulista.’


‘O cinismo com que a mídia, no momento, está digerindo e vomitando as notícias sobre a operação Navalha, da Polícia Federal, é algo a ser ensinado aos filhos, a ser alertado aos alunos pelos professores, a ser denunciado continuamente pela blogosfera. A tentativa de confundir o público é algo inacreditável. O governo deflagra uma das maiores operações de combate à corrupção da história do país, prendendo gente graúda que nunca antes fora sequer tocada, atingindo ministros, juízes, altos funcionários estatais e mega-empresários, e a mídia, que até há pouco se pretendia o farol da moralidade, agora não apenas se nega a louvar e apoiar publicamente as ações, como inicia uma estratégia de contra-informação incrivelmente maquiavélica, procurando associar, sempre que possível, o governo à corrupção que ele combate.’


O restante pode ser lido no blog Óleo do diabo, Miguel do Rosário, crítico de arte e articulista dos bons.


Aproveite a navegação, dê uma passadinha no site da Polícia Federal e leia algumas sinopses das operações realizadas nos últimos quatro anos. É instrutivo e até divertido.

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Escritor, Rio de Janeiro, RJ