Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Surrealismo midiático nacional

Uma das características do pacote econômico do presidente Lula não suficientemente explorada até agora pela grande mídia é sua tendência à concentração da renda. Contradição explícita de um presidente ex-operário.

Basta observar apenas um detalhe. Dos consumidores, o governo passa a cobrar 0,0082% de IOF – Imposto sobre Operações Financeiras – mais o adicional da nova alíquota 0,38%. Com uma ressalva relevante: a cobrança dos 0,0082% fica limitada até 3%. Pode subir para 0,90%, 2% etc.

Já das pessoas jurídicas, ou seja, das empresas, será cobrado 0,0041%, mais o adicional de 0,38%. O capital – produção – pagará metade do imposto cobrado do trabalho – consumo – e não estará com a espada de Dâmocles sobre sua cabeça, representada pelo limite de 3%. Livrou-se dessa ameaça, que cortará permanentemente o pescoço do populacho, que vai ao crédito direto ao consumidor. Certamente, este ficará mais caro não apenas por conta do aumento do imposto, mas porque incorporará, também, o repasse dos impostos cobrados dos bancos (CSLL, antes 9%; agora, 15%) e das empresas, o próprio IOF. Concentração de renda explícita.

A produção, historicamente privilegiada e amplamente defendida pela grande mídia, depois de dividir relativamente com o consumo o bolo total da riqueza nacional no primeiro mandato lulista, volta a dispor de todos os privilégios com o IOF, pela mão do ex-operário.

Desequilíbrio dinâmico

Não terá a produção sobre suas costas o imposto do cheque em cascata e pagará a metade do que paga o trabalho, o consumo. Por que o privilégio da produção sobre o consumo, sabendo que o consumo estimulado é que estava incrementando a produção, agora sob expectativas de desaquecimento?

O consumo, que estava se valorizando diante da eqüidade tributária vigente sob a CPMF – paga mais quem gira mais –, desequilibrou-se, mediante silêncio da grande mídia. Por que até agora ela não ressalta que a produção estava começando a se dar bem justamente pelo melhor tratamento dispensado ao consumo relativamente, em termos históricos, à produção? O aumento do faturamento com os anúncios não diz nada?

Produção é consumo, consumo é produção, disse Marx. A irrelevância do consumo – o trabalho – em comparação com a produção – o capital – teve na CPMF um componente de reação, historicamente relevante, que deixará de existir com o IOF. Enquanto aquela equiparava relativamente produção e consumo, o IOF desequilibra relativamente consumo e produção, incidindo menos nesta e mais naquele. Intensifica-se o desequilíbrio dinâmico imposto pela circulação do dinheiro na economia. As regras corporificadas na regulamentação do IOF falam por si mesmas.

Excelente editorialista

Lula deu um passo atrás diante da perda súbita do imposto do cheque. Ficou grogue no ringue depois do violento cruzado oposicionista que eliminou a CPMF. Caminha, agora, rumo à prática espoliadora do capital sobre o trabalho, que a grande mídia sempre aplaudiu, como fator natural, sob o capitalismo, de promoção da acumulação para gerar novos investimentos.

A espoliação imposta pelo IOF é mais perversa, mais adequada ao espírito acumulador do capital, do que a realizada pela CPMF. O IOF, agora, concentra renda para uma parcela mais privilegiada consumir bens duráveis em detrimento do consumo de bens intermediários populares.

As chances de sonegação aumentam em favor do capital. Pode partir para o cheque pré-datado, ressuscitando prática econômica jurássica, a fim de fugir do IOF, e apelar, como sempre fazem, para a elisão fiscal, algo que a CPMF inibia em grande medida.

Ao afetar o consumo em relação à produção, privilegiando esta em detrimento daquele, Lula faz o que os governantes apoiados pela grande mídia fizeram sempre: lança sementes da concentração da renda em escala ascendente.

O presidente, atordoado pela traulitada que levou da oposição, passa a trilhar o mesmo rumo das políticas macroeconômicas praticadas pelos seus antecessores aos quais critica. O operário crítico da concentração da renda na relação capital-trabalho, razão de sua luta política que o levou à Presidência, equipara-se aos seus criticados. Torna-se excelente editorialista da grande mídia.

Investimentos sociais

O privilégio à produção, como a história recente mostrou, é instabilidade inflacionária permanente e a conseqüente derrubada de governos. Nada mais excelente para a oposição em ano eleitoral.

Na medida em que a produção não se realiza no consumo, gerando crônica insuficiência relativa de consumo que acelera crises capitalistas recorrentes, segundo Marx, a moeda começa a desvalorizar-se para elevar as exportações dos excedentes internos, decorrentes daquela crônica insuficiência.

Ao elevar os investimentos sociais, o governo Lula estava evitando, graças em grande parte ao dinheiro da CPMF, surtos inflacionários, na medida em que o consumo interno aumentado desovou os estoques que exigiriam câmbio desvalorizado para serem escoados, sob pena de apodrecerem em meio a inflações descontroladas.

Pelo contrário, o efeito dos investimentos sociais, expresso em aumento do consumo interno, representou fator de combate à inflação, na medida em que valorizou a moeda e a conseqüente importação de bens de capital para promover a competitividade do capitalismo brasileiro no cenário global.

Estoques acumulados

A grande mídia, que estava choramingando pelos corredores do Congresso, pedindo facilidades para abrir seu capital, assim como clamava por socorro financeiro nas agências governamentais, viu o panorama mudar. Nunca estiveram veiculando tanto anúncio.

Teria dado tiro no pé ao apostar na jogada da concentração da renda, que sempre apoiou, nos governos anteriores, e agora finge de oposicionista, relativamente, a essas mesmas regras?

Teria sido, realmente, uma boa, inteligente, embarcar no barco oposicionista, voltado, naturalmente, para ganhar eleições em 2008 – porque os oposicionistas foram os criadores e mantenedores da CPMF, em nome da governabilidade –, se a concentração da renda, advindo do pacote lulista pós-CPMF, diminuir a demanda interna e produzir elevação de estoques gerais que exigirão desvalorizações cambiais para exportar a qualquer custo ao preço elevado de surtos inflacionários?

Na prática, a grande mídia fez seu histórico jogo: apoiou a produção e sacrificou o consumo. Conta com a vantagem que sempre usufruiu, sabendo que, nas horas difíceis, o poder do capital arromba as portas do crédito barato das agências oficiais, a fim de sair do prejuízo gerado nos estoques acumulados sobre os quais recaem os juros altos.

Robin Hood às avessas

Os afogados na irrealização da produção no consumo sempre conseguem se salvar sem ter o nome inscrito no CPC ou no Serasa. Não é, porém, a sorte dos inadimplentes do crédito consignado, que pagam mais e tem menos direito.

Se Lula, agora, apóia a concentração do capital na produção em detrimento do trabalho, que pagará a conta em doses cavalares, por que a grande mídia não saúda o homem que faz o seu discurso?

O discurso conservador midiático é, flagrantemente, apanhado em total contradição. Marcha com os oposicionistas, que prometem de todas as formas resistir no Congresso à tentativa de minar os interesses do consumo relativamente à produção, que sempre mereceu o apoio midiático. Lula, o operário, virou patrão, e o patrão – a grande mídia, oráculo do capital –, operário. Surrealismo puro da grande mídia.

Ficaria mal apoiar um presidente oriundo do operariado jogando o jogo da concentração e ao mesmo tempo apoiado pelos apóstolos da acumulação da riqueza? Seria cinismo demais?

A grande senhora não quer ser pega nas suas intimidades fatais. Parte para o ataque preconceituoso: operário não pode ser patrão. Lula deu uma de patrão. Desconcertou a grande mídia, que não sabe o que fazer: apóia essa decisão presidencial patronal ou rende-se à ideologia oposicionista que sempre condenou: promover a concentração da riqueza nacional.

Lula, para espanto da grande mídia, caiu no discurso do Partido Republicano: cobrar menos dos ricos para sobrar mais para os pobres. Aquela escadinha famosa jamais realizável. Robin Hood às avessas. Por que a mídia não embarca, se sempre esteve nessa canoa?

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Jornalista, Brasília, DF